David Harvey, Piketty e a contradição central do capitalismo.

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Na opinião de Michael Roberts, é a “lei de Marx da rentabilidade [que] explica a contradição central do , não o erre (“r”) de Piketty, nem “a falta de meios de consumo” de Harvey. O artigo é publicado por Rebelión, 03-06-2014. A tradução é do Cepat.

 

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/531963-david-harvey-piketty-e-a-contradicao-central-do-capitalismo

 

 

Eis o artigo.

David Harvey é um reconhecido professor marxista de Antropologia e Geografia no Centro de Graduados daUniversidade da Cidade de Nova YorkHarvey é bastante crítico ao livro de Piketty. Reconhece que Pikettyproporciona dados de grande importância sobre a desigualdade da riqueza e das rendas nas principais economias capitalistas, desde que o capitalismo se tornou o modo dominante de produção e das relações sociais a partir de 1750. “O que Piketty, sim, demonstra estatisticamente (e deveríamos estar em dívida com ele e seus colegas por isso) é que o capital tendeu, ao longo de sua história, a produzir cada vez níveis maiores de desigualdade. Isto, para muitos de nós, não é notícia. Foi, além do mais, exatamente a conclusão teórica de Marx no Volume I de seu ‘O Capital'”.

Apesar disso, como aponta HarveyPiketty nada disse sobre as crises recorrentes de produção e de investimento do capitalismo. Piketty “não nos diz por que a crise de 2008 ocorreu e por que está levando tanto tempo para tantas pessoas saírem do duplo peso do desemprego e de milhões de casas perdidas, em uma prolongada execução hipotecária. Não ajuda a entender por que o crescimento é atualmente tão lento nos Estados Unidos em comparação com a China, e por que a Europa está travada em uma política de austeridade e em uma de estancamento”.

Então, Harvey nos diz que tudo o que Piketty deveria fazer é ler Marx. Se tivesse feito isso, diz Harvey, teria percebido que “no Volume II de O Capital (que Piketty também não leu e festivamente descarta), Marx enfatizou que a inclinação do capital a baixar os salários em algum momento restringiria a capacidade do mercado para absorver o produto do capital”. Nesse sentido, Harvey diz que a explicação das crises no capitalismo se encontra no Volume II de O Capital de Marx, e não no volume I ou III.

Na verdade, não há uma explicação das crises recorrentes do capitalismo que esteja presente no Volume II. Está sobretudo no Volume III, com a esquematização de Marx da lei de tendência da taxa de lucro em cair (LTCTG) e suas contratendências.

A explicação alternativa pelo “subconsumo” de Harvey não é nova nele. Em seu novo livro, que parece que vale a pena ler e que ainda não li, Harvey destaca o que ele vê como “as contradições no coração do capitalismo – inclinar-se, por exemplo, em acumular para além dos meios para investi-lo, seu imperativo de utilizar os métodos mais baratos de produção que leva a consumidores sem meios de consumo…”.

De fato, a posição de Harvey é que a lei de Marx da rentabilidade é irrelevante para a explicação da crise. Isto o leva a afirmar que a direção neoliberal para aumentar os benefícios nos anos 1980 não foi “ditada por qualquer lei matemática” (o que provavelmente significa a lei de Marx da rentabilidade). Cita Alan Budd, assessor econômico de Margaret Thatcher, que confessou, ‘em um momento de descuido', que as políticas de luta contra a inflação, nos anos 1980, foram “uma maneira muito boa de aumentar o desemprego, e o aumento do desemprego foi uma maneira extremamente desejável de reduzir a força da classe operária… o que desencadeou, em termos marxistas, uma crise do capitalismo, que recriou um exército de reserva de mão-de-obra e que permitiu aos capitalistas ter grandes lucros, desde então” (Budd).

Verdadeiramente, esta citação me faz pensar que a agenda neoliberal, em muito, atuou para restaurar a rentabilidade que havia chegado ao mínimo no pós-guerra, em fins dos anos 1970. Porém, ao que parece, segundo Harvey, a profunda recessão de dupla queda, nos anos 1980, que desvalorizou, destruiu capital e restaurou a rentabilidade, não tinha nada a ver com isso. No lugar disso, “tudo era política”.

