Da escravidão à autonomia: o cacau agroecológico

Cacau Orgânico

Cacau orgânico produzido coletiva e comunitariamente.

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Por Anelize Moreira, no website do MST

17/01/2022

Meu avô nunca comeu chocolate, conta um camponês cacaueiro. Outra diz que era proibido provar caroços da fruta. Em 2007, após gerações sob trabalho escravo, eles ocuparam fazenda na BA. Agora, abrem sua própria fábrica da guloseima.

Chocolate não tem data nem hora para ser desejado e consumido. Mas o que está por trás da produção da sua principal matéria-prima, o cacau? Como saber se o chocolate que a gente consome é fruto de um trabalho limpo e justo? Quem produz, de onde ele vem e como é o trabalho de quem vive do cacau? 

O fotógrafo Fellipe Abreu e a jornalista Patrícia Moll retrataram a história de famílias do  assentamento Dois Riachões que conseguiram sair da condição análoga à escravidão vivenciada por gerações anteriores por meio da produção agroecológica de cacau no sul da Bahia

“Meu avô nunca comeu chocolate, nunca, quem comia era o coronel. Ele morreu sem saber o que era chocolate”, conta o agricultor familiar Edivaldo dos Santos no documentário Dois Riachões, Cacau e Liberdade. 

“Eu quebrei muito cacau e eu não tinha direito de chupar um caroço de cacau, porque o cabo de turma estava do nosso lado, vigiando tudo”, afirma a assentada Luiza Batista. 

Edivaldo, Luiza e outros agricultores que romperam com o ciclo tradicional de produção pelos herdeiros dos coronéis das fazendas da Bahia no assentamento Dois Riachões, em Ibirapitanga, vivem 150 pessoas e a produção tem sido referência para outras comunidades que lutam pela reforma agrária no Brasil. 

Os agricultores ligados à Coordenação Estadual de Trabalhadores Assentados e Acampados (Ceta) ocuparam o local em 2007, mas só em 2018 houve a regularização da terra. No local além do cacau, eles plantam outras culturas, como frutas, hortaliças e grãos.

“Meu avô nunca comeu chocolate, nunca quem comia era o coronel. Ele morreu sem saber o que era chocolate”, conta o agricultor agroecológico Edivaldo dos Santos / Fellipe Abreu

Teresa Santiago, é agricultora do assentamento fala que a é a base de todo processo, e a comercialização é um dos tripés dessa luta. Eles conseguem escoar a produção nas feiras, com vendas diretas com o consumidor e por meio de programas federais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). 

Para a agricultora Teresa Santiago a liberdade foi construída a partir da luta pela terra, quando houve a transição de meeiros para donos do lote e da produção. 

“Você deixa de ser oprimido, deixa de ter ali alguém que vai mandar dizer o que você vai fazer para outra maneira de viver e construir coletivamente a luta pela terra. No documentário, quando a gente fala da soberania, é a soberania em todas as suas vertentes seja social, alimentar, na questão ambiental, produtiva e econômica.”, diz a agricultora.

Durante as gravações do documentário, Abreu explica que eles acompanharam as mudanças na comercialização. Ele conta que as amêndoas de cacau que antes eram vistas como simples commodities e baratas, passaram ser um produto com valor agregado.

“Então eles começaram a estudar fermentação e como agregar valor àquela amêndoa que produziam e começaram a vendê-la para marcas finas por um valor muito mais alto do que o cacau de baixa qualidade. Não satisfeitos, num segundo momento quando a gente estava lá filmando, eles já estavam construindo a própria fábrica de chocolate e dois anos depois inauguraram uma fábrica e lançaram o chocolate Dois Riachões”, conta um dos diretores.

O assentamento Dois Riachões atualmente produz, comercializa e tem uma marca própria de chocolate com o mesmo nome / Fellipe Abreu

Patrícia conta que a ideia do documentário surgiu por não ser uma história conhecida e pelo chocolate ser algo universal que interessa diversas culturas. Ela destaca a organização, e trabalho coletivo dessas famílias. 

“Eu me impressionei como eles trabalham em mutirão e tem a noção bem definida de trabalho coletivo.  Eles fazem tudo juntos, passam o dia na roça do seu Fulano, depois vão para a roça do seu Beltrano, sempre se divertindo e cantando enquanto fazem a quebragem. Também é lindo ver eles terem conseguido conquistar essa soberania alimentar e hoje cozinharem e produzirem os próprios alimentos e finalmente poderem comer o próprio chocolate”.

Para Abreu, com o atual contexto de ataque aos direitos socioambientais no Brasil é ainda mais importante trazer o debate temas como agroecologia e agricultura familiar que se recebessem mais fomento do poder público poderiam crescer ainda mais no país. 

O cacau já faz parte da história do Brasil e no sul da Bahia é um dos principais produtos agrícolas da região. A produção de cacau cabruca de Dois Riachões é um exemplo de como ter um sistema aliado à conservação ambiental. A produção agroecológica considera não só o alimento livre de veneno, mas a preservação de espécies florestais nativas, manutenção dos recursos hídricos e a fauna local. 

“O sistema cabruca de produção de cacau  não derruba a mata nativa, ele coexiste junto com ela. Se você olhar para uma lavoura de cacau cabruca, você vê a Mata Atlântica por cima e o cacau por baixo. Inclusive, se você não prestar muita atenção, às vezes você nem vê o cacau, porque ele fica completamente rodeado pela mata. Além de preservar a mata, o próprio cacau se beneficia da sombra das árvores e produz melhor e por mais tempo”.

O documentário foi produzido de forma independente e foi o primeiro curta de Patricia e Fellipe juntos. A ideia é que o documentário que vem sendo exibido em diversos festivais pelo mundo ajude a viabilizar outros projetos semelhantes com olhar voltado para o rural, a agricultura familiar e a cultura alimentar do Brasil.

O cacau já faz parte da história do Brasil e no sul da Bahia é um dos principais produtos agrícolas da região. / Patricia Moll

“Esse foi totalmente independente, então a nossa ideia era usar ele também um pouco como moeda para conseguir contar outras histórias de produção de alimentos pelo Brasil e sempre com um alimento para mostrar o quão viável também é escolher comprar esses alimentos. Para não precisar escolher um [chocolate] do supermercado, ou seja, para mostrar o que impacta quando você escolhe comprar um alimento da agricultura familiar.”, comenta Patricia. 

O documentário recebeu quatro prêmios: como melhor curta-metragem no VI Festival de Cine Independiente de Claypole, na Argentina, o Prêmio Consorzio del Formaggio Parmegiano Reggiano” no Festival Mente Locale, menção honrosa na 4ª Mostra Nacional de Cinema Ambiental e como melhor filme pelo júri popular no Festival Santa Cruz de Cinema, no Rio Grande do Sul. 

Assista Dois Riachões: