Domitila Barrios de Chungara: ”uma ícone latino-americana”. Entrevista especial com Moema Viezzer.

“Domitila teve um papel fundamental na resistência às ditaduras não somente no centro mineiro, mas também no âmbito nacional, particularmente em sua participação nas marchas contra a ditadura e nas duas greves de fome de que participou”, relembra a presidente da Rede Mulher de Educação.

 

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Confira a entrevista.Domitila

Pouco mais de 30 anos depois de apresentar a história de Domitila Barrios de Chungara (foto) para o mundo, através das páginas de “Se me deixam falar… testemunho de Domitila uma mulher das minas da Bolívia”, a educadora Moema Viezzerdiz que a parceria com a boliviana lhe representou “a porta de entrada numa aproximação totalmente nova em relação ao tema trazido pelas Nações Unidas da Tribuna: o das relações de gênero como relações sociais que estruturam as sociedades humanas e abarcam as relações entre mulheres e homens das diferentes classes sociais, abarcando as diferentes variáveis que constituem o cotidiano das pessoas”.

A convite da IHU On-Line, Moema Viezzer concedeu a entrevista a seguir por e-mail na qual recorda a trajetória política desta cidadã, que foi uma voz de resistência durante a ditadura boliviana e fonte de inspiração no enfrentamento da luta de classes e de gênero. “Em relação à ‘alfabetização política’, Domitila foi um exemplo de que não basta ter instrução para entender o que acontece num país. Coincidindo com Brecht em seu manifesto sobre ‘O analfabeto político’, ela reforçou a necessidade de uma educação que transcende os braços da escola e que precisa perpassar a escola da vida”, disse a autora, ao relembrar da militante que faleceu no início deste mês.

Ex-exilada política, Moema também comenta o processo de redemocratização na América Latina e os rumos da democracia nas duas últimas décadas: “Penso que hoje, tanto na Bolívia como no Brasil e em outros países que se libertaram de anos de ditadura militar, continuamos dando passos importantes, mas ainda insuficientes para uma democracia real dentro da democracia formal”. Para ela, o desafio do exercício da cidadania “se expressa principalmente na dificuldade de repensarmos as formas de organização da sociedade civil e a função do Estado. E isso requer cidadãos e cidadãs comprometidos e preparados para viver a cidadania na revolução que significa absorver as mudanças trazidas pela era da informação”.

Moema Viezzer (foto), jornalista, é uma das idealizadoras da Rede Mulher de Educação, criada em 1980 para promover e facilitar a interconexão entre grupos de mulheres em todo o Brasil, constituindo uma rede de serviços em educação popular feminista.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como conheceu Domitila Chungara e em que sentido ela inspirou seu trabalho na frente da Rede de Mulheres?

Moema Viezzer – Conheci Domitila Barrios de Chungara em 1975 quando estava exilada no México. Foi por ocasião da Tribuna Internacional da Mulher, fórum paralelo à Primeira Conferência Internacional das Nações Unidas sobre Mulher, Desenvolvimento e Paz, realizada na cidade do México. Domitila compareceu a convite de uma cineasta brasileira e eu compareci junto da delegação de mulheres bolivianas exiladas no México.

Na Tribuna, estabeleci um contato particular com Domitila ao me oferecer como intérprete voluntária para jornalistas de várias partes do mundo que a procuravam para entrevistas, o que me permitiu acompanhá-la mais de perto. Daí foi surgindo a ideia de dar mais amplitude à sua mensagem, uma vez que na Tribuna só se podiam usar dois minutos por vez; as entrevistas iam para os países nos seus idiomas e pouco ficava por aqui. Foi dali que nasceu em mim a vontade e a proposta de colocar em livro um depoimento mais articulado de Domitila.

IHU On-Line – O que foi o Comitê das Donas de Casa da Mina Siglo XX, do qual Domitila participava?

Moema Viezzer – O Comitê das Donas de Casa da Mina de Siglo XX era um comitê de apoio ao sindicato local daquele centro mineiro o qual, por sua vez, tinha muita incidência na Central Obrera Boliviana – COB. Na visão de Domitila, o Comitê devia ser não somente apoio, mas também porta-voz da classe trabalhadora mineira da Bolívia e manter sua autonomia em relação aos partidos políticos. Essa sua afirmação, que está no livro, custou-lhe bastante e ocasionou-lhe problemas diversos devido à visão político-partidária dos dirigentes sindicais.

IHU On-Line – No palanque do Ano Internacional das Mulheres, no México, em 1975, Domitila disse que a luta das mulheres não podia ser contra o homem, mas contra o sistema de dominação econômico, político e cultural dos povos. A partir deste discurso, que novas perspectivas ela propôs para pensar a questão política, de gênero e de classe?

Moema Viezzer – O forte no pensamento e atuação da Domitila era a luta de classes. Nisso ela havia se formado no contexto da luta da classe operária boliviana dentro das orientações e estratégias da COB. Seria muito dizer que Domitila tinha consciência explícita de gênero, apesar de trazer tantos elementos para análise dessa questão, particularmente sobre a mais-valia produzida pelo trabalho das mulheres donas de casa dos acampamentos mineiros onde, primeiramente, só os homens podiam ser operários.

