Emergência climática: O olhar das fotógrafas sobre a seca da Amazônia

Imagens Areas Do Lago De Tefe

Imagem aérea do lago de Tefé, no dia 26 de outubro de 2023. Foto: Samara Souza

https://amazoniareal.com.br/especiais/o-olhar-das-fotografas-sobre-a-seca-historica-da-amazonia/

Nicoly Ambrosio

03 de novembro de 2023

[NOTA DO WEBSITE: Vale destacar que essa matéria é de novembro de 23, ou seja, há uns cinco mêses. Incrível para quem já navegou pelos rios Negro e Solimões e esteve em Tefé e foi até a Reserva Extativista de Mamirauá, pelos rios abundantes e pelos lagos cheios de vida e beleza, constatar isso. É impossível se crer que essa situação, mostrada abaixo, possa ser real. Ver agora essas paisagens desoladoras é uma realidade tão absurda que parecem cenas ficcionais. E é a repetição daquela inesquecível seca de 2005 que parecia que jamais haveria algo com aquela dramaticidade. Mas ocorreu e num tempo muito curto para ser ocasional. E o mais irônico é o contraste com as inundações históricas que acontecem agora no Rio Grande do Sul. É um imenso paradoxo. Infelizmente real e assustador].

Mulheres cisgênero, trans e pessoas não-binárias atuam na cobertura fotográfica da maior seca da história da Amazônia, mas têm seus trabalhos invisibilizados por mídias tradicionais que optam por remunerar e celebrar a trajetória de homens.

Manaus (AM) – Os efeitos da crise climática são devastadores na região amazônica neste ano. Desde setembro, a seca extrema aliada ao calor intenso isola indígenas e ribeirinhos em aldeias e comunidades afastadas dos centros urbanos e dependentes quase exclusivamente de via fluvial. 

Sem as “estradas” dos lagos, igarapés, paranás e rios, eles sofrem com a escassez de alimentos e água potável. Nas cidades, a fumaça tóxica causada pelas ações criminosas relacionadas aos desmatamentos e queimadas toma conta do ar e muda drasticamente o cotidiano das pessoas, impactando gravemente a saúde pública. Peixes e botos morrem nas águas quentes, que já chegaram à temperatura de 39°C, dois acima da temperatura média do corpo humano.

Diante do cenário de destruição, as fotógrafa(e)s e fotojornalista(e)s, Grazi Praia, Juliana Pesqueira, Marizilda Cruppe, Nathalie Brasil, Samara Souza e Stéffani Azevedo, estão engajada(e)s em registrar a na Amazônia. Independentes ou associadas a veículos de mídia, audiovisual e organizações não governamentais, o interesse delas em comum é denunciar a tragédia ambiental. O trabalho, no entanto, desperta angústia em Samara Souza, jornalista e fotógrafa documental há seis anos. Profissional independente, ela cobre a seca na Amazônia pela primeira vez.

Imagens aéreas do lago de Tefé, no dia 26 de outubro (Foto: Samara Souza).

“Passar pelos locais e ver a terra seca, sem rio, dói em muitos lugares. A angústia de ver a população sem água potável, sem alimentos, a tristeza de ver os peixes e botos mortos não me atravessa sem me entristecer profundamente”, disse em entrevista à Amazônia Real.

A fotojornalista cobriu a seca em cidades como Tefé, Manaus e Iranduba, no Amazonas. O que mais chamou a atenção foi ouvir os depoimentos de pessoas vulneráveis, com dificuldades cotidianas por causa da estiagem. “As pessoas estão andando distâncias maiores e quando converso com elas ou ouço os comentários só falam e discutem como pode ter chegado a esse ponto”.

O olhar fotográfico de Samara indica que a paisagem está se modificando rapidamente com os impactos da crise ambiental. “Cada registro é uma sensação de que não volto a ver aquele local da mesma forma em pouco tempo”, lamenta.

Nathalie Brasil trabalha há 12 anos como fotojornalista e já teve publicações no Diário do Amazonas, Estadão, Exame e Glamour. Hoje ela atua de forma independente e pela primeira vez cobre a seca. A fotojornalista registrou cenas durante o trajeto na estrada entre os municípios de Iranduba e Cacau Pirera e também na orla da Manaus Moderna, no centro da capital.

“Me chama a atenção fotografar um lugar que nem parece minha cidade. Vi as coisas se transformarem em cinza. Há poucos meses estava fotografando a cidade de cima e estava tudo colorido. Além disso, as pessoas estão seguindo suas vidas porque precisam, não tem outra opção, mesmo inalando fumaça, precisando andar três vezes mais para chegar nas embarcações. Elas precisam seguir trabalhando, apesar de tudo”.

Registros feitos pela fotógrafa Nathalie Brasil mostram uma Manaus impactada pela seca e pela fumaça (Fotos: Nathalie Brasil).

Ela afirma que, como fotojornalista, tem o dever de registrar a estiagem, além de o trabalho ser uma forma de mostrar essa realidade para as pessoas que não estão na Amazônia. “Sempre morei em Manaus, nasci aqui e acompanho muitas coisas que acontecem na cidade. A estiagem não seria diferente, ainda mais nessa proporção. Considero que meu trabalho pode chegar em muitas pessoas que não conhecem o Amazonas e pelas minhas fotografias elas podem conhecer e refletir sobre o norte do país”.

Para Juliana Pesqueira, fotógrafa freelancer há 11 anos e subeditora de fotografia na Amazônia Real, a responsabilidade é registrar com dignidade as pessoas que estão em condições de vulnerabilidade extrema na seca. “Pensar em como as imagens podem transcender as telas para que as pessoas entendam a Amazônia como um ecossistema formado por todos que aqui habitam, desfetichizar a imagem da Amazônia como um lugar sempre rico, belo e sem problemas”, destaca.

Dona Inácia, moradora da aldeia Branquinho, mostra o impacto da seca na única fonte de água potável para sua família. Foto: Juliana Pesqueira/ Amazônia Real).

Juliana colabora desde 2017 com o Coletivo Proteja em agendas de formação em comunicação popular e coberturas jornalísticas. Já participou de exposições no 10° Festival de Fotografia de Tiradentes, em Minas Gerais, e na Galeria do Largo, no Amazonas. Também cobre a seca pela primeira vez. A subeditora da Amazônia Real acompanhou a jornalista Elaíze Farias, cofundadora e editora de conteúdo da agência de notíciasem uma visita à aldeia Branquinho, no rio Tarumã-Açu, no começo de outubro. A intenção foi ver de perto os impactos da seca extrema na vida das comunidades rurais e ribeirinhas. 

“Nessa pauta tivemos que puxar ao menos sete vezes o bote para desencalhar dos bancos de areia e andar mais duas horas adentro para chegar até a aldeia Branquinho. No caminho, além do cansaço extremo ocasionado pelo sol, foi possível ver uma vegetação diferente, o vapor que subia do chão encontrava a vegetação seca. Ela não estava se decompondo, estava seca, sem vida alguma, não havia sinal de vento, era apenas um trajeto seco, com folhas secas, e muito vapor subindo do chão”

O trajeto na comunidade foi guiado por lideranças indígenas que flagraram a devastação ambiental. “Eles mostravam uma roça seca, árvores que não floriram ou deram frutos e as nascentes, onde puxavam água para beber, estavam secas”.

Cobertura feita para a Amazônia Real: visita à aldeia Branquinho, no rio Tarumã-Açu. No trajeto, lideranças e equipe da Amazônia Real tiveram que andar cerca de 2 km até a sede da comunidade (Fotos: Juliana Pesqueira/ Amazônia Real).

Para ela, poder trabalhar imageticamente  sobre os impactos reais causados pela crise climática é contribuir para a reflexão de que existem pessoas que moram na Amazônia, com modos de vida e cultura específicos, e que dependem de um ecossistema equilibrado para a subsistência. 

Stéffane Azevedo é jornalista, fotógrafa e pós-graduanda em Direitos Humanos no Contexto de Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais. Com experiência na área socioambiental, hoje ela atua de forma independente e foi assistente de câmera do programa Profissão Repórter na cobertura da seca no Amazonas.

A jornalista fotografou nas proximidades do município de Tefé, interior do Amazonas. Entre as aldeias e comunidades ribeirinhas que visitou estão a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, nas comunidades Boca do Mamirauá e as aldeias Vila Alencar Porto Praia, a uma hora de distância de Tefé em tempo de cheia. Ela foi também à aldeia Arauiri, do povo Kokama, uma comunidade que está totalmente isolada. 

“O que chama mais atenção é a invisibilidade das aldeias próximas à região de Tefé, um apagamento das histórias e das pessoas pela sociedade civil e, principalmente, pelo poder público. As pessoas que moram em Tefé não fazem a mínima ideia sobre onde fica grande parte das aldeias, o que me choca, por essas aldeias serem tão próximas da cidade”, diz.

Indígenas sofrem com o esquecimento por parte do poder público, na aldeia Arauiri. Saindo do lago Tefé em direção à aldeia foi necessário 1h20 de voadeira, 50 minutos de caminhada e 15 de rabeta. Registro feito em 20 de outubro (Foto: Stéffane Azevedo).

Stéffane direciona o olhar às crianças e mulheres, muito prejudicadas pelos impactos ambientais. Nos últimos meses, a jornalista acompanhou de perto o percurso que crianças e adolescentes fazem para chegar em suas escolas e a luta das professoras para conseguir recursos nas aldeias indígenas.

“Acho que vale sempre o questionamento: quem enxerga de fato a Amazônia? Quem está fazendo alguma coisa por essas pessoas? É sempre nós por nós! Nessa região os que mais sofrem pelo apagamento são os povos indígenas. Quem amplifica as vozes das populações indígenas?”, questiona.

O olhar das mulheres, que são as mais afetadas pelas mudanças climáticas, diz Stéffane, possibilita destacar quem é afetado todos os dias. “Quero trazer à tona o que atravessa as mulheres na Amazônia em meio à seca extrema”.  

Inclusão da diversidade de gênero

Apesar da atuação e participação de cada vez mais mulheres e pessoas trans e não-binárias na cobertura da seca histórica na Amazônia, as imagens e fotos de homens, principalmente aqueles que são brancos e cisgêneros, ainda são priorizadas na grande mídia e em outros veículos de comunicação. “Nossos corpos, nossa identidade e gênero são nossas escolhas individuais. Somos o que quisermos ser. Isso não corresponde às nossas capacidades. Existe um local confortável de achar que os homens cis são insubstituíveis, principalmente em determinados tipos de coberturas fotográficas”, alega o fotógrafo, cineasta, diretor e produtor Grazi Praia. 

Pessoa não-binária, Grazi atua na fotografia há 13 anos e já foi premiado em quatro categorias no Pirarucurta Festival de Cinema Universitário de 2019, além de participar de diversas exposições locais e nacionais. Agora, Grazi registra e cobre de forma independente a seca em Manaus. O fotógrafo diz que, ao se deparar com a fumaça na cidade desde o começo de outubro, decidiu agir, embora não tivesse recurso para ir a todos os locais que gostaria. 

Crimes Ambientais, 11 de outubro de 2023: Manaus com fumaça, lixo e seca. A desigualdade social aparece na falta de saneamento básico (Foto: Grazi Praia)

“No 11 de outubro senti que deveria tomar uma atitude com relação às queimadas na cidade, devido ao forte cheiro de fumaça e em meio a tudo isso que já começava a se alastrar, uma seca sem precedentes. Segui um trajeto que me levasse ao Centro Histórico de Manaus, Manaus Moderna e região do Educandos. No início de outubro também pude fotografar as regiões do rio Cuieiras, que já sofria com a seca”. 

Grazi afirma que uma das grandes dificuldades em relação a essa cobertura é conseguir apoiadores para financiar os deslocamentos. Suas saídas são bancadas do próprio bolso e exigem improvisos. “Sou meu maior apoiador nesses casos, é preciso correr riscos, nem tudo é tão confortável sempre. Então eu mesmo chamei um aplicativo de moto e fui mediado pelo mínimo que eu poderia fazer naquele momento, documentar os fatos com a sensibilidade do olhar. Tive a sorte do motorista ser uma pessoa que apoiou a ideia”.

Crimes Ambientais, 11 de Outubro 2023: Manaus sem perspectivas horizontais por causa da fumaça (Fotos: Grazi Praia)

O fotógrafo, que não estava acostumado a fotografar a natureza degradada, foi atravessado pela dor ao clicar as imagens. “Pairava então um clima distópico e apocalíptico, da mais pura realidade vivida naquele momento. As condições não eram adequadas, este era o problema. Diante de nossos olhos, crimes ambientais levam o rio embora. O rio que estava sendo tão maltratado pelo garimpo ilegal. Enquanto fotografava, eu me perguntava: a Amazônia está à venda?’”, lembra.

Ele acredita na inclusão que abre “caminhos, frestas, diálogos e respostas” como contraponto à escolha pela cobertura feita por homens cis. “Precisamos de novos caminhos de pensamento, reflexão, conexão com a natureza e com nós mesmos como humanidade. Mais amor, respeito, união, pensamento crítico sustentável e principalmente o fortalecimento da educação ambiental e de medidas de fiscalização”.

Stéffane Azevedo considera “assustador” o mundo da fotografia e do audiovisual ser dominado pelos homens. Na maioria de suas coberturas, ela é acompanhada por homens, “até aqueles que se acham superiores aos trabalhos das mulheres”, afirma. No seu último trabalho, relata um caso de censura.

“Um dos fotógrafos não queria que eu enviasse minhas fotos para a imprensa, apenas as fotos dele. Já que eu estava cuidando da parte da assessoria de imprensa, ele se achou no direito de me reprimir e dizer que eu não poderia tirar fotos, mesmo eu sendo fotógrafa e documentarista”.

A fotógrafa destaca que ainda há um longo percurso no mundo da fotografia para ser percorrido, principalmente quando se trata de visibilidade nos veículos de comunicação tradicionais. ”Precisamos nos unir enquanto mulheres nas produções no mundo audiovisual, convidar sempre mais mulheres para compor o quadro das coberturas de reportagens. As barreiras são frequentes e sempre vão existir, infelizmente”.

Furar a bolha machista

Seca em Tefé revela bancos de areia que dificultam a navegação na região (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace).

Fotojornalista há quase 30 anos, Marizilda Cruppe cobre temas relacionados ao meio ambiente, desigualdade social, direitos humanos, saúde e gênero. Coofundadora do primeiro coletivo internacional de fotógrafas, o EVE, duas vezes jurada e nominadora por vários anos do World Press Photo, maior e mais importante concurso e fundação de apoio ao fotojornalismo. Trabalhou no jornal O Globo e, desde 2011, é independente e colabora com organizações humanitárias e ambientais como Greenpeace, Cruz Vermelha Internacional, Médicos Sem Fronteiras, Amazônia Real, Anistia Internacional, entre outros. Suas fotos já foram publicadas no New York Times, The Guardian, National Geographic France e revistas brasileiras, como Trip, TPM e GQ. Relata que na sua “microbolha” de fotojornalista sempre viu e ainda vê pouca diversidade nas equipes.

“Eu percebo que a maior parte dos grandes veículos de comunicação com fins lucrativos, jornais e agências de notícias, sejam nacionais ou estrangeiros, costumam contratar o mesmo perfil de profissional, que é o homem hetéro, cis e branco. Quando contratam mulheres, a maior parte ainda é branca. É uma constatação, basta ler os créditos”, declara.

Para mudar esse cenário, ela diz que é preciso pensar na diversidade na hora de contratar um profissional e também na hora de recomendá-lo. “Tem uns bons anos que costumo recomendar profissionais mulheres (trans, não-binárias etc) e de preferência não brancas. Não adianta ter um discurso favorável à diversidade se na hora de indicar alguém o mesmo perfil de profissional de sempre prevalece. Essa é uma estatística informal que faço a partir da minha observação do mercado do fotojornalismo especificamente”. 

Marizilda cita como exemplo recente um convite feito pelo TEDx Amazônia para  fotógrafas e fotógrafos locais exporem em painéis eletrônicos nos intervalos das palestras. “O pagamento seria feito em forma de visibilidade ao trabalho e ingressos para o evento. Como esse tipo de moeda não paga os meus boletos e eu moro em Manaus, o que não faz de mim uma local, eu não aceitei. Mesmo todos os elogios ao meu trabalho não foram suficientes para que eu pudesse receber os convites para as palestras sem precisar dar nada em troca. Não julgo quem aceita proposta desrespeitosa, apenas lamento, pois somente atitudes coletivas podem melhorar o nosso mercado”, diz. 

Nathalie Brasil acredita que na mídia tradicional o trabalho de mulheres  que cobrem a crise climática na Amazônia tem pouco espaço. ”O que vi repercutindo foram materiais de fotógrafos homens”, afirma. Para ela, em uma sociedade estruturalmente machista, o trabalho das mulheres que cobrem a seca histórica não é a primeira opção. 

“Está normalizado não contar com mulheres. Quando as mulheres produzem, a divulgação é mínima, no sentido de pautas desafiadoras, porque de fato ser fotojornalista na Amazônia é desafiador só pela nossa região em si”.

“Que bolhas são essas que precisamos furar? Como fazer para serem reconhecidas por outras agências?”, indaga Juliana Pesqueira. A fotógrafa confessa que precisou lidar com resquícios de misoginia em seu trabalho registrando a Amazônia brasileira. “Um dos maiores desafios foi ser lida como frágil, incapaz e que não iria aguentar as dificuldades logísticas que muitos trabalhos oferecem. Felizmente, nunca tive problemas em realizar as coberturas em campo, o trabalho que tive foi de explicar que eu era capaz”.

Muitas coberturas que Juliana realiza são pautadas por mulheres. Ela diz que seus trabalhos nos últimos anos também aconteceram por meio de indicações vindas delas. “Essa mudança de comportamento e de fortalecimento das redes de contato tem ajudado muito a furar as bolhas. Precisamos de mais mulheres ocupando esses espaços, pluralizando imagens, contribuindo para discussões importantes na fotografia e sua responsabilidade social. Precisamos de mais mulheres do Norte sendo referência para nossa região”.

Samara Souza defende que o debate sobre a presença de mulheres na fotografia e nas coberturas de eventos climáticos extremos tem se intensificado, mas não reflete em boa parte dos veículos de comunicação. “Sinto uma lógica de que os trabalhos masculinos e sudestinos construíram uma boa parte da referência visual de como retratar a Amazônia e esse fortalecimento entre eles não abre espaço para a diversidade de olhares. Há até mesmo mulheres que preferem confiar no trabalho de homens para acompanhá-las”.

Desde o começo de sua trajetória documental da seca, foram poucas as vezes em que Samara esteve acompanhada por outras mulheres nas equipes. Em locais mais afastados, nenhuma mulher fazia parte do grupo de fotografia e audiovisual na cobertura. “Mais do que isso, já entrei em trabalhos sendo a única mulher de toda a viagem. É mais comum do que imaginam”.

A fotógrafa afirma que esses espaços são majoritariamente masculinos e que os homens sequer pensam sobre a ausência de mulheres. A falta de oportunidades e a desvalorização impactam diretamente na remuneração das profissionais.

“Em Manaus, ainda é possível fazer coberturas com mulheres, mas são duas ou três no meio de uma equipe predominantemente masculina. E chega até a ser mais intimidador”, relata Samara.

Desafios da cobertura

Do lago Tefé até a aldeia Porto Praia foi preciso mais de uma hora de voadeira e 40 minutos de caminhada. Em período de cheia, o percurso é feito em 50 minutos de voadeira (Foto: Stéffane Azevedo).

Os desafios e dificuldades são compartilhados pelas profissionais em campo, principalmente as que atuam de forma independente. Na seca, as fotojornalistas enfrentam uma logística cara e perigosa, especialmente para navegação nos rios. Segundo Marizilda Cruppe, a maior dificuldade para cobrir a seca é o custo de deslocamento. “É só pensar que no Amazonas cabem quatro Alemanhas. As estradas aqui são os rios e estamos vivendo uma seca histórica”, reforça a fotojornalista, que, apesar de ter experiência, equipamento (incluindo drone) e contato com pessoas que querem contar suas histórias, não tem como bancar os custos de viagem sem saber se vai conseguir vender seu trabalho. 

“Até a pandemia eu podia fazer isso, mas agora não posso mais me dar a esse luxo. E acredito que o mesmo aconteça com as outras mulheres. Essa situação me causa uma certa angústia, porque a janela para essa documentação é curta e é imprescindível guardar essas histórias para o futuro. Quando o inverno chegar já será futuro e essas imagens serão históricas”, diz.

Para Samara Souza, a principal dificuldade são as longas distâncias percorridas durante as coberturas, o que causa esgotamento físico. Com viagens mais lentas, os barcos precisam pegar caminhos maiores, logo os gastos com combustível e insumos também aumentam. Outro ponto de dificuldade é o apoio financeiro e a remuneração pelo trabalho. 

“O tempo de caminhada para subir nas comunidades também é maior, os barrancos são grandes armadilhas e se você não estiver atento, tudo se torna bem cansativo”, afirma. É preciso ser contratado para fazer coberturas e chegar em locais mais distantes, de forma independente é inviável você custear a logística”.

Lago da Cabaliana, em Manacapuru (AM). Em 2023, estados da Amazônia enfrentam uma forte estiagem, que secou leitos de rios e lagos em diversos municípios, deixando populações isoladas e animais mortos. (Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace).

Nesse processo, a logística e a segurança das viagens são impactadas. Em boa parte dos municípios amazônicos o acesso é via fluvial, de expresso ou barco de linha. Sair sozinha para cobrir pautas, com equipamentos, pode render situações de desconforto e medo.

Por causa da segurança, Nathalie Brasil prefere estar acompanhada em suas coberturas. “Já fui sozinha para outras pautas ao longo da minha carreira e é perigoso. Estar com alguém, especificamente homens, dá uma sensação maior de segurança. Nas últimas saídas, chamei meu namorado e ou um colega fotógrafo”.

Além da segurança, Nathalie também tem dificuldade para acessar lugares distantes de Manaus. Para isso, precisaria viajar de avião, barco ou lancha. “Seria um custo alto, então dessa vez não foi possível”.

Stéffane Azevedo divide com as outras fotógrafas a insegurança de ir e vir sozinha para lugares mais distantes, além da falta de reconhecimento do seu trabalho e a dificuldade em relação ao deslocamento. 

“O deslocamento é a pior parte. Por exemplo, na aldeia Arauiri pegamos uma voadeira e passamos quase duas horas para chegar próximo ao local, depois andamos pela mata fechada 50 minutos e depois pegamos uma rabeta e passamos mais 20 minutos. Na maioria das aldeias precisamos fazer percursos que são extremamente desgastantes”.

Juliana Pesqueira aponta que, para além das dificuldades de logística, segurança e financeiras, há o desafio de conseguir recursos para cobrir pautas com qualidade, sensibilidade e a atenção que merecem. ”Muitos veículos não compreendem o desafio logístico da região e o orçamento que precisam empenhar para cobrir a seca, o que faz com que muitos não comprem a pauta, refletindo diretamente no apagamento da história sobre o assunto”, finaliza.

  • Seca no município de Tefé revela bancos de areia que dificulta a navegação moradores ficaram isolados (Fotos: Marizilda Cruppe/ Greenpeace).
  • Trecho do rio Tefé na Comunidade Porto Praia, do povo indígena Kokama, moradores ficaram isolados (Foto Marizilda Cruppe/ Greenpeace).
  • Rio Negro no Parque Nacional de Anavilhanas, em Manaus, Amazonas, estiagem, que secou leitos de rios e lagos (Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace).
  • Lago do Padre, em Manacapuru. Em 2023, estados da Amazônia enfrentam uma forte estiagem, que secou leitos de rios e lagos (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace).
  • Saída do lago de Tefé em direção ao rio solimões no final do mês de setembro ( Foto: Stéffane Azevedo)
  • Botos cor-de-rosa e tucuxis foram encontrados mortos no logo de Tefé no mês de setembro (Foto: Stéffane Azevedo).
  • Seca no Amazonas, município Cacau Pirera no dia 30 de setembro ( Foto: Nathalie Brasil).