Globalicação: “O capitalismo sempre tentou derrotar a democracia”

https://www.ihu.unisinos.br/655572-o-capitalismo-sempre-tentou-derrotar-a-democracia-entrevista-com-george-monbiot

Ibai Azparren, publicada por Naiz, tradução é do Cepat.

08 ago 2025

[Nota do Website: Sem dúvida que as conexões se interligam quando conhecemos aspectos que aparentemente não estariam mesclados. Ao se ler materiais como esses que publicamos hoje, a entrevista para o IHU e a matéria, de mais de um ano atrás, do The Guardian, teremos condições de entender porque Nosso Futuro -está sendo- Roubado. Esclarecimentos históricos como esses demonstram porque trilhas as Big Corporations sejam da Big Ag, da Big Tech, da Big Plastic, da Big Money e todas as outras, têm navegado em mares tranquilos e impunes, contra nossa saúde física, mental e psicológica. Só assim podemos reconhecer facilmente porque nós, no Brasil, viemos sendo devastados não só por elas, mas por seus nefastos representantes em todas as esferas políticas e públicas. Por isso, reflitamos e invoquemos em cada um, qual caminho poderemos e devemos trilhar para, conjuntamente como sociedade, impedirmos a degradação daqueles que estão vindo depois de nós].

No livro e no documentário, de mesmo nome, “A doutrina invisível“, o jornalista, ambientalista e terror profissional dos ricos e governos tíbios, George Monbiot, alia-se ao cineasta Peter Hutchison para rastrear como uma filosofia marginal dos anos 1930 foi adotada pelas elites como escudo, armadura e catecismo. E como acabou disfarçada de lei natural: algo tão inevitável quanto a gravidade, mas muito mais rentável para poucos. Como uma ideia tão impopular conseguiu se impor como senso comum global?

Segundo Monbiot, a armadilha foi perfeita: os ricos se convenceram de que se tornaram ricos por méritos próprios, e os pobres de que sua miséria era culpa deles. Se você não vence é porque não se esforçou […]. No neoliberalismo mais selvagem, a culpa do sistema é assumida pelo indivíduo e, ainda por cima, com um sorriso de coach.

O problema, claro, é que “não há alternativa”, como sentenciou Margaret Thatcher. Ela, juntamente com Reagan, foi uma das forças motrizes deste capitalismo turboalimentado e seu legado perdura até mesmo na esquerda. “Minha maior conquista foi Tony Blair”, gabou-se a Dama de Ferro. Para Monbiot, o ex-primeiro-ministro britânico e sua Terceira Via – juntamente com a presidência decepcionante de Obama – são a prova de que o neoliberalismo não só colonizou a política, como também adentrou até na intimidade da esquerda.

Nesta entrevista, Monbiot não poupa lenha: dispara sem olhar a quem e alerta que o neoliberalismo não precisa mais sequer fingir amor pela democraciaTrumpBolsonaroOrbán e até mesmo Keir Starmer são sintomas do que está por vir. E o que está por vir, alerta, não parece nada bom. Haverá alternativa ou Thatcher estava certa?

Eis a entrevista.

Seu livro começa dizendo: “Imaginemos que o povo da URSS nunca tivesse ouvido falar de comunismo”. Isto aconteceu com o neoliberalismo? Por que é uma doutrina invisível?

Porque se disfarçou. Inicialmente, nos anos 1930, 1940 e 1950, seus criadores estavam encantados de se autodenominarem neoliberais. Depois, abandonaram o rótulo e começaram a dizer que não era uma ideologia, nem mesmo uma filosofia, mas simplesmente uma descrição da ordem natural. Como a gravidade ou a seleção natural. É assim que o mundo funciona. Queriam que sua doutrina extrema parecesse inevitável e qualquer objeção a ela antinatural. Deram-lhe nomes como “thatcherismo”, “reaganismo”, “monetarismo” ou “economia de oferta”. Todos igualmente enganosos.

O neoliberalismo era uma ideologia marginal nos anos 1930. Quais mecanismos conseguiram transformá-lo no que se supõe ser uma “condição natural” da existência humana?

Muito dinheiro. Esta foi a chave. Enquanto a maioria das pessoas considerava suas ideias bastante desagradáveis, houve outras que ficaram encantadas: eram os mais ricos do planeta. E, após a Segunda Guerra Mundial, começaram a financiar o movimento neoliberal.

capitalismo sempre tentou derrotar a democracia e, por um tempo, teve sucesso por meio do fascismo. Mas, em 1945, o fascismo teve certos… inconvenientes. E foi então que o neoliberalismo apareceu, com livros como O caminho da servidão, de Friedrich Hayek, e Burocracia, de Ludwig von Mises.

Enquanto a maioria das pessoas considerava suas ideias bastante desagradáveis, houve outras que ficaram encantadas: eram os mais ricos do planeta – George Monbiot Tweet.

Não é que dissessem abertamente “vamos destruir a democracia”. Na verdade, não acredito que realmente pretendessem isso, mas suas ideias serviam perfeitamente para isso: diziam que as decisões tinham de ser tomadas pelo “mercado”, não pela política. E isto, na prática, significa deixar que os ricos façam o que quiserem, sem interferências incômodas como sindicatos, impostos ou serviços públicos.

E como conseguiram transformar essas ideias em senso comum?

Criaram uma estrutura argumentativa que conseguiam vender. Fundaram a Sociedade Mont Pèlerin e, com ela, uma “Internacional Neoliberal”: think tanks que não pensavam muito, mas pressionavam muito bem, departamentos acadêmicos, jornalistas afins, assessores etc. E claro, se você tem dinheiro suficiente, pode contratar pessoas muito inteligentes para refinar as mensagens, testá-las, adaptá-las e repeti-las até que comecem a soar razoáveis. Aos poucos, suas ideias foram penetrando na classe política.

Milton Friedman disse claramente: era necessário esperar que a social-democracia entrasse em crise. E sendo possível acelerar, melhor. Então, derrubaram os controles de capital, os controles cambiais… O capital pressionou muito para se libertar dessas restrições keynesianas. E por essa e outras razões, no final dos anos 1970, a social-democracia keynesiana teve grandes problemas. E este foi o momento em que os neoliberais puderam intervir e dizer: “Aqui está a nossa solução. Aqui está a alternativa”. Chegaram com a sua solução debaixo do braço. E com Thatcher e Reagan esperando a sua vez.

Milton Friedman disse claramente: era necessário esperar que a social-democracia entrasse em crise. E sendo possível acelerar, melhor. Então, derrubaram os controles de capital, os controles cambiais… O capital pressionou muito para se libertar dessas restrições keynesianas – George Monbiot Tweet.

Além de Thatcher e Reagan, você diz que a principal vitória do neoliberalismo foi penetrar na esquerda. Qual foi o dano provocado pela “Terceira Via” de Tony Blair e Bill Clinton?

Provocaram danos em muitos níveis. Primeiro, ao minar o Estado distributivo, mas também ao destruir a fé na política. Como a política foi capturada pelo neoliberalismo – tanto à direita, quanto à esquerda –, a possibilidade de escolha desapareceu. O neoliberalismo reduziu o que o governo consegue fazer, independentemente de qual seja o governo. Para eles, o governo deve intervir menos, mudar menos. E isto significa que os ricos podem fazer o que quiserem e o capital circular sem restrições, ao passo que o poder do Estado encolhe.

E as pessoas acabam renunciando à política…

É o que vemos agora no Reino Unido. Elegemos um governo trabalhista com a promessa de “mudança”, e não houve qualquer mudança. De fato, em muitas coisas são piores que os conservadores: mais cortes, mais austeridade, mais destruição do ecossistema, e seguem fornecendo armas a Israel em pleno genocídio. Tudo isto vai minando a esperança. E então, uma vez e outra, aparece a extrema-direita.

Provocaram danos em muitos níveis. Primeiro, ao minar o Estado distributivo, mas também ao destruir a fé na política – George Monbiot Tweet.

São oportunistas. Não importa quais políticas defendem, querem poder e farão de tudo para obtê-lo. Apropriam-se de todos os tipos de narrativas e dizem: “O sistema político está falhando, sua vida está piorando. A culpa é dos migrantes, dos muçulmanos, das mulheres, das pessoas trans…”. De qualquer um, menos do capital. Dizem que estão fora do sistema, que vieram para varrer tudo. E mesmo sendo os mais corruptos, sua promessa tem eco porque a política tradicional não oferece mais absolutamente nada.

Isto cabe a Trump, um oportunista?

Cara, não é exatamente um neoliberal. Tem políticas extremamente neoliberais, como desmantelar departamentos governamentais inteiros, cortar de forma massiva o Estado, baixar impostos para os ricos… Mas também tem algumas políticas que não são, como as tarifas ou tentar acabar com a globalização, por exemplo. É isto que estou dizendo sobre a extrema-direita: são oportunistas. Ele entrou em um vazio político. Em uma situação em que a política tradicional fracassou para as pessoas. E ele, como oportunista, conseguiu explorar essa situação.

Em seu livro, você critica o ex-presidente estadunidense, Barack Obama, por desperdiçar a crise financeira de 2008. Foi uma oportunidade perdida?

Uma enorme oportunidade perdida. De fato, toda a sua presidência foi. Tinha um apoio popular gigantesco, podia ter feito quase tudo e optou por não fazer praticamente nada. É uma tragédia. Era um homem muito encantador, muito elegante, mas sem nenhum compromisso político firme, nem objetivos claros. Muito semelhante a Keir Starmer, atualmente no Reino Unido, que não é encantador, nem elegante, mas também não tem nenhum compromisso firme com qualquer política em particular. E, além disso, está cercado por assessores maquiavélicos, alguns deles profundamente sinistros.

É isto que estou dizendo sobre a extrema-direita: são oportunistas. Trump entrou em um vazio político. Em uma situação em que a política tradicional fracassou para as pessoas – George Monbiot Tweet.

Voltando a Obama, o que ele poderia ter feito com esse capital político?

crise financeira foi a oportunidade perfeita para dizer: “Vamos construir algo novo, algo melhor, um sistema mais distributivo, uma sociedade mais justa, mais verde”. E não fez nada disso. Telefonou para os bancos, convocou-os para uma reunião, e eles pensavam que seriam repreendidos, que a eles seriam impostas novas regras, que a festa tinha acabado. Mas, em vez disso, Obama perguntou: “Do que vocês precisam?”. E eles responderam: “Muito dinheiro… muito, muito dinheiro, e a liberdade de fazer o que quisermos”. E foi exatamente isto que conseguiram.

Então, em vez de usar seu poder para transformar o sistema, ele o usou para consolidar a destruição da política como ferramenta de mudança. E o mais impactante e trágico é que representava a esperança. Tinha por trás dele uma enorme massa de pessoas que queriam uma mudança, mas uma das primeiras coisas que fez quando chegou ao poder foi cortar laços com os movimentos sociais que o levaram até lá. Em vez de mobilizar as pessoas – porque se você está em qualquer ponto à esquerda de Vlado Empalador, precisa mobilizar as pessoas se quiser ter sucesso na política -, ele as ignorou e disse: “Eu me encarrego disso”. E não cuidou de nada.

Obama perguntou: “Do que vocês precisam?”. E eles responderam: “Muito dinheiro… muito, muito dinheiro, e a liberdade de fazer o que quisermos”. E foi exatamente isto que conseguiram – George Monbiot Tweet.

Após a austeridade de 2008, a pandemia e o retorno do protecionismo de Trump, estamos vivendo o fim do neoliberalismo ou sua versão mais franca?

Bem, sem dúvidas, Trump está colocando fim a algo, mas não está claro ao quê, e não sabemos o que virá depois. Pode ser a fase final e autodestrutiva do neoliberalismo ou a passagem a algo ainda pior. Mas, nem ele e nem o trumpismo se sustentarão. São uma etapa intermediária em direção a outra coisa. E é justamente este o momento em que a esquerda deveria intervir e oferecer uma alternativa, mas nós o estamos tornando fatal. Quando nos perguntam o que queremos, as respostas vão de “keynesianismo requentado” a “um pouco menos de neoliberalismo”. Há um leque muito amplo de respostas, a maioria bastante vagas. Não temos um programa claro e é urgente construí-lo.

Quando nos perguntam o que queremos, as respostas vão de “keynesianismo requentado” a “um pouco menos de neoliberalismo”. Há um leque muito amplo de respostas, a maioria bastante vagas. Não temos um programa claro e é urgente construí-lor – George Monbiot Tweet.

As propostas não são ousadas o suficiente?

Para começar, não estamos coordenados. Sempre falamos de coletivismo e solidariedade, mas brigamos como gatos em um saco. Somos muito individualistas. A direita, que prega o individualismo, age como um cardume: todos dizem a mesma coisa e aplicam as mesmas políticas ao mesmo tempo. Não estou dizendo que devemos imitá-los, mas devemos nos coordenar muito melhor em torno de um conjunto claro de políticas.

Existem ideias brilhantes por aí, propostas fantásticas de muitos pensadores, mas todas competem entre si. E o que precisamos urgentemente é de um movimento que agilize essas ideias, que tire o melhor delas e crie um programa coerente, e então conte uma história muito simples e clara que permita que as pessoas entendam esse programa.

Sempre falamos de coletivismo e solidariedade, mas brigamos como gatos em um saco. Somos muito individualistas – George Monbiot Tweet.

Acontecerá algo que traga a esperança.

Nunca se sabe de onde virá a esperança. Tenho visto isso ao longo da minha carreira: justamente quando tudo parece perdido, surge um grande movimento social. Às vezes, dos lugares mais inesperados, como uma garota de 15 anos sentada em frente ao Parlamento sueco. Quem imaginaria? É assim que pode começar.

Por outro lado, o que está acontecendo agora nos Estados Unidos, onde há grandes protestos, é muito animador. Parece um bom começo, mas não basta se opor ao poder. Também é preciso propor uma alternativa e esta tem sido a grande fragilidade dos movimentos sociais, nos últimos vinte anos: muita oposição, pouca proposta.

O melhor exemplo é o Occupy [Wall Street]: foi brilhante ocupando espaços, chamando a atenção…, mas deliberadamente não tinha qualquer programa político. Sinto muito, mas isto não basta. É necessário dizer às pessoas o que se almeja, mostrar uma saída clara para algo melhor. E contar isto com uma narrativa simples: é isto, é isto o que acontece com você, esta é a causa, este é o caminho e é assim que vamos percorrê-lo.

Todos os movimentos bem-sucedidos agiram assim. E é aí que está a nossa falha. Em A doutrina invisívelPeter e eu propomos alguns caminhos possíveis, mas não pretendemos ser os gurus com todas as respostas. Não somos Marx e Engels. A política não deveria mais funcionar assim; não deveria depender de homens brancos envelhecidos alisando a barba e dizendo: “Aqui está a solução”. Precisa ser um movimento enorme que reúna a inteligência coletiva das pessoas. Nós apenas dizemos: “Olha, pode ser isto ou aquilo”. É preciso ter ideias, sim. Contudo, essas ideias precisam ser construídas e integradas a outras. É assim que deve funcionar.

No seu livro, você dá muita importância à participação democrática, no entanto, a esquerda continua precisando do Estado liberal?

Sim. Não acredito que sejam coisas contraditórias. Quero um Estado forte que taxe os ricos, financie serviços públicos, crie uma rede de segurança econômica e melhore a vida das pessoas. Contudo, isto não basta. Um dos erros do keynesianismo foi pensar que tudo poderia ser feito a partir do centro. No fim das contas, isto só cria dependência do Estado e fragiliza a comunidade. Precisamos das duas coisas: provisão estatal e cidadãos politicamente empoderados, que sintam que controlam a política, não que a política os controla.

Quero um Estado forte que taxe os ricos, financie serviços públicos, crie uma rede de segurança econômica e melhore a vida das pessoas. Contudo, isto não basta. Um dos erros do keynesianismo foi pensar que tudo poderia ser feito a partir do centro – George Monbiot Tweet.

Vivemos em democracias muito frágeis, não é mesmo?

É que nossos sistemas hierárquicos não foram projetados para a democracia; a  democracia foi acrescentada depois, como um remendo. No Reino Unido, o símbolo do Parlamento é uma coroa: poder que não presta contas, por trás de um portão de castelo com pontas, com correntes dos dois lados. O sistema está dizendo a você o que é, acredite. E nossa estrutura política é pré-democrática.

Sim, há eleições a cada cinco anos, mas uma vez com maioria, um governo pode fazer o que quiser. Com a tecnologia digital, poderíamos ter uma democracia muito mais participativa e deliberativa.

Não deveríamos ser entes suplicantes, esperando que o Estado centralizado nos deixe cair algo de cima, mas que, em muito maior grau do que hoje, possamos tomar decisões coletivas em nível local e transferir essas decisões para cima, em vez de tê-las impostas de cima.

Como ambientalista, o que lhe sugere ver Elon Musk gastando bilhões para explorar Marte, convencido de que algum dia poderemos viver lá? Será este o capítulo final do capitalismo: assumir que este planeta já está perdido e procurar outro para explorar?

capitalismo está sempre expandindo sua fronteira: queima recursos, comunidades, ecossistemas e, depois, passa para o próximo lugar. Seu padrão é: ascensão, colapso, abandono. E agora, o abandono atingiu o planeta inteiro. Pessoas como Musk e Bezos  querem partir. Bem, que se dane, que partam e nós pagamos a passagem deles se necessário, pois aqui na Terra não estão ajudando. O problema é que parecem determinados a nos arrastar com eles.

Não deveríamos ser entes suplicantes, esperando que o Estado centralizado nos deixe cair algo de cima, mas que, em muito maior grau do que hoje, possamos tomar decisões coletivas em nível local e transferir essas decisões para cima, em vez de tê-las impostas de cima – George Monbiot Tweet.

Mas eles, os neoliberais, que têm muitos seguidores, transformaram a “liberdade” em sua bandeira, e funcionou. Voltando ao início: Foram mais inteligentes, mais estratégicos… ou simplesmente mais ricos?

As três coisas. Ser mais rico torna você mais inteligente, não porque o dinheiro confere inteligência, mas porque você pode contratar pessoas muito inteligentes. Podem pagar os salários mais altos e, assim, ter pessoas muito astutas trabalhando para eles. Contudo, o nosso lado tem os números: milhares de pessoas desesperadas por uma mudança real. Só que precisamos dar a elas um eixo, uma história que diga: “Aqui, há ideias coerentes, aqui, há um futuro melhor, e você pode fazer isso acontecer, trazendo seu próprio brilhantismo”. Toda mudança real precisa de um ecossistema de pessoas, não apenas manifestantes e jornalistas radicais, também contadores radicais, advogados, economistas, professores, jardineiros, mecânicos…

Quando as pessoas me perguntam “o que eu posso fazer?”, eu sempre digo: “Faça o que você já sabe fazer, mas coloque isto a serviço desta tarefa de transformação”.

Legendada em inglês e por isso podemos tê-la em português também.

Crítica de A Doutrina Invisível de George Monbiot e Peter Hutchison – a ascensão do neoliberalismo

https://www.theguardian.com/books/article/2024/may/29/the-invisible-doctrine-by-george-monbiot-and-peter-hutchison-review-neoliberalisms-ascent

Peter Geoghegan

29 mai 2024

Uma análise incisiva de como a ideologia controversa permeou a vida moderna.

Margaret Thatcher com Ronald Reagan em 1981. Fotografia: Anônimo/AP

Em 1945, Antony Fisher visitou o economista neoliberal Friedrich Hayek na London School of Economics. Fisher, um veterano de Eton que trabalhava na City, compartilhava da crença do austríaco de que o nascente Estado de bem-estar social do pós-guerra acabaria por levar ao totalitarismo. Fisher queria o conselho de Hayek. Deveria entrar para a política? Não, disse o professor, algo como um think tank teria muito mais “influência decisiva na grande batalha de ideias”.

Fisher fundou o Instituto de Assuntos Econômicos (IEA), organização amplamente reconhecida, entre outras coisas, por ter incubado o desastroso mandato de Liz Truss como primeira-ministra. Mais tarde, Fisher mudou-se para os EUA, onde fundou a Atlas Network, uma organização abrangente que agora abrange mais de 450 think tanks, incluindo grupos influentes como o Cato Institute e a Heritage Foundation. Muitas são instituições de caridade. Poucas divulgam o nome de seus doadores.

O neoliberalismo percorreu um longo caminho desde os tempos de Hayek na LSE/London School of Economics. A crença na primazia do livre mercado, da desregulamentação e da globalização tem sido a ortodoxia política nos últimos 40 anos. Adotado por democratas e republicanos, conservadores e trabalhistas, o neoliberalismo é simultaneamente abrangente e raramente, ou nunca, explicitamente mencionado.

O colunista do Guardian, George Monbiot, e o cineasta Peter Hutchison se propuseram a levantar o véu sobre essa “doutrina invisível”. O resultado é uma polêmica apaixonada e informada, curta, mas repleta de detalhes e análises incisivas.

O termo “neoliberal” foi cunhado em uma conferência em Paris em 1938, mas ganhou força seis anos depois, com a publicação de “O Caminho da Servidão”, de Hayek . O avô do neoliberalismo argumentava que indivíduos agindo em seu próprio interesse eram o único baluarte contra a tirania. Os ultrarricos eram, segundo ele, “independentes” heroicos, demarcando novos territórios além do alcance de governos nefastos.

Tais argumentos tiveram pouco impacto no consenso do pós-guerra, mas inspirariam Ronald Reagan e Margaret Thatcher. O sucesso das ideias de Hayek deveu-se muito não à mão invisível das forças de mercado de Adam Smith, mas ao domínio clandestino do dinheiro obscuro e da influência oculta. DeWitt Wallace, o cofundador anticomunista da Reader’s Digest, publicou uma versão condensada de “O Caminho da Servidão” para seus 8 milhões de assinantes (entre eles Antony Fisher). Os argumentos de Hayek foram reembalados em quadrinhos seriados e livros infantis.

A era neoliberal trouxe consigo enormes disparidades entre ricos e pobres

Nas três décadas seguintes, uma “internacional neoliberal” transatlântica de acadêmicos, jornalistas e empresários refinou e promoveu a doutrina. Algumas das empresas e pessoas mais ricas do mundo investiram em grupos de lobby cuja marca sugeria que eram institutos de pesquisa imparciais.

A grande virada do neoliberalismo ocorreu na década de 1970. Com a crise do petróleo e o  colapso do keynesianismo, governos em todo o mundo estavam desesperados por um novo modelo econômico. Nas palavras de Milton Friedman, discípulo de Hayek, “quando chegou a hora, estávamos prontos… e pudemos intervir imediatamente”. Impostos foram cortados, sindicatos esmagados, serviços públicos privatizados e terceirizados, mercados desregulamentados.

A era neoliberal trouxe consigo enormes disparidades entre ricos e pobres. Nos Estados Unidos, o 1% mais rico agora detém quase um terço da riqueza do país. Mas, mesmo em seus próprios termos, o neoliberalismo não deu resultados: nos últimos 40 anos, o crescimento global tem sido mais lento do que durante grande parte do pós-guerra. Os oligarcas redesenharam o capitalismo à sua imagem, repleto de paraísos fiscais offshore e políticos capturados.

Curiosamente, aqueles que mais se apegam aos princípios do neoliberalismo frequentemente rejeitam o rótulo, descartando-o como um termo pejorativo usado por seus oponentes políticos. Mas mesmo esse truque retórico pode ser visto como um sinal de supremacia ideológica, a justificativa máxima da astuta caracterização do neoliberalismo pelo sociólogo Will Davies como “o desencanto da política pela economia”. Se, como Monbiot e Hutchison sugerem, “somos todos neoliberais agora”, qual é a alternativa? Não o nativismo de Trump, Orbán e Modi, ou as visões otimistas da social-democracia do pós-guerra construída sobre os lucros do império. Em vez disso, os autores propõem uma “política de pertencimento”, um apelo à democracia participativa na era da crise climática que deve muito ao ecologista e anarquista Murray Bookchin, bem como ao livro recente de Ingrid Robeyns, Limitarianism: The Case Against Extreme Wealth.

A Doutrina Invisível também contém propostas mais concretas. “A primeira, mais urgente e importante” é fazer campanha pela reforma financeira para impedir que os ricos comprem resultados políticos. Infelizmente, há poucos sinais disso no Reino Unido. No ano passado, o governo de Rishi Sunak alterou as leis eleitorais para aumentar os limites de gastos e reduzir a transparência dos doadores. Quantias recordes serão gastas nesta eleição. E o que dizer do think tank Fisher, criado sob a orientação de Hayek? No ano passado, as contas da AIE registraram mais de  5.000 “acessos na mídia” e meia dúzia de reuniões com ministros. A agência não divulga o nome de seus financiadores.

 Peter Geoghegan é o autor de “Democracia à Venda: Dinheiro Obscuro e Política Suja” . “A Doutrina Invisível: A História Secreta do Neoliberalismo (e Como Ele Passou a Controlar Sua Vida”), de George Monbiot e Peter Hutchison, é publicado pela Penguin (£ 12,99). Para apoiar o Guardian e o Observer, encomende seu exemplar em guardianbookshop.com . Taxas de entrega podem ser aplicadas.

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, agosto de 2025

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