IHU On-Line – Mas ela chegou a propor que as mulheres transcendessem a luta de gênero? Como vê esse debate atualmente?

Moema Viezzer – Eu não diria que Domitila propunha isso de forma consciente e organizada. A proposta dela era: mulheres e homens juntos contra o capitalismo, mas sem clareza de como a subordinação da mulher ao homem – que a classe trabalhadora mantinha em sua cultura – também era uma das formas de manter relações de dominação e opressão, características inerentes do capitalismo. O trabalho que fizemos em parceria e que resultou no livro “Se me deixam falar… testemunho de Domitila uma mulher das minas da Bolívia” representou para mim a porta de entrada numa aproximação totalmente nova em relação ao tema trazido pelas Nações Unidas da Tribuna: o das relações de gênero como relações sociais que estruturam as sociedades humanas e abarcam as relações entre mulheres e homens das diferentes classes sociais, abrangendo as diferentes variáveis que constituem o cotidiano das pessoas: raça/etnia, idade, espaço geográfico, cultura.

Há que lembrar que o Primeiro Seminário Internacional sobre Relações de Gênero, fruto de dez anos de trabalho das pesquisadoras inglesas que criaram esta categoria de análise, foi realizado em 1978, três anos após a Tribuna Internacional da Mulher no México. Antes, praticamente não se falava em relações de gênero nem no movimento feminista. Falo nesse sentido das relações estabelecidas ao longo de séculos entre homens e mulheres que nos levam a rever as relações entre a produção/consumo de bens e serviços, com ênfase nos valores simbólicos que as costuram.

Como já naqueles tempos repetia Kate Young: “a ideologia tem carne e osso: ela se materializa nas condições vividas pelas pessoas e pelos diferentes grupos humanos”. Foi nesse contexto que o fenômeno da subordinação da mulher ao homem começou a afirmar-se como uma análise sobre “um jeito de ser” entre mulheres e homens convivendo em sociedade, independentemente das variáveis que adquiriu ao longo de milênios.

Bipolaridade

Na Tribuna da Mulher no México, o que havia era uma espécie de bipolaridade entre a luta de classes e a luta das mulheres. Essa bipolaridade se manifestava principalmente em dois blocos mais visíveis: por um lado, o das mulheres exiladas latino-americanas, que partilhavam a defesa da luta de classes no bloco monolítico da classe trabalhadora conectada com a luta contra o imperialismo norte-americano. E, por outro lado, as feministas de vários países insistindo na necessidade de “abrir a cortina” para desvendar a realidade da situação da mulher, da opressão da mulher, da condição feminina. Mas isso não lograva se transformar num diálogo.

Nunca esqueço o encontro patético entre uma feminista norte-americana que procurava conversar com Domitila explicando seu compromisso com a paz no mundo e tudo o que ela tinha feito com outras mulheres pelo fim da guerra do Vietnã. E Domitila repetia: “Mas os Estados Unidos não mudaram”. Era tudo muito complexo e, inclusive, havia bastante dificuldade por parte das latinas para se situarem adequadamente frente à realidade diversa do povo-estado.

Na Tribuna não apareceu com suficiente visibilidade o que começou a ser trabalhado principalmente a partir da década de 1990: as relações de gênero – ou as relações entre mulheres e homens vividas em sociedade –, que sempre vêm articuladas com outras variáveis, tais como classe social, raça/etnia, gerações. Foi um longo caminho percorrido desde então. E para Domitila também representou um longo caminho, principalmente pelo seu reconhecimento ao apoio que teve das feministas em todos os eventos internacionais dos quais participou (na Suécia, Dinamarca, Alemanha e outros).

IHU On-Line – Domitila foi uma das grandes incentivadoras do exercício da cidadania. Como a senhora percebe o exercício da cidadania e os rumos da democracia atualmente? Ainda temos dificuldades de nos compreendermos como cidadãos pertencentes do mesmo planeta? Quais os desafios postos ao exercício da cidadania?

Moema Viezzer – Efetivamente, Domitila sempre defendeu o direito de cidadãos e cidadãs, ressaltando, principalmente nos tempos da ditadura, o direito à voz do povo, à sua organização, ao direito à vida com dignidade. Penso que hoje, tanto na Bolívia como no Brasil e em outros países que se libertaram de anos de ditadura militar, continuamos dando passos importantes, mas ainda insuficientes para uma democracia real dentro da democracia formal.

Acredito que isso se deva ao fenômeno da , que não facilita necessariamente a compreensão da cidadania, principalmente em âmbito planetário que, como costuma repetir Frei Betto, é um fenômeno de “globocolonização”, no esquema do modelo neoliberal que se implantou homogeneizou planetariamente.

Os desafios postos ao exercício da cidadania local/planetária são inúmeros. Mas vejo que ele se expressa principalmente na dificuldade de repensarmos as formas de organização da sociedade civil e a função do Estado. E isso requer cidadãos e cidadãs comprometidos e preparados para viver a cidadania na revolução que significa absorver as mudanças trazidas pela era da informação.

IHU On-Line – Qual o legado de Domitila Chungara no que se refere à luta das mulheres e à concepção de que o povo precisava de alfabetização política?

Moema Viezzer – Eu vejo dois legados principais, com as necessárias complementações que se fazem necessárias. Uma delas é a imprescindível organização das mulheres, pois como ela costumava repetir: “sem as mulheres, a revolução fica pela metade”… “Se mais de 50% da população estiver adormecida”, nenhuma revolução verdadeira será possível para beneficiar a todos e todas.

Em relação à “alfabetização política”, Domitila foi um exemplo de que não basta ter instrução para entender o que acontece num país. Coincidindo com Bretch em seu manifesto sobre “O analfabeto político”, ela reforçou a necessidade de uma educação que transcende os braços da escola e que precisa perpassar a escola da vida.

IHU On-Line – Qual foi o papel político que ela desempenhou durante a ditadura boliviana?

Moema Viezzer – Domitila teve um papel fundamental na resistência às ditaduras não somente no centro mineiro, mas também no âmbito nacional, particularmente em sua participação nas marchas contra a ditadura e nas duas greves de fome de que participou. Cita-se a “greve de fome das cinco mulheres”, que foi peça fundamental para a queda do governo de Banzer pelo apoio massivo recebido de todo tipo de organizações do país.

No âmbito internacional, Domitila tornou-se uma ícone latino-americana da causa dos direitos humanos, principalmente após a publicação de “Se me deixam falar…”. O livro, que no princípio imaginávamos talvez constituir apenas um caderno a ser espalhado pelo continente junto das mulheres que viviam situações similares às de Domitila, acabou sendo uma publicação traduzida para 14 idiomas, o que rendeu muitos convites para Domitila em diferentes países.

IHU On-Line – O que diria em relação à luta das mulheres atualmente? Que avanços e limites visualiza?

Moema Viezzer – Não há dúvidas que avançamos enormemente desde 1975. Tivemos duas décadas das Nações Unidas com mais duas conferências mundiais, uma em Nairóbi (1985) e uma em Pequim (1995) as quais, entre outros, permitiram visualizar tais avanços não só a partir do número de participantes desses eventos internacional, mas também das numerosas organizações de diferentes classes sociais, com significativa representatividade das mulheres dos setores populares, e pelo número de conferências nacionais e regionais que chegaram à Cúpula das Nações Unidas. Igualmente, há incidência das mulheres nas outras conferências mundiais.

Mas é impossível, em poucos anos, passar uma borracha de milênios de relações desiguais criadas entre homens de mulheres, as quais as sociedades dos mais diversos tipos foram organizando e estruturando. Na nossa civilização, por exemplo, as leis que regiam o Império Romano reconheciam a mulher como propriedade do homem; quando foram substituídas pelo código napoleônico, passamos da condição de propriedade masculina para a condição de submissas à autoridade do homem: primeiro do pai (o pátrio poder) e depois ao marido (único chefe do lar). No Brasil, a Constituição que mudou estes termos legais foi promulgada há apenas 14 anos, em 1988, trazendo muitas pistas novas sobre diversas questões que apontam para a equidade de gênero. E isso tem repercutido significativamente em mudanças, hoje expressas num Plano Nacional de Políticas para Mulheres. Na Bolívia, há que lembrar, entre outros, que a organização das mulheres, particularmente as indígenas e camponesas, foi fundamental na virada histórica que o país logrou dar nas últimas eleições.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Moema Viezzer – Para mim, foi muito gratificante constatar que o trabalho que fiz junto com Domitila, dando a conhecer ao mundo o seu testemunho de vida, foi também uma oportunidade de ser solidária com nossos irmãos e irmãs da Bolívia. Isso porque a forma como organizei o testemunho de Domitila permitiu a muita gente, do mundo inteiro, entrar um pouco no coração da Bolívia, ouvir sua voz e constatar sua força. E em relação à causa das mulheres, esta “revolução mais longa”, como foi batizada por Juliet Mitchell, acabou sendo meu passaporte de entrada no movimento de mulheres ao qual dediquei muitos anos de minha vida e no qual ainda estou, unindo essa causa com as demais causas socioambientais.

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1 comentário

  1. UMA HISTORIA TAO SERIA E AI ENTRA O FEMINISMO OPORTUNISTA E ESTRAGA TUDO, ESTA PESSOA FOI UM GRANDE SER HUMANO E PONTO, ENQUANTO QUE A JORNALISTA SE APODEROU DA HISTORIA DELA PARA SE ALTO PROMOVER , A HISTORIA DA DOMITILA É UM RELATO REAL DE UMA VIDA QUE AS FEMINISTAS NEM DE LONGE SABEM O QUE É E TAMBEM NAO ESTAO INTERESSADAS EM SABER POIS É APENAS UMA BANDEIRA QUE AS PROJETAM E MAIS NADA