Crise alimentar: a possível alternativa agroecológica

Feira dos Agricultores Ecologistas de Porto Alegre.

https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/crise-alimentar-a-possivel-alternativa-agroecologica/

Jan Douwe van der Ploeg

06/10/2021

Além de produzir fome, insegurança e desperdício, modelo dos impérios alimentares atolou-em dívidas. Outra agricultura desponta – mas tem enormes desafios pela frente. O que é preciso para um grande mudança de paradigmas?

Os sistemas alimentares do período pós-pandemia serão caracterizados por uma série de contradições. Algumas são totalmente novas, outras são novas versões de antigas. Vou discutir seis dessas contradições. Todas se aplicam ao domínio da alimentação e da agricultura, embora algumas tenham abrangência mais ampla.

Em primeiro lugar, a crise da Covid-19 marca a passagem definitiva para a era em que os ganhos econômicos realizados nos domínios da alimentação e da agricultura serão privatizados, enquanto as perdas socializadas. Há um crescente descontentamento público em relação a essa situação.

Em segundo lugar, haverá, na era pós-pandemia, um empobrecimento contínuo dentro da economia real (especialmente para os agricultores, trabalhadores nas indústrias alimentícias e no setor do grande varejo, bem como para os consumidores que enfrentarão preços de alimentos mais elevados), enquanto os impérios alimentares se beneficiarão da acumulação e da concentração da riqueza.

Terceiro, as atividades econômicas e as vidas de muitas pessoas (especialmente, mas não apenas, as que não têm sua própria base de recursos autocontrolada) serão conduzidas à insegurança sistêmica. As rendas temporárias podem até ser mantidas para as atividades econômicas que estiverem (temporariamente) inseridas nos processos de acumulação de capital. Mas a insegurança se tornará crônica. O resultado é que a precariedade passará a ser condição de muitos.

Quarto, o mundo continuará a vivenciar essa combinação abjeta e desumana de desnutrição, fome e inanição de um lado e desperdício massivo de alimentos do outro. É doloroso saber que essas perdas são legitimadas como um mecanismo necessário para salvar o livre mercado.

Quinto, grandes quantidades de trabalhadores pobres (migrantes) estