Toras de Araucárias em Porto União/SC, em 1920.
Mariana Franco Ramos
09/09/2021
Irmãos Fuck, rivais de Dallagnol no MT, Celso Maldaner (MDB-SC) e Valdir Colatto (MDB-SC) estão entre os fazendeiros na região; histórias retratadas pelo observatório ao longo de cinco anos incluem casos de desmatamento ilegal e conflitos com camponeses
[NOTA DO WEBSITE: Por que publicar esse texto? Ele é a continuação do que tratava do RS. Por isso é paradigmático quando conhecemos a história do hoje exaltado ‘agronegócio‘. Vale a pena relembrar que o RS e SC e mesmo o oeste do PR, foram onde se instalaram os maiores núcleos de imigrantes europeus, de origem alemã. E é interesssante porque foi um avanço progressivo que começa lá no século XIX. Nesses estados, diferente dos imigrantes que foram para SP e outros estados, não tiveram tanta conexão com a produção de alimentos básicos e de subsistância como os do Sul, até a chegada dos imigrantes orientais, principalmente em SP. No caso de SC, com a extinção das Missões Jesuíticas, no sécuo XVIII, ao se expadirem as famílias, para essa região, logo foi um pulo ‘saltar’ o Rio Uruguai e entrar no oeste catarinense. Como no RS, também se apropriaram dos espaços das populações dos povos originários, destacadamente Kaingang e Xokleng. Como as florestas gaúchas, em SC era farta a presença das araucárias e de outras essências nativas. Também passaram a fornecer madeira e, diferente do planalto do RS, essa região de SC era mais acidentada, montanhosa, proliferaram-se as pequenas propriedades de agricultura de subsistência e a criação de suínos, galinhas, gado, em pequenos rebanhos, quase nos mesmos moldes da exploração agrícola europeia. Pequenas comunidades, separadas por confissão religiosa, evangélicos luteranos, principalmente, e de de outro lado católicas. Essa característica não favoreceu, no oeste, grandes propriedades e a agricultura familiar se instala e se fortalece até os dias de hoje. Nesse berço, alguns se projetaram como empreendedores e surgem cooperativas e empresas que passam a industrializar os produtos ‘coloniais’. E com o tempo se transformam na grandes indústrias de produtos lácteos, embutidos e nos dias de hoje, alimentos pré-cozidos e processados. Ali a soja não pode se expandir com a modernização da agricultura com seu pacote tecnológico como no RS, mas deu oportunidade para que houvesse uma maior divisão da riqueza da agricultura, mesmo com o sistema chamado de ‘integrado’ com as hoje grandes corporações dos alimentos, passsam a ‘organizar’ e ‘comandar’ o processo produtivo dos pequenos agricultores, favorecendo o escoamento dos produos, que não deixaram de se apropriar de uma vantagem econômica que poderia ser mais equilibrada e equâneme. Mesmo assim, é um interior onde a população não precisou praticar o êxodo rural e há um nível de vida incontestavelmente mais equilibrado do que muitos outros estados brasileiros, incluindo o RS. Já em outras região mais ao centro e a leste do estado outra foi a dinâmica de exploração e apropriação da terra e da natureza.]
Desmatamento em Passos Maia e Ponte Serrana, em SC, na década de 2000, relatório Apremavi. Qualquer semelhança com o que se faz na Amazônia, hoje, não é por acaso!
Enquanto milhões de famílias continuam à espera de chão para plantar na Amazônia Legal, empresários e políticos catarinenses expandem seus territórios, muitas vezes em áreas públicas e sem nem pisar nas propriedades. De Olho nos Ruralistas conta, desde 2016, histórias como as dos irmãos Fuck, rivais dos Dallagnol no Mato Grosso, e de parlamentares ruralistas que atuam em causa própria em Brasília.
Em comemoração ao aniversário de cinco anos do observatório, cada Unidade da Federação ganha, a partir desta semana, um balanço específico do que publicamos nesse período. A primeira da série de 27 reportagens foi sobre o Rio Grande do Sul, usina de ruralistas. Depois de Santa Catarina e Paraná, migraremos para as regiões Sudeste, Nordeste, Norte e Centro-Oeste, a representar a expansão econômica e territorial do agronegócio no Brasil.
Símbolo desse processo, a “exportação de latifundiários” é algo comum no país. Dos candidatos a prefeito em 2020 que declararam fazendas na Amazônia, 64 são moradores de outros estados. Juntos, eles possuem 162,9 mil hectares no bioma e um total de R$ 218 milhões em terrenos. Leia mais aqui.
CATARINENSES TÊM TERRAS NO XINGU E NA TRANSAMAZÔNICA
O engenheiro Auri Antonio Pavoni (PSDB), por exemplo, mora em Balneário Camboriú (SC), município litorâneo que se tornou símbolo da especulação imobiliária, com prédios gigantescos na orla. Entretanto, tem 975 hectares em Gaúcha do Norte (MT), nas proximidades do Território Indígena do Xingu. Ele é um dos donos da P&P Construtora e Incorporadora, que foi condenada pela Justiça a pagar R$ 15 milhões por corte de vegetação acima do permitido durante execução das obras na Estrada da Rainha.
Outra reportagem de destaque do De Olho retratou os membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) que participaram das últimas eleições. Angela Amin (PP), esposa do senador e ex-governador Espiridião Amin (PP), perdeu a votação em Florianópolis para Gean Loureiro (DEM). O casal é um tradicional defensor da indústria avícola do estado e entusiasta da chamada “Ferrovia do Frango“. A obra de R$ 17 bilhões ligará a região de Chapecó aos portos catarinenses.
Chapecó, aliás, é a cidade natal de Paulo Cezar Mates, médico de 48 anos que concorreu à prefeitura de Apuí (AM), município na Rodovia Transamazônica (BR-230), a 453 quilômetros de Manaus, na fronteira com Pará e Mato Grosso. Ele declarou um patrimônio de R$ 11,7 milhões. Somente na Vicinal Coruja, informou possuir 12.492 hectares. Preço da terra? R$ 100 mil. Catorze vezes menos o que ele tem em espécie. Relembre aqui.
FAMÍLIA FUCK DESTRUIU VEGETAÇÃO ENTRE A FLORESTA E O CERRADO
Mas o caso mais emblemático talvez seja mesmo o da Madeireira Juara (MT), controlada pelos Fuck no município vizinho de Nova Bandeirantes. A família de Canoinhas (SC) se tornou rival do pai, de tios e primos do procurador Deltan Dallagnol, conhecido por comandar a força tarefa da Lava Jato em Curitiba. Tudo devido a uma disputa judicial por 1,2 mil hectares. O embate foi retratado em reportagem de Leonardo Fuhrmann e Alceu Luís Castilho e será um dos destaques na retrospectiva sobre o Paraná, a próxima desta série.
Os irmãos Francisco e Jacob Fuck criaram a empresa em 1943 e entraram no ramo da erva-mate cinco anos depois. Antes, eles já eram produtores rurais no município. A madeira foi o principal negócio nos anos seguintes, inclusive com uma fábrica no Paraguai. Estevão e Niceto Fuck foram alvos de uma ação civil movida em 2010 pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso por desmatamento de 238 hectares na Fazenda Vale do Arinos, pertencente à madeireira. A vegetação destruída ficava em área de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica.
Os dois aparecem também em inquérito civil movido pelo Ministério Público de Santa Catarina, novamente por desmatamento. Ao lado de Alexandre Fuck e da Industrial Comercial Fuck, o promotor apurava dano ambiental na Vila Fuck, diante da destruição de quatro hectares de vegetação secundária. O bioma, no caso, era a Mata Atlântica.
Em junho de 2016, o camponês Valdomiro Lopes de Lorena, de 56 anos, foi assassinado a tiros na região das Fazendas Acaraí e Matrinchã, na Gleba Japuranã, em Nova Bandeirantes (MT). Além dos sem-terra, as áreas são disputadas pela Juara e pelo advogado Xavier Leonidas Dallagnol, tio de Deltan. Não há informações nas investigações policiais sobre quem teria sido o mandante. Organizações de direitos humanos apontaram Walmor Gonçalves dos Santos, sócio da madeireira, como principal suspeito. Saiba mais aqui.
Conhecido como Walmor da Fuck em referência à família de sócios, Santos foi morto em janeiro de 2019, aos 71 anos, numa chácara de sua propriedade em Juara. Junto com ele foi assassinada sua secretária, Aparecida Luciano Nogueira, de 49 anos. Ambos foram baleados. As investigações iniciais da polícia descartaram a possibilidade de latrocínio, pois não foram levados objetos de valor nem dinheiro em espécie encontrado no local.
VALDIR COLATTO ADQUIRIU TERRAS PÚBLICAS DURANTE A DITADURA
Quem também possui terras — improdutivas — bem longe de seus domínios é o ex-deputado federal Valdir Colatto (MDB-SC), que até abril de 2021 ocupava a chefia do Serviço Florestal Brasileiro. Sua propriedade, de mil hectares, fica num assentamento no município de Vilhena, em Rondônia, e foi concedida durante a ditadura pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Na avaliação do instituto, a área não cumpria com sua função social, condição para a manutenção da concessão. Para completar, estava inadimplente no cumprimento das regras do contrato.
A fazenda na Gleba Corumbiara esteve durante alguns anos ocupada por camponeses — que protestavam contra a situação fundiária da propriedade — e tinha previsão inicial de destinação à pecuária. Você pode relembrar o caso aqui. Ex-presidente da FPA, o político gaúcho foi um dos propositores da CPI da Funai e do Incra, que criminalizou indígenas, antropólogos e até procuradores. Foi o autor, ainda, do projeto de lei que deu origem ao atual Código Florestal.
Em 2016, ele apresentou o PL 6268, que permite a caça de animais silvestres no Brasil. O argumento é que algumas espécies são consideradas invasoras e oferecem perigo ao agronegócio; assim, a liberação do abate dos animais garantiria a preservação das lavouras. O observatório falou sobre Colatto e outros dois catarinenses da FPA com terras na Amazônia em reportagem que antecedeu o pleito de 2018.
MALDANER QUER CONGRESSO DECIDINDO SOBRE RESERVAS
No texto, o repórter Igor Carvalho destaca que os Maldaner deram dois rebentos à política nacional: João Casildo Maldaner (PSDB) e Celso Maldaner (MDB). Eles são herdeiros de Érica Braun e Andréias Maldaner, que tiveram outros quatro filhos. Embora tenham a vida estabelecida em Santa Catarina, os irmãos expandiram seus territórios para a Amazônia e até fora do país. Ao TSE, declararam propriedades rurais no Pará, na Bahia e no Paraguai.
Gaúcho de Carazinho, Celso Maldaner defendeu que o Congresso Nacional seja o responsável pela demarcação das terras indígenas, com a PEC 215. E foi além, ao incluir na proposta que a criação de Unidades de Conservação também fique nas mãos de um parlamento de maioria ruralista.
No ano passado, já em plena pandemia de Covid-19, assinou o relatório da Medida Provisória (MP) 927/2020, que regulamenta direitos trabalhistas, reduzindo, por exemplo, a pausa para trabalhadores de frigoríficos, um dos principais focos de surtos do vírus. A repórter Sarah Fernandes lembra que o parlamentar teve terras e patrimônio multiplicados nas duas últimas eleições. Leia mais.
EX-GOVERNADORES TAMBÉM ACUMULAM CONTROVÉRSIAS
Não são só os parlamentares de Santa Catarina que acumulam terras — e controvérsias. Governador biônico entre 1982 e 1983, pelo PDS, o advogado Henrique Cordova é acionista da São Luiz Fruticultura, flagrada com trabalho escravo em 2010. A empresa está no nome da esposa dele, Marita Stadler Cordova. A equipe do Ministério do Trabalho libertou 156 trabalhadores em uma fazenda de maçã, de propriedade da São Luiz.
Em 2012, quando concorreu à Prefeitura de São Joaquim, pelo PPS, o político afirmou, em nota à imprensa, que não era mais sócio desde 1996 (sem informar que os bens da companheira constavam de sua declaração) e atribuiu as denúncias a uma campanha para que ele não fosse eleito.
O casal foi beneficiado pela decisão da juíza Herika Machado da Silveira Fischborn, que defendeu o empregador por não devolver os documentos retidos pelos proprietários de terra e criticou os fiscais. Ela definiu os trabalhadores como “viciados em álcool e drogas ilícitas”. Henrique Cordova recebe R$ 9.550 ,95 de aposentadoria pelo Instituto de Previdência de Santa Catarina (Iprev). E, principalmente, vive do agronegócio. Relembre aqui essa história.
Em novembro de 2020 e em março deste ano, a vice-governadora de Santa Catarina, Daniela Reinehr, de 43 anos, assumiu o Executivo estadual de forma interina, em virtude do afastamento de Carlos Moisés (PSL). Produtora rural, ex-policial militar e defensora da isenção de impostos para agrotóxicos, ela faz parte da chamada ala de frente do bolsonarismo, tendo chamado o presidente de “personificação da esperança”.
Daniela se apresenta em suas redes sociais como “advogada, cristã, conservadora e patriota”. Ela é filha de Altair Reinehr, amigo e testemunha de defesa de Siegfried Ellwanger Castan, um negacionista do holocausto. A política já defendeu o uso precoce de cloroquina em pacientes com Covid-19, mesmo sem qualquer comprovação científica ou indicação de eficiência no tratamento, e foi uma das interlocutoras junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para o funcionamento dos frigoríficos. Releia aqui o perfil da vice-governadora.
EXÉRCITO E SESAI DOARAM COLCHÕES VELHOS PARA INDÍGENAS COM COVID
Foi em Santa Catarina que o Exército e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) fizeram uma “doação” de colchões velhos, sujos e rasgados aos indígenas infectados por Covid-19 na Terra Indígena (TI) Laklãnõ, entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, José Boiteux e Vitor Meireles.
O caso foi registrado pelo observatório em agosto de 2020. Junto a cobertores, também sujos, os cinquenta colchões seriam destinados a uma ala estruturada para o tratamento e isolamento dos indígenas infectados pelo novo coronavírus dentro da TI. Ao todo, 2.300 pessoas vivem em nove aldeias. A reportagem é de Poliana Dallabrida.
Os conflitos com indígenas no estado têm relevância nacional, já que a discussão em Brasília — no Supremo Tribunal Federal e no Congresso — sobre o Marco Temporal tem origem em uma disputa catarinense.
Confira o início de um texto de 2017 sobre uma criança indígena atropelada e morta no oeste de Santa Catarina, em uma cidade que se tornaria símbolo do bolsonarismo:
— A mãe desencosta-se dos joelhos sob os quais está prostrada e se levanta do banco onde permanecia sentada na lateral da avenida para se aproximar, até a altura que a fita de isolamento permitia, do carro do Instituto Geral de Perícia (IGP). Ali dentro está seu filho do meio, Naman da Rosa, de 9 anos, atropelado no início da tarde desta sexta-feira (3) quando atravessava a Avenida Fernando Machado, em Chapecó (SC).
EM CINCO ANOS, OBSERVATÓRIO EXPÕE OS DONOS DO BRASIL
Além da retrospectiva, a comemoração dos cinco anos do De Olho nos Ruralistas terá várias peças de divulgação, visando a obtenção de 500 assinaturas, por um lado, e levar as informações a um público mais amplo, por outro. É urgente a necessidade de o país conhecer melhor o poder dos ruralistas e de formar no Congresso uma bancada socioambiental, um conjunto de parlamentares que defendam direitos elementares, previstos na Constituição e nos pactos civilizatórios internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas.