“É justo não pagar uma dívida ilegítima e imoral?’, pergunta Nobel da Paz.

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“Mais que uma dívida externa, já é uma dívida eterna, matematicamente impagável, por mais que se tenta com um alto custo em vidas humanas e sacrificando o desenvolvimento do país. Nunca pode ser justo que se privilegie o capital financeiro em detrimento da vida dos povos”, escreve Adolfo Pérez Esquivel, em carta dirigida ao juiz Thomas Griesa. A carta do Prêmio Nobel da Paz argentino está publicada no sítio América Latina en Movimiento – ALAI, 27-06-2014. A tradução é de André Langer.

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/532782-perez-esquivel-escreve-para-griesa-e-justo-nao-pagar-uma-divida-ilegitima-e-imoral

 

 

Eis a carta.

Ao Sr. Thomas Griesa
Juiz do Tribunal Federal do Distrito Sul de Nova York, Estados Unidos

Receba a fraterna saudação de Paz e Bem.

Mais do que dirigir-me a você como juiz que intervém em uma causa que há tempos preocupa o nosso povo, quero fazê-lo como pessoa. Quero poder contribuir mais livremente para a reflexão sobre a situação que se produziu na República Argentina, pelas pretensões de um grupo de financistas possuidores de poucos bônus da dívida externa. Eles querem a devolução 100% dos mesmos, de maneira que terá um grave impacto sobre a vida do povo argentino, tendo-os comprado por centavos e sem nunca ter investido para o seu bem.

Espero, Sr. Griesa, que compreenda a situação vivida pelo nosso povo e as consequências sociais, econômicas e políticas que tem o pagamento desta dívida imoral e injusta para as pessoas e comunidades mais necessitadas.

Deve ter presente que os bônus cujo pagamento atualmente se discute, estão manchados com sangue das vítimas da . Fazem parte de uma dívida contraída sem consultar o povo e que nunca chegou a suas mãos. Fazem parte do endividamento que depois foi imposto nos anos 1990, inclusive renunciando à soberania e cedendo jurisdição de maneira inconstitucional a tribunais estrangeiros como o seu, supostamente para saldar as dívidas anteriores.

Por isso, afirmamos que é uma dívida ilegítima e injusta. Por trás dos números existem rostos que nos questionam e interpelam, de crianças, jovens, homens e mulheres vítimas da social e estrutural, do empobrecimento, da miséria e exclusão social que afetam milhões de seres humanos em nosso país, assim como também na América Latina e no mundo.

Estou certo de que Você não ignora isto, assim como não ignora o peso da especulação financeira na produção destas situações. Mais que uma dívida externa, já é uma dívida eterna, matematicamente impagável, por mais que se tenta com um alto custo em vidas humanas e sacrificando o desenvolvimento do país. Nunca pode ser justo que se privilegie o capital financeiro em detrimento da vida dos povos.

É por isto também que, junto com muitos outros, há anos viemos lutando contra o pagamento destas dívidas ilegítimas, exigindo uma auditoria oficial das mesmas, a aplicação das leis argentinas, a anulação da cessão de jurisdição e que não se continuem estas práticas inaceitáveis com os novos bônus, contratos e tratados que continuam a ser assinados.

Sr. Griesa, não quero colocar em dúvida a sua ação como juiz, mas me preocupa a cega. Você sabe muito bem que nem toda a lei é justa e que muitas vezes se confunde o legal com o justo, ou não se leva em conta a situação dos povos e são tratados como algo abstrato e distante. Você deve conhecer a obra de Henry Thoreau, quando assinala que é preciso obedecer à lei; igualmente, é necessário resistir à lei injusta até conseguir sua mudança. Parece-me uma reflexão pertinente com relação a estes poderosos financistas, que para suas políticas de verdadeira rapina, buscam apoio onde não deveriam encontrá-lo.

Com isso não se deixa de lado as omissões e os erros cometidos pelos sucessivos governos da Argentina, peloParlamento e pelo nosso Poder Judiciário, no tratamento desses bônus e de toda a dívida. Apesar de reconhecer, desde os tempos da ditadura já há mais de 30 anos, a ilegitimidade e ilicitude de grande parte da dívida gerada, ninguém fez o necessário – incluindo, por exemplo, uma auditoria – para separar o legítimo do ilegítimo, o legal do ilegal, para evitar que se siga exigindo do povo argentino o enorme custo de pagar o que não deve.

Não sei se Você está a par de que existe em nosso país uma decisão judicial de 2000, que estabelece a fraudulência e a arbitrariedade da dívida que originou os bônus atualmente em posse dos fundos especulativos, que buscam obter o que em justiça, não lhes corresponde. Existem, além disso, denúncias, cuja investigação judicial ainda está aberta, com relação a esses mesmos bônus.

De acordo com as leis da nossa República e o direito internacional, são dívidas verdadeiramente nulas. Os Princípios Reitores sobre a Dívida e os  nos recordam que é responsabilidade de cada credor e devedor, investigar e não pagar as dívidas contraídas de maneira injusta.

Esta dívida é uma herança indesejada e pesada que representa uma grande carga de dor e sacrifícios. Transformou-se em um mecanismo que leva em si à dominação e à submissão de todo um povo.

O país quer e deve cumprir com suas responsabilidades e obrigações. Por isso, é necessário aplicar a lei, mas sempre sobre a base de distinguir entre o legal e o legítimo, a lei e a justiça. É necessário, além disso, reconhecer que segundo o direito, tem prioridade a “dívida interna com o povo”: a luta contra a fome, a pobreza e a marginalidade de grandes setores sociais, os desafios da educação e saúde, que as crianças não morram de fome e doenças evitáveis e poder alcançar uma vida digna sem que roubem a esperança de nossos jovens.

Estou certo, Sr. Griesa, de que Você compreende o valioso da oportunidade que tem para velar pela justiça, e não só pelas leis que alguns têm mais poder que outros para impor. É necessário mudar leis nos Estados Unidos, em nosso país e em muitos outros, para evitar situações desta natureza. Enquanto isso, esperamos que prime a justiça e que os direitos daqueles que ainda não foram ouvidos nos tribunais, tenham a prioridade que merecem.

Obrigado por permitir-me estas reflexões. Caso possa contribuir em algo, aprofundar qualquer dos elementos assinalados, estou à sua disposição.

Adolfo Pérez Esquivel
Prêmio Nobel da Paz e Presidente,
Diálogo 2000 – Jubileu Sul Argentina e do Serviço Paz e Justiça – SERPAJ
Buenos Aires, 26 de junho de 2014.

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