
Pablo Delcan para Le Magazine Du Monde
19 jun 2025
[Nota do Website: Importante reportagem que nos traz a mídia francesa, Le Monde, sobre a realidade dos nossos dias em termos de avanço avassalador da extrema-direita, sobre todo o planeta. Essa avalanche vem apoiada e financiada pelo grande capital internacional, representado pelos EUA. Agora a verdadeira face dos sempre chamados ‘Yanquees’, se mostram descaradamente. E todas as atitudes de Donald Trump mostram ter uma fundamentação ideológica e doutrinária que vão muito além do falso conceito de que seriam os EUA, os grande defensores das liberdades democráticas no Planeta e guardiões do que poderia existir de melhor na Humanidade. Com esse material desvela agora, sem máscaras, foi o que sempre esse país almejou: a dominação de tudo e de todos! E é fundamental para nós no Brasil, porque demonstra que os fatos que vieram se desvelando desde o final do ano de 2022, estão conectados com essa corrente doutrinária e ideológica de ação e pretensão que aqui estão sendo reveladas. Jamais esquecer que há fatos históricos, aqui citados como Thatcher e Reagan, que culminam com o que já disse o documentário, publicado em nosso website “Driblando a democracia”. No nosso ponto de vista, no caso brasileiro ainda temos outras possibilidades, basta nos apropriarmos delas!].
Tudo estava escrito no roteiro. A guerra comercial, o desmantelamento das agências federais, a caça aos imigrantes… Desde o início de seu mandato, Donald Trump vem desdobrando à risca o Projeto 2025, uma bíblia de 922 páginas escrita pelo think tank conservador. Hoje, seu presidente, Kevin Roberts, olha para o Velho Continente. Na França, ele acaba de se reunir com vários líderes de extrema direita.
Atrás das grossas cortinas de veludo do Cercle de l’union interalliée, um suntuoso clube parisiense na rue du Faubourg-Saint-Honoré, uma recepção altamente política acontece a poucos passos do Palácio do Eliseu. Gravatas são obrigatórias para os convidados que vieram na noite de 26 de maio para saborear “o futuro do conservadorismo na França e no Ocidente”, como promete o convite. O anfitrião é americano, desconhecido do público francês, e tem nas mãos um pedaço do destino dos Estados Unidos. Kevin Roberts preside a poderosa Heritage Foundation (nt.: destaque em negrito dado pela tradução pela importância de não esquecermos o nome desta fundação), o think tank conservador mais influente da galáxia MAGA (“Make America Great Again“), que abriu caminho para o retorno de Donald Trump ao poder ao lhe fornecer o radical Projeto 2025, o roteiro não oficial para seu mandato.
Com um crânio liso e um pequeno sino simbolizando o Sino da Liberdade americano preso à gola do paletó (o logotipo da Heritage Foundation), Kevin Roberts, de 50 anos, exibe a naturalidade de um professor universitário. Natural do sul da Louisiana, é um dos ideólogos mais fervorosos da segunda presidência de Trump, determinado a “queimar tudo” — ele prefere metáforas radicais — para remodelar os Estados Unidos em uma versão nacionalista e reacionária. À frente da Heritage Foundation e de seus 350 funcionários desde 2021, o historiador formado ganha quase US$ 1 milhão por ano nessa posição. Ele conhece Mar-a-Lago, a vila do presidente Trump, e cultiva uma amizade genuína com JD Vance, o vice-presidente dos Estados Unidos de 40 anos, de ideologia nacionalista-católica, adorado pela extrema direita dos dois lados do Atlântico.
Kevin Roberts é, acima de tudo, um dos vendedores não oficiais de um grande projeto de Trump II: construir uma rede com “aliados civilizacionais na Europa”, como o Departamento de Estado dos EUA afirmou em um memorando estratégico publicado em 27 de maio. Ele revela o desejo dos homens de Trump de promover sua concepção de uma “herança civilizacional ocidental comum”, de Paris a Varsóvia. No final de maio, Kevin Roberts esteve na França pela primeira vez, com esse objetivo em mente.
Um passeio discreto
A recepção está sendo organizada por um casal proeminente na pequena comunidade liberal-conservadora: Alexandre Pesey, diretor do Institut de Formation Politique (IFP), berço do movimento nacional-católico da antiga La Manif pour tous, e sua esposa americana, Kate Pesey. Esta ex-membro do Republicans Overseas (braço estrangeiro do Partido Republicano) dirige a La Bourse Tocqueville, que envia jovens identitários para Washington. Eles contam com o apoio do francês Pierre-Edouard Stérin, o bilionário católico que, de seu exílio na Bélgica, imaginou um projeto reacionário para a França baseado em uma aliança entre a direita conservadora e a extrema direita. Nesta galáxia em busca de receitas para conquistar a maioria, Kevin Roberts é acolhido como um deus ex machina. Uma reaproximação que coincide com a nova ambição da Heritage Foundation: exportar a visão de mundo da dupla Trump-Vance para a Europa.
Em três dias, o presidente da Heritage realizou um giro de encontros discretos, com Marion Maréchal, eurodeputada do Identity Libertés, com os líderes do Reconquête!, Eric Zemmour e Sarah Knafo, com o novo aliado do Rally Nacional (RN) Eric Ciotti, deputado dos Alpes-Maritimes à frente de sua União dos Direitos pela República, mas também com colaboradores próximos de Jordan Bardella… “Ele é um grande profissional da metapolítica [ação ideológica e cultural voltada para mudar mentalidades e promover a tomada do poder], os americanos são bons vendedores para venderem seu produto”, admira o financista François Durvye, assessor do RN e funcionário de Pierre-Edouard Stérin, após seu speed dating.

Eric Zemmour e Sarah Knafo, líderes da Reconquête, em Paris, em fevereiro de 2024. RAPHAEL LAFARGUE/ABC/ANDIA.FR

A eurodeputada Marion Maréchal, em Nice, em março de 2025. BOIZET E/ALPACA/ANDIA.FR

Marine Le Pen ao lado do líder do partido espanhol Vox, Santiago Abascal (centro), e do líder húngaro, Viktor Orbán, na cúpula dos Patriotas pela Europa, em Madri, em fevereiro de 2025, com a presença do presidente da Heritage Foundation. RICARDO RUBIO/EUROPA PRESS/ABACA
Kevin Roberts também concedeu uma entrevista à revista Le Monde, sob o olhar atento de um guarda-costas e do diretor de comunicação. “A Heritage tem o privilégio de ter contribuído para facilitar a escolha do nosso líder”, explicou cortesmente o homem de olhos azuis de aço, à beira dos Jardins das Tulherias. “Pode ser útil compartilhar nossa experiência com nossos amigos na França” Uma ajuda para unir a extrema direita, na linha do encontro organizado em Madri em fevereiro pelo partido de extrema direita espanhol Vox, sob o lema “Make Europe Great Again” (Tornar a Europa Grande Novamente), do qual Kevin Roberts participou entre os aliados nacionalistas e populistas de Marine Le Pen.
“Estamos preocupados com o Ocidente, com a França”, continua. “A imigração é uma das maiores ameaças para nós — Deus abençoe Donald Trump pelo que ele está fazendo. Na França, o problema é a imigração legal, explorada pela esquerda secular e por grupos muçulmanos radicais para minar a soberania nacional. A Heritage sempre estará do lado daqueles que lutam contra isso”. Ele endurece sua postura contra seus oponentes. “Não me importo com o que a esquerda radical diga sobre mim“, afirma com firmeza. “Não tenho raiva. Só quero derrotá-los. Em todas as eleições, pelo resto da minha vida”
No início, um encontro individual com Trump
No entanto, três primaveras atrás, em 21 de abril de 2022, nada ainda estava escrito. A “resposta conservadora” de que Kevin Roberts falava parecia distante. Donald Trump, encurralado pela investigação do Congresso sobre o golpe fracassado no Capitólio em 6 de janeiro de 2021, viajava para a luxuosa Ilha Amélia, na costa da Flórida, para a conferência anual do think tank. Kevin Roberts estava lá, usando uma gravata vermelha cravejada de pequenos sinos e abotoaduras combinando. No palco, o ex-presidente dos Estados Unidos disse estas doces palavras: “Este é um grande grupo. Eles lançarão as bases e detalharão os planos para exatamente o que nosso movimento fará quando o povo americano nos der um mandato colossal para salvar a América.” Anteriormente, Kevin Roberts e Donald Trump haviam pegado um jato particular da residência deste último em Palm Beach. A foto dos dois homens inclinados um para o outro em poltronas de couro branco seria revelada muito mais tarde pelo Washington Post, em agosto de 2024.

Kevin Roberts e Donald Trump em um jato voando para a conferência anual da Heritage Foundation em abril de 2022. THE WASHINGTON POST
Na época deste tête-à-tête na Flórida, Kevin Roberts lançou a criação de um guia para se preparar para uma nova presidência republicana: o famoso Projeto 2025. Ele confiou a tarefa ao ex-diretor de RH da Casa Branca, Paul Dans, em março de 2022. Sua missão, com um salário anual de US$ 300.000, consistia em unir 54 think tanks da galáxia conservadora diante dos perigos “neomarxistas”, “liberais” e “progressistas”. O enérgico Paul Dans tinha um único objetivo: a guerra contra o governo federal, que ele descrevia como um quarto poder. Um dia, em abril, enquanto dirigia para sua casa em Charleston, Carolina do Sul, ele ouviu o podcast “War Room” de Steve Bannon, o estrategista nacional-populista que fantasiava sobre uma eleição “roubada” em 2020 pelos democratas e pelas forças obscuras de um suposto “estado profundo”. Ele decide fazer disso o foco de seu plano de ação.
Um estilo messiânico
Um ano depois, em abril de 2023, o enorme volume está pronto: 922 páginas de inspiração nacionalista, autoritária e reacionária, escritas em estilo messiânico para “construir um exército de conservadores alinhados, treinados e preparados”. Com o passar dos meses, o misterioso Projeto 2025 atrai cada vez mais atenção. É associado ao candidato Trump, que expressa publicamente sua gratidão ao chefe da Heritage Foundation em fevereiro de 2024, no comício da National Rifle Association (NRA), o lobby pró-armas: “Kevin, obrigado”. Mas, no verão, quatro meses antes da eleição, ocorre um ato teatral que semeia dúvidas: Donald Trump repudia o Projeto 2025. O líder do MAGA supostamente “não tem ideia” de quem está por trás do plano, no qual 140 membros de seu governo de 2017 a 2020 estiveram envolvidos, incluindo seis ex-ministros…

Paul Dans, editor do The 2025 Project, em abril de 2023. LEIGH VOGEL/THE NEW YORK TIMES/REDUX-REA
O Projeto 2025 superou Taylor Swift em buscas no Google. Foi baixado mais de 5,4 milhões de vezes, um recorde para um relatório de think tank. Seus criadores compreenderam o risco de assustar os eleitores. Kevin Roberts adiou a publicação de seu próprio livro, que desenvolvia as mesmas teorias, “Dawn’s Early Light: Taking Back Washington to Save America“/Broadside Books (nt.: “A luz do amanhecer: recuperando Washington para salvar a América”), até 12 de novembro, uma semana após a votação. Ele explicou às suas tropas, com pesar, que se tratava de uma jogada tática: acima de tudo, não atrapalhar Trump. Paul Dans, por sua vez, desempenhou o papel de cordeiro sacrificial. O diretor do Projeto 2025 demitiu-se da Heritage Foundation em um clima mordaz. Ele retornou à sua vida civil como advogado.
Instruções de uso da presidência
Hoje é mais um dia. O Projeto 2025 parece ser o manual de instruções para os primeiros cinco meses da presidência de Trump, subvertendo instituições internacionais, interrompendo o comércio global e desequilibrando a arquitetura constitucional em favor do poder executivo. “Estou governando o país e o mundo”, proclamou Donald Trump à revista The Atlantic após 100 dias (nt.: com essas palavras, podemos compreender todas suas declarações, afirmativas, invasões, estocadas, reflexões etc. IMPERIAIS). Paul Dans está de volta à Casa Branca por uma noite. Em 19 de maio, ele participa do jantar oferecido pelo presidente Trump aos membros do conselho de administração do Kennedy Center, a monumental casa de ópera com vista para o Rio Potomac, em Washington, onde “Donald J. Trump, 2025” acaba de ser adicionado à lista de presidentes gravada na parede de mármore, desde que o bilionário se autoproclamou presidente da instituição.
Naquela noite, o coral do Exército dos EUA exibiu seus talentos, violinos rodopiavam entre as toalhas de mesa. Paul Dans estava no paraíso: o Projeto 2025, concebido como “um menu de bufê” onde Trump podia escolher, estava se desenvolvendo além de seus “sonhos mais loucos”, confidenciou à M Le Magazine du Monde. Kevin Roberts cultivava uma obsessão pela “paz” diante de Putin? Donald Trump, autoproclamado “pacificador“, maltratou Zelensky no Salão Oval em 28 de fevereiro, como um presente ao líder russo. O Projeto 2025 previa a mobilização do exército na fronteira sul para expulsar milhões de migrantes? O presidente assinou um decreto para usar o exército e transmitir clipes mostrando latinos, acorrentados, ladeados por soldados, nas pistas do aeroporto, antes de enviar a Guarda Nacional a Los Angeles em 8 de junho para reprimir protestos antideportação. O Projeto 2025 quer erradicar as políticas de “DEI/Diversity, Equity, and Inclusion” em prol da diversidade, da equidade e da inclusão? O governo Trump está rastreando até mesmo as palavras ditas por agentes federais.
A nova Casa Branca às vezes vai ainda mais longe. O capítulo sobre “burocracia” reconheceu os méritos da USAID, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional. Donald Trump permitiu que Elon Musk desmantelasse brutalmente essa ferramenta de soft power americano e a classificasse como “criminosa”. O Projeto 2025 propôs a retomada de uma ordem executiva de Trump para substituir altos funcionários mais rapidamente após uma eleição presidencial. O novo governo preferiu realizar expurgos massivos, sem a aprovação do Congresso, em nome da “lealdade” ao presidente… “Gostamos de sorvete, batata frita e tudo o que vem da França, mas vocês podem assumir o governo”, insiste Paul Dans. “O Estado é uma bolha, cresce sozinho.”
Política reprodutiva, um grande arrependimento
No entanto… Trump pode ter ido além do Projeto 2025, mas a franja ultraconservadora continua sem cumprir a primeira promessa do plano: a política reprodutiva. O guia, supervisionado pela Heritage Foundation, atribui ao Presidente dos Estados Unidos a “responsabilidade moral de liderar a nação na restauração de uma cultura da vida”, retirando a pílula abortiva do mercado ou transformando o Departamento de Saúde em um “Departamento da Vida”. “Os próprios fundamentos da moralidade da nossa sociedade estão em perigo”, diz Kevin Roberts, para quem o direito ao aborto, protegido em nível federal, “facilitou a morte de dezenas de milhões de crianças ainda não nascidas”.
Em 2022, a Suprema Corte pôs fim a essa proteção constitucional ao anular a decisão Roe vs. Wade de 1973: este é “apenas o começo”, anunciou o Projeto 2025. Os direitos das mulheres vêm depois dos “não nascidos”, de acordo com essa contrarrevolução conservadora que também está se desenrolando nos tribunais. É a “prioridade número um”, confirma Kevin Roberts, como “um católico romano que adoraria que o aborto não existisse”. “Era improvável que 100% das medidas fossem adotadas”, reconhece. ” Mas ainda estamos trabalhando nisso. Isso acontecerá a longo prazo, se fizermos bem o nosso trabalho falando sobre ‘ fusionismo da família em primeiro lugar‘” (nt.: ideologia conservadora que que conservador, que combina o conservadorismo tradicionalista com o libertarianismo). Um conceito que alia uma visão moralista ultraconservadora e um projeto libertário inspirado por pensadores europeus, como Friedrich Hayek. “Precisamos de mais bebês!”, declarou Kevin Roberts em 3 de fevereiro, na Cúpula Nacional dos Direitos Antiaborto, em Washington.
Antiga vitrine respeitável dos republicanos
Donald Trump, por sua vez, não era, a priori, o defensor nato da Heritage Foundation. O bilionário não tinha ligação com o think tank. E, antes de se tornar a arma intelectual a serviço do movimento MAGA, a Heritage Foundation, uma velha dama do establishment com 500.000 membros, era a respeitável vitrine do Partido Republicano. Figura marcante na paisagem de Washington há cinquenta anos, ela possui um quarteirão na Avenida Massachusetts, a poucos passos do Capitólio. É impossível não notar sua sede de sete andares, com suas duas colunas que lembram antigos templos gregos, onde seu nome está gravado: “The Heritage Foundation”. Homens, jovens e velhos, em ternos escuros acentuados por gravatas listradas, entram e saem rapidamente. Lá dentro, passa-se sob um lustre comprado no Independence Hall, na Filadélfia, o local histórico onde a Constituição dos EUA foi redigida. Corredores curvos e escritórios simples revelam retratos de Ronald Reagan e salas com o nome “Margaret Thatcher”.
Por muito tempo, os principais assessores da Heritage Foundation consideraram o nacional-populista Trump um fora da família. “Um palhaço” que deveria “sair da disputa” em 2016, atacou Michael Needham, chefe do braço de lobby Heritage Action e agora assessor do Secretário de Estado Marco Rubio, na Fox News. Tudo mudou quando, naquele ano, Donald Trump venceu sua primeira eleição presidencial. O presidente da Heritage Foundation era o ex-senador simpatizante do Tea Party, Jim DeMint.
Após uma noite eleitoral na sede da Heritage, ele reuniu cerca de 200 membros no auditório para se parabenizar por não ter marginalizado Trump, como seus “amigos” conservadores e membros de sua fundação desejavam. Isso foi uma sorte… O presidente eleito não estava pronto. A Heritage estava pronta para ele. Com a ajuda de Steve Bannon, estrategista-chefe da Casa Branca, o think tank forneceu-lhe uma base de nomes: mais de 60 recrutas de gabinetes ministeriais e agências federais, além de alguns membros do governo. Apesar de tudo, Donald Trump teve dificuldade em nomear pessoas leais aos 4.000 cargos-chave. Ele se apoiou principalmente em sua filha Ivanka e em seu genro Jared Kushner.
Ronald Reagan, ídolo do think tank
Uma agência de recursos humanos, esta tem sido a razão de ser da Heritage desde sua criação em 1973. “Acima de tudo, é preciso ter as pessoas certas”, costumava dizer seu fundador, Edwin Feulner, um dinossauro do mundo republicano, agora com 83 anos, vindo de um movimento cauteloso com os RINOs (republicanos apenas no nome). Em 1980, foi sob a liderança de Ed Feulner que a Heritage se dedicou integralmente à campanha do ex-ator de Hollywood, Ronald Reagan.
Em seu rancho em Santa Bárbara, as obras dos pensadores liberais Milton Friedman e Friedrich Hayek estão reunidas. “Sabíamos que ele era um de nós”, disse Feulner à revista New York Times em 2018. O think tank então produziu um volume de 1.093 páginas, “Mandato para a Liderança”. Ao chegar à Casa Branca, Reagan o distribuiu na primeira reunião de gabinete. Ele se gabou de ter implementado 60% das medidas. Mais de quarenta anos depois, o Projeto 2025 leva o mesmo título, “Mandato para a Liderança”, e Reagan continua sendo o ídolo da rede Heritage. “A longa marcha do marxismo cultural por nossas instituições está chegando ao fim”, escreve Paul Dans, apresentando a era Trump como a continuação de “1980”.
Com Trump, a Heritage viu uma oportunidade de retornar ao centro do palco, após um período de calmaria durante os anos Bush. O caminho foi pavimentado por Jim DeMint. Sua sucessora em 2018, a afro-americana Kay James, dá continuidade a esse impulso. Esta republicana, que serviu sob Reagan e George W. Bush, sonha em converter jovens, mulheres e minorias a ideias conservadoras. Um objetivo parcialmente alcançado… sem ela. Em 2021, a única mulher a ter chegado ao topo da Heritage renunciou, considerada moderada demais. Ela escreveu em 2020, em meio ao movimento Black Lives Matter: “Quantos negros mais terão que morrer? O racismo na América é uma ferida mortal.” O homem que a substitui personifica uma linha radical: Kevin Roberts.
Viktor Orban, fonte de inspiração
Nascido em uma família católica, este pai casado de quatro filhos foi aclamado como um excelente historiador na Universidade do Texas em Austin, onde obteve um doutorado após escrever uma tese sobre a escravidão e a ordem racial branca. Em entrevista à M Le Magazine du Monde, ele negou “categoricamente” ter mudado desde a época em que “usou o registro histórico para restaurar a voz e a humanidade aos escravos”. Dez anos depois, enquanto liderava a Universidade Católica de Wyoming, o devoto Kevin Roberts recusou financiamento federal que o obrigaria a admitir pessoas transgênero ou LGBT – um “bastião dos cowboys católicos”, ironizou o New York Times . Ele instou os alunos a “se conformarem à verdade católica”.
Diz-se que ele se inspirou no húngaro Viktor Orbán em sua cruzada pela identidade branca e cristã. Em março de 2024, Kevin Roberts recebeu discretamente o primeiro-ministro nacionalista na Heritage Foundation, após o húngaro visitar Donald Trump em Mar-a-Lago. “A Hungria nos inspirou”, confirmou Roberts em Paris. “Graças a Orbán, a identidade nacional na Hungria foi ressuscitada. A União Europeia está usando os aparatos da democracia contra ele. Esta é uma lição para nós, nos Estados Unidos.” Há alguns anos, em Budapeste, Kevin Roberts ficou impressionado com os grandes projetos lançados por Orbán para apagar todos os vestígios do passado comunista. Prova de que a vontade política pode fazer tudo, até mesmo reescrever a história. “Temos prédios de estilo soviético em Washington”, acrescenta. “Como o Ministério da Educação, que felizmente está sendo desmantelado.”
Kevin Roberts é, portanto, o homem que completou a conversão da Heritage às ideias trumpianas. Em política externa, ele recrutou assessores seniores que defendiam a redução da ajuda militar dos EUA à Ucrânia e eram hostis à OTAN. Em questões comerciais, a Heritage adotou uma postura ultraprotecionista, rompendo com o livre comércio, tão caro aos republicanos, para se envolver em uma guerra de tarifas alfandegárias. “É o contexto que mudou: estamos sendo atacados por países — aqui, a União Europeia — que se escondem atrás do mito do livre comércio, mas se recusam a respeitar as regras”, respondeu Kevin Roberts, poucas horas depois de Donald Trump ameaçar aplicar uma tarifa alfandegária de 50% à Europa. “Dez anos atrás, eu poderia ter ficado preocupado”, disse ele sobre a queda da bolsa de valores . “Mas a incerteza, que desagrada aos mercados, se dissipará em setembro ou outubro. E, no início de 2026, será uma vitória econômica.”
JD Vance, o aliado natural
Para o grupo pró-Trump Heritage, a grande aposta certamente valeu a pena. Os autores do Projeto 2025 são os leais tenentes que cercam o presidente hoje, quando ele recebe convidados no Salão Oval ou atravessa o palco da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), o principal encontro mundial de conservadores. Russ Vought, responsável pelo capítulo sobre o poder unitário do presidente e sua governança por decreto : diretor de orçamento da Casa Branca. Stephen Miller, a inspiração por trás do plano de deportação em massa de migrantes: vice-chefe de gabinete de Trump e ideólogo do nacionalismo branco, a peça central de sua presidência. Tom Homan, renomeado “czar da fronteira” por Trump: vice-diretor executivo responsável pelas deportações. Peter Navarro, ideólogo do “comércio justo” no Projeto 2025: conselheiro comercial da Casa Branca, apóstolo de tarifas massivas. John Ratcliffe, finalmente: chefe da CIA, altamente sensível…

Kevin Roberts (à esquerda) com o futuro vice-presidente dos EUA, J.D. Vance, na Universidade Católica da América em maio de 2023. FRANCIS CHUNG/POLITICO VIA AP IMAGES
Donald Trump é o líder oficial, mas o aliado natural da Heritage é JD Vance. Convertido ao catolicismo aos 35 anos, o vice-presidente abraça a retórica da ala evangélica sobre “família”, “direitos individuais dados por Deus” e “devoção religiosa como a maior fonte de felicidade do mundo”, nas palavras do Projeto 2025. Ele será “um dos líderes, se não o líder, do nosso movimento”, previu Kevin Roberts em março de 2024, em entrevista ao Politico. A assinatura do ex-senador de Ohio pode ser encontrada em um relatório de 2017 do think tank, quando ele defendia a classe trabalhadora branca no Centro-Oeste. Ele também escreveu o prefácio do livro de seu amigo Kevin Roberts: “É hora de fechar os vagões e carregar os mosquetes”, escreveu o vice-presidente dos Estados Unidos, para quem a Heritage Foundation é “o motor de ideias mais influente para os republicanos, de Ronald Reagan a Donald Trump”.
Steve Bannon está eufórico
Outro homem brandiu o Projeto 2025 como uma bíblia por “desmantelar o Estado administrativo tijolo por tijolo” antes de ser condenado a quatro meses de prisão por obstruir a investigação do Congresso sobre o ataque ao Capitólio: Steve Bannon. Nesta primavera de 2025, o ideólogo da alt-right MAGA está em júbilo. Nós o encontramos em Washington, em uma daquelas casas estreitas no Capitólio que datam da era napoleônica, atrás da Suprema Corte, onde ele mora parte do ano.
No porão convertido em estúdio de gravação, o podcaster Bannon, ainda muito influente entre a base trumpista, pega um exemplar do Projeto 2025 sobre a lareira, ao lado de uma pintura sua e de uma de suas citações emolduradas com conotações conspiratórias: “NÃO há conspiração, mas NÃO há coincidência”. Embora não tenha contribuído para o Projeto 2025, ele nunca perde a oportunidade de agradecer aos seus “amigos” na galáxia Heritage. “Ninguém publicou um livro como este. Esses quatro anos nos permitiram planejar tudo, colocar 500 pessoas de think tanks na administração. Quer um exemplar?” Ele oferece o Projeto 2025 como um missionário distribuindo o Evangelho e se diverte dedicando o livro ao Le Monde, pontuando sua mensagem com pontos de exclamação triunfantes: “MAGA!!!”
