Globalização: A ascensão do tecnocolonialismo

https://www.ihu.unisinos.br/642787-a-ascensao-do-tecnocolonialismo

Hermann Hauser e Hazem Danny Nakib, em artigo publicado por El Economista, tradução do Cepat.

22-08-2024

[NOTA DO WEBSITE: Texto que nos mostra, de forma bem direta, como a mesma ideologia de supremacismo continua em alta no mundo globalizado. Somente mudam os ‘executores’, mas a tirania é a mesma. Assim, parece que dentro do que nos é trazido, uma humanidade harmônica e integrada jamais será possível vivermos. Algo frustrante e aterrador? Quem sabe?].

Hermann Hauser e cofundador da Amadeus Capital Partners e membro do Conselho Europeu de Inovação; Hazem Danny Nakib é membro do Digital Strategic Advisory Group da British Standards Institution e membro honorário sênior da University College London.

Eis o artigo.

Em 1853, sob o presidente Millard Fillmore, o comodoro da Marinha dos EUA Matthew Perry liderou quatro navios de guerra numa missão para persuadir o Japão a pôr fim à sua política isolacionista de 200 anos. Quando chegou ao que hoje é a Baía de TóquioPerry deu um ultimato ao Xogunato Tokugawa: abram-se ao comércio com os Estados Unidos ou deverão arcar com as consequências.

A chegada destes “navios negros” (chamados assim devido à fumaça escura que seus motores a vapor movidos a carvão emitiam) foi um divisor de águas. Confrontado com esta impressionante demonstração de proezas tecnológicas – que exemplificava o poder industrial que já tinha permitido ao Império Britânico dominar grande parte do mundo –, o xogunato aceitou relutantemente as exigências de Perry, o que levou à assinatura do Tratado de Kanagawa em 1854. Um ano mais tarde, o xogunato recebeu dos holandeses seu primeiro navio de guerra a vapor como forma de reconhecimento.

Embora a tecnologia possa representar uma ameaça, ela também alimenta infraestruturas críticas, como escolas e hospitais. No século passado, em particular, o indivíduo soberano se vinculou estreitamente a uma vasta gama de tecnologias, incluindo sistemas interligados como as redes de energia, a internet, os telefones celulares e, hoje, os chatbots de inteligência artificial.

Como demonstrou a expedição de Perry, a tecnologia é também a espinha dorsal da soberania militar estatal. Graças ao seu domínio tecnológico, os Estados Unidos tornaram-se a principal potência militar do mundo, com mais de 750 bases em 80 países, três vezes mais do que todos os países juntos.

Mas este panorama da soberania do Estado está mudando rapidamente. Embora a soberania financeira dos Estados Unidos, apoiada pelo estatuto do dólar como moeda de reserva global, permaneça intacta, a sua soberania econômica está cada vez mais ameaçada por uma China em ascensão. Em termos de paridade de poder aquisitivo, a China ultrapassou os Estados Unidos para se tornar a maior economia do mundo em 2014. Com uma produção industrial aproximadamente igual à dos Estados Unidos e da União Europeia juntos, a China é o maior parceiro comercial de mais de 120 países.

Ambas as superpotências competem atualmente pelo controle da concepção, desenvolvimento e produção de tecnologias essenciais, como semicondutores, inteligência artificial, biologia sintéticacomputação quântica e blockchain. Um estudo de 2023 encomendado pelo Departamento de Estado dos EUA, que acompanha as contribuições de pesquisa em 64 tecnologias emergentes, revelou que a China ultrapassa os Estados Unidos em mais de 80% destas áreas, enquanto os Estados Unidos a seguem de perto.

À medida que a rivalidade entre os Estados Unidos e a China aumenta no campo tecnológico, países de todo o mundo serão forçados a escolher um lado e a adotar as tecnologias, padrões, valores e cadeias de abastecimento diferenciais do seu aliado escolhido. Isto poderia abrir as portas a uma nova era de colonialismo tecnológico, que mina a estabilidade global.

No entanto, e curiosamente, nem os Estados Unidos nem a China conseguiram dominar a indústria de semicondutores, uma vez que a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC) em Taiwan e a Samsung na Coreia do Sul são os únicos fabricantes capazes de produzir semicondutores menores que cinco nanômetros. Para mudar esta situação, ambas as superpotências estão construindo o que chamamos de círculos de soberania tecnológica, esferas de influência às quais outros países devem aderir para ter acesso a estas tecnologias fundamentais.

Ao contrário do colonialismo do passado, o tecnocolonialismo não consiste na apropriação de território, mas no controle das tecnologias que sustentam a economia global e a nossa vida cotidiana. Para conseguir isso, os Estados Unidos e a China estão repatriando cada vez mais os segmentos mais inovadores e complexos das cadeias de abastecimento globais, criando assim pontos estratégicos. A China, por exemplo, ganhou o controle das cadeias de abastecimento de matérias-primas críticas, permitindo-lhe tornar-se o principal produtor mundial de veículos elétricos. Os Estados Unidos, por sua vez, lideram em software de design de chips graças a empresas como Cadence Design Systems e Synopsys.

Quando a repatriação das operações se revela impossível, os círculos de soberania tecnológica atuam como outra forma de coerção, mais sutil. Ao cultivarem dependências assimétricas profundamente enraizadas, pressionam efetivamente os países para a servidão técnico-econômica.

Reino Unido é um ótimo exemplo. Em 2020, os Estados Unidos forçaram o Reino Unido a excluir a empresa tecnológica chinesa Huawei da sua rede 5G, ameaçando cortar o acesso aos aparelhos de inteligência e ao software de design de chips dos Estados Unidos. Da mesma forma, os Países Baixos foram pressionados para parar de fornecer à China maquinaria ASML no começo de janeiro. Em resposta, a China reforçou o seu domínio em materiais críticos, restringindo as exportações de gálio e germânio, insumos essenciais para microchips e painéis solares.

Cada país poderá em breve enfrentar o seu próprio momento de “barcos negros”. Aqueles que não têm a proteção proporcionada pela propriedade de tecnologias críticas correm o risco de se tornarem tecnocolônias, satisfazendo as necessidades dos seus soberanos tecnológicos através da fabricação de eletrônicos simples, refinando metais raros, rotulando conjuntos de dados ou alojando serviços em nuvem, desde minas físicas a minas de dados. Os países que não estiverem alinhados com os Estados Unidos ou com a China encontrar-se-ão relegados à condição de desertos tecnológicos empobrecidos.

Em meio às crescentes tensões geopolíticas, tecnologias emergentes como a computação quântica, a inteligência artificial, a blockchain e a biologia sintética prometem ampliar as fronteiras da descoberta humana. Como explicamos no nosso próximo livro (que está no prelo) The Team of 8 Billion, a pergunta chave é se estas inovações tecnológicas serão controladas por um grupo seleto de países como instrumentos de subjugação ou se serão democratizadas para promover a prosperidade compartilhada. Em vez de inaugurar uma era de tecnocolonialismo destrutivo, estas novas tecnologias poderiam ajudar a revitalizar a nossa ordem internacional baseada em regras e na melhoria da governança coletiva.

Mas para conseguir isso, temos de substituir os “navios negros” de hoje por algo que a humanidade ainda não inventou: um quadro para a cooperação planetária baseado num substrato unificado de interesses humanos. Esse quadro deve refletir a nossa crescente interconectividade e nossas dependências tecnológicas, bem como os desafios cada vez mais globais que enfrentamos, desde a guerra e a proliferação nuclear até as pandemias e as mudanças climáticas. O tecnocolonialismo representa a última iteração da luta ancestral pelo domínio global. Seremos nós os arquitetos da nossa própria destruição ou os defensores de um futuro melhor? Para o bem ou para o mal, a resposta está em nossas mãos.