Harvey critica Piketty por não ter se fixado em que a restrição na participação dos salários e o potencial ‘subconsumo', que era possível criar, foram superados por um aumento massivo da dívida das famílias: “onde está a demanda? Pikettyignora sistematicamente esta questão. Nos anos 1990, evitaram a resposta com uma grande expansão do crédito, incluindo a ampliação do financiamento de hipotecas nos mercados de alto risco (subprime). Porém, a bolha de ativos resultante foi obrigada a explodir, como ocorreu em 2007-2008, derrubando a Lehman Brothers e o sistema de crédito com ele”. Portanto, as crises são produto da falta de demanda. As bolhas de crédito podem compensar, mas apenas por um tempo.

Harvey pontua que “as crises não são eventos singulares. Embora tenha seus fatores desencadeantes evidentes, os movimentos tectônicos que representam demoram muitos anos para se resolver… Com a perspectiva do tempo, não é difícil encontrar abundantes sinais de problemas a surgir, muito antes que uma crise exploda completamente”. Contudo, para ele, os sinais da crise não se encontram em nenhum movimento da rentabilidade, mas, sim, em crédito, porque “a financeirização global da dívida-saturada e cada vez mais desregulada, que começou nos anos 1980 como uma forma de resolver os conflitos com o trabalho, ao facilitar a mobilidade geográfica e a dispersão, produz seu desenlace com a queda do banco de investimento Lehman Brothers, no dia 15 de setembro de 2008”.

Harvey identifica corretamente o defeito chave de Piketty como “uma definição errônea do capital. O capital é um processo, não uma coisa. Trata-se de um processo de circulação no qual, muitas vezes, o dinheiro é utilizado para fazer mais dinheiro – embora não exclusivamente – por meio da exploração da força de trabalho. Todo o pensamento econômico neoclássico (que é a base do pensamento de Piketty) se baseia em uma tautologia. A taxa de rendimento do capital depende de maneira crucial da taxa de crescimento, porque o capital se valoriza por meio do que se produz e não pelo que passou em sua produção”. Este é um destaque que James Galbraith e outros, entre eles eu, fizeram sobre Piketty: não reconhecer que o capital não é “a riqueza”. E isto faz a diferença. Como disse Harvey, se tirarmos a moradia e a riqueza imobiliária da medida do capital, a previsão de Piketty de um rendimento estável de “capital”, que é mais alta que a taxa de crescimento da tendência a longo prazo, não se sustenta.

Em um novo documento, Esteban Maito mostra precisamente isso. Usando os próprios dados de Piketty, descobre que é a lei de Marx da tendência da taxa de lucro em cair no tempo o que se confirma pela evidência, não um retorno estável dePiketty. Explica que, “na perspectiva de Piketty, o capital não está relacionado com a produção ou o processo de valorização”. Como sinônimo da palavra “riqueza”, qualquer bem ou serviço intercambiável no mercado é capital. Porém, as tendências descritas por Marx se referem à produção capitalista. Neste sentido, qualquer avaliação da teoria marxista, apesar de sua validação empírica, tem que considerar este aspecto básico em sua análise. De tal maneira, “as moradias” não devem ser consideradas como parte do capital, como bens de consumo particulares no lugar dos meios de produção. Considerações similares podem se estabelecer em outros casos, como “os ativos financeiros” (um circuito puro MM') ou “a terra”.

De fato, durante o último período (desde o máximo alcançado em meados de 1960), o retorno, inclusive de Piketty, do capital, tendeu a cair, em linha com a taxa de lucro marxiana, porque a terra e a propriedade residencial se tornaram menos significativas como parte da riqueza em comparação com as máquinas e a propriedade não residencial.

A lei de Marx da rentabilidade explica a contradição central do capitalismo, não o erre (“r”) de Piketty, nem “a falta de meios de consumo” de Harvey.

Piketty substitui a explicação social e política pela explicação tecnológica.

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/532031-piketty-substitui-a-explicacao-social-e-politica-pela-explicacao-tecnologica

 

O livro de Thomas PikettyO Capital no Século XXI (Editions du Seuil, Paris, 2013), tem uma massa de dados úteis. É neste nível que está na tradição de Angus Maddison (1926-2010), com seu famoso livro A Economia Mundial. Uma perspectiva do Milênio (em inglês, dois volumes, OECD, 2007). Um projeto que sua equipe continuou. Além disso,Piketty retorna ao tema da desigualdade com uma quantidade de dados, por exemplo, sobre a questão da relação entre a saúde e a desigualdade. Menciona-se neste sentido, entre outros, Richard Wilkinson com seu livro O impacto da desigualdade. Como tornar saudáveis sociedades doentias (publicado em 2006 em inglês, Ed. New Press).