O cavalo de Troia do trumpismo na Europa tem muitas faces. Antes da Heritage Foundation e seus satélites, Steve Bannon já havia tentado unir a extrema direita do Velho Continente na preparação para as eleições europeias de 2019. Ele foi notavelmente o convidado de honra no congresso da Frente Nacional de Marine Le Pen em 2018. Sete anos depois, o ideólogo do MAGA descreve o lado oculto da “revolução nacional-populista” nos Estados Unidos — uma nova geração de representantes eleitos do MAGA no Congresso, altos funcionários públicos treinados em think tanks pró-Trump — e convida os nacionalistas europeus a se inspirarem nela.
Obviamente, é necessária uma liderança forte, acrescenta, referindo-se a Marine Le Pen, condenada em primeira instância por desvio de verbas públicas: “Ela corre o risco de ser presa. Mas ela é forte. Nós a apoiaremos em tudo o que for preciso para mostrar que este caso é uma farsa, como aconteceu com Bolsonaro. Ela seria perfeita para ser presidente da França.” Ele repete que “Bardella é um palhaço, um garotinho, uma piada. Contra as potências globalistas, é preciso ser duro como aço. Esteja pronto para ir para a prisão.”

Steve Bannon no estúdio de gravação de seu podcast, “War Room“, em Washington, D.C., em abril de 2025. STEPHEN CROWLEY PARA “THE WORLD”
Bannon faz parte desse ecossistema pró-Trump que cultiva referências à Europa. Sua casa “à francesa” evoca seu outro refúgio: o restaurante francês Butterworth’s, um dos novos pontos de encontro da elite MAGA de Washington, onde jantou na noite anterior. As pessoas celebram as vitórias de Trump e a queda de Elon Musk ali, saboreando tártaro de vitela com foie gras e caviar. O bistrô, de propriedade de Raheem Kassam, ex-editor-chefe do site de extrema direita Breitbart, amigo de Bannon, é repleto de detalhes que evocam a era vitoriana.

Elon Musk e Stephen Miller (à direita), vice-chefe de gabinete de Donald Trump, na Base Aérea de Andrews, perto de Washington, D.C., em março de 2025. LUIS M. ALVAREZ/AP/SIPA
Um retrato da Rainha Elizabeth está pendurado na parede. Toques da cultura europeia clássica, apreciados pela geração MAGA, cresceram entre o bairro de Manhattan, em Nova York, e os salões de luxo de Washington. “O trumpismo revigorou o Partido Republicano com uma visão de identidade. Mas a fonte civilizacional da América é a Europa, sua profundidade cultural e cristã”, exalta Nicolas Bay, ex-número dois da Frente Nacional, agora um Rally Nacional (RN), agora um eurodeputado filiado ao grupo de Marion Maréchal, que veio a Washington em fevereiro para fazer contatos na Heritage Foundation. O encontro ocorreu à margem do encontro anual da CPAC, do qual M Le Magaine du Monde participou.
A União Europeia, uma instituição a ser derrubada
Operação de cartões de visita e petits fours (nt.: canapés e salgadinhos): Nicolas Bay participa naquele dia de um coquetel para eurodeputados conservadores, nacionalistas e identitários na sede da fundação, na Avenida Massachusetts. Esses contatos com a extrema direita europeia ocorrem com a regularidade de um relógio. No final de janeiro, o Heritage se encontrou com o tcheco Filip Turek, cético em relação às mudanças climáticas e adepto de objetos do Terceiro Reich, membro do grupo antieuropeu Patriots for Europe, onde a Frente Nacional de Jordan Bardella tem sede. Em 11 de março, o Heritage recebeu, a portas fechadas, o Mathias Corvinus Collegium, uma escola húngara administrada pelo conselheiro político de Viktor Orban, e a Ordo Iuris, uma fundação tradicionalista polonesa.
Foi aqui que os dois institutos escolheram apresentar seu relatório, “The Great Reset” (A Grande Reinicialização), que visa desmantelar a União Europeia por dentro, seguindo o modelo das prioridades de Trump II. “Quando se trata da Europa, o presidente Trump tem uma estratégia de dividir para reinar”, confidenciou E.J. Antoni, um dos economistas do Projeto 2025, à margem da visita da italiana Giorgia Meloni a Washington em abril. É também lá, nesses auditórios discretos do Heritage, que a guinada à direita dos Estados Unidos está se consolidando e a da Europa está sendo parcialmente construída, por meio de conferências cruciais sobre agendas climáticas ou políticas de vacinas.
Há também curiosos políticos centristas eleitos. Como o ex-assessor de Emmanuel Macron, David Amiel, que se encontrou no Heritage Center à margem da reunião anual do FMI em abril. O parlamentar de Paris se encontrou com James Carafano, principal assessor de Kevin Roberts. Ele saiu “extremamente preocupado com a ofensiva ultrarreacionária americana” e abordou o assunto no Palácio do Eliseu. “O verdadeiro plano deles é desmantelar todo o progresso que os Estados Unidos fizeram desde a década de 1960: direitos ao aborto, conscientização sobre as mudanças climáticas, direitos civis”, insiste David Amiel . Dentro do bloco de extrema direita americano, há a ala populista que se dirige aos brancos pobres dos estados desindustrializados, a ala oligárquica dos chefes da tecnologia e a ala ultrarreacionária do Heritage Center. A guerra cultural une a todos; é a cola que mantém unida a coalizão trumpista.”
Pontos de entrada na Europa
Enquanto isso, os pontos de entrada na Europa se multiplicam, com perfis políticos emergindo das redes Heritage. Como embaixador dos EUA na União Europeia, Donald Trump escolheu o ex-chefe de uma rede de fast-food Andrew Puzder, associado aos seus anúncios sugestivos (“Gosto de garotas bonitas que comem hambúrgueres de biquíni”). Ele teve que renunciar à sua nomeação como Ministro do Trabalho em 2017, envolvido no emprego ilegal de uma imigrante sem documentos e em acusações anteriores de violência doméstica.
Este ex-advogado antiaborto, que ajudou a redigir a lei do Missouri de 1989 que estabelece que a vida começa na concepção, é um palestrante proeminente da Heritage Foundation. “Meu grande amigo”, diz Kevin Roberts sobre ele ao recebê-lo em seu podcast, ao som de música country, em 22 de janeiro. Andrew Puzder critica duramente a elite financeira que adota as políticas corporativas de DEI como “socialismo disfarçado”, em detrimento dos lucros dos acionistas. Também está presente a nata dos círculos conservadores em torno de Charles Kushner, indicado por Trump como embaixador dos EUA na França — e pai de Jared, marido de Ivanka Trump. Gabriel Scheinmann, convidado da Heritage Foundation como chefe da Alexander Hamilton Society, outro think tank de Washington, deve chegar a Paris como chefe de gabinete do embaixador.
A eleição do polonês Nawrocki, uma vitória
Nos Estados Unidos, democratas e chefes de think tanks liberais estão se culpando. Como disse o escritor nigeriano-americano Tope Folarin, diretor executivo do Instituto Liberal de Estudos Políticos: “Estava tudo escrito na areia, mas não levamos a sério o suficiente. Agora, os arquitetos do Projeto 2025 estão implementando uma agenda de longo prazo que ataca ideias, cultura e liberdades.” E o modelo liberal europeu. “Poucas fundações americanas têm um interesse crescente na Europa Ocidental”, diz Nicolas Conquer, a principal fonte francesa do Republican Overseas. “A Heritage pode inspirar doutrina aqui, um Projeto 2027 ao estilo francês…”
O governo Trump não hesitou, em março, em ordenar aos principais grupos europeus que suspendessem suas políticas internas de inclusão e igualdade. Essa interferência enfureceu empregadores, sindicatos e o governo francês, para quem “os valores do novo governo americano não são os nossos”. Em consonância com a ofensiva ideológica de J.D. Vance em Munique, em fevereiro, a Heritage Foundation produziu notas sobre “liberdade de expressão”: um grito contra o “imperialismo digital” de Bruxelas , que imporia padrões europeus para a regulamentação do ódio online. Uma “censura às Big Techs“, lemos, que teria “consequências devastadoras”… nas eleições americanas.
No entanto, em 27 de maio, enquanto Kevin Roberts se reunia com a nata da extrema direita em Paris, Donald Trump enviou sua Secretária de Segurança Interna, Kristi Noem, à Polônia para apoiar o nacionalista-conservador Karol Nawrocki no segundo turno da eleição presidencial. “Ele deve ser o próximo presidente da Polônia. Estão me ouvindo?”, ela vociferou, apontando o dedo, no palco da CPAC, realizada pela primeira vez na Polônia. Desejo realizado: o candidato, um admirador de Trump, recebido na Casa Branca um mês antes, venceu a eleição por uma margem mínima em 1º de junho. Na Heritage Foundation, comemoraram uma “enorme vitória”: “A Europa pode ser salva.”

Sede da Heritage Foundation em Washington, D.C., em maio de 2025.
JARED SOARES/THE NEW YORK TIMES/REDUX -REA
Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, junho de 2025