A reportagem é de Charles-André Udry e publicada no sítio Sin Permiso, 01-06-2014. Charles-André Udry é economista marxista suíço, militante trotskista do Movimento Pelo Socialismo. É redator do sítio A l'encontre/La Breche. A tradução é de André Langer.

O trabalho de Piketty foi recebido com mais elogios nos Estados Unidos do que na FrançaPaul Krugman o elogiou noNew York Times. Também foi muito bem comentado pela BBC e pelo Financial Times.

No entanto, recebeu críticas muito pertinentes, por exemplo, de Doug Henwood, autor de Wall Street: como funciona e para quem? (Ed. Verso, 1998) e Depois da Nova Economia (Ed. New Press, 2003). Henwood, que trabalha para a classe dominante dos Estados Unidos, afirma: “Apesar de toda a sofisticação da obra de Piketty, seu pensamento político dificilmente pode ser descrito como complexo. Na essência, trata-se de ajudar para um debate racional e democrático de como organizar da melhor maneira a sociedade”. A base da sua teoria da distribuição da riqueza também o levou a centrar-se apenas na “luta contra a desigualdade” em matéria fiscal (no sentido de impostos, tanto diretos como indiretos). O que surge da quinta edição do seu livro A Economia da Desigualdade (Editions La Découverte, Paris, 2004). A luta pelos salários mais altos, reduzir a taxa de apropriação da mais-valia é um elemento inexistente em sua argumentação.

Por outro lado, vale recordar que Thomas Piketty foi um assessor relevante para a inclusão de medidas de “ajustes fiscais” no programa da socialdemocrata Ségolène Royal, em 2007, durante a campanha presidencial que ela perdeu paraNicolas Sarkozy. Agora, Royal entrou como ministra no novo governo abertamente pró-austeridade de Manuel Valls, nomeado pelo governo “socialista” de François Hollande, em março de 2014.

Do ponto de visto teórico, a primeira crítica que se pode fazer à obra de Piketty é a seguinte: Piketty estuda a relação social que permite a uma minoria captar uma parte crescente da renda nacional. Mas, nos fatores que são responsáveis por esta distribuição desigual domina a variável técnica (o progresso tecnológico), e não a mutante e flutuante luta entre o capital e o trabalho, embora mencione as mudanças no “poder de negociação do capital”. Ou seja, o capital como uma relação social entre explorados e exploradores não é levado em conta na história do capitalismo. Isto explica o apoio que tem de um economista como Paul Krugman, que, embora denuncia as desigualdades, nunca inclui em sua análise a luta e a exploração de classe.

A isto podemos acrescentar outros elementos. Na sua explicação da evolução da divisão entre lucros e salários, Pikettyfavorece uma explicação técnica: a substituição de trabalho por capital. Isto é consistente com o fato de que considera o capital e o trabalho como “fatores de produção”, de acordo com as normas da teoria econômica neoclássica. Entretanto, a questão central registrada nos Estados Unidos e na Europa a partir da década de 1980 é que o desemprego pesa sobre o equilíbrio do poder entre capital e trabalho, o que leva a reduzir os salários. Um fator causal fundamental como política e socialmente cegadora.

Mas Piketty substitui a explicação social e política pela explicação tecnológica. O economista e matemático Bernard Guerrien, autor de um notável Dicionário de Análise Econômica (2012), havia escrito um artigo muito rigoroso, já em 2010, intitulado “A estranha fascinação de Thomas Piketty pela teoria neoclássica da distribuição”.

A campanha favorável da imprensa “especializada” ao trabalho de Piketty – que contém, repito, uma grande quantidade de dados úteis – não é alheia à magnitude da crise capitalista internacional, à pobreza massiva, e à crescente desigualdade entre “o 1% e os 99%”. Portanto, expressa a vontade de algumas frações burguesas dominantes, com a ajuda inestimável das “forças progressistas” governantes (tão bem conhecidas na América do Sul), de conter os protestos populares. Acreditam que os “planos assistenciais” e uma “melhor distribuição” podem evitar possíveis explosões sociais.

Na Europa, enquanto isso, a troika (Banco Centro EuropeuUnião Europeia e Fundo Monetário Internacional) impõe – cada vez com maior brutalidade – medidas econômicas sociais destrutivas. Ao mesmo tempo que se apresentam certas “similitudes” com a década de 1930 – ascensão de uma extrema direita (que, não obstante, se diferencia do fascismo daqueles anos), e a aplicação de um “Estado de exceção” –, a tendência parece clara: governos mais repressivos. Independentemente da sua orientação política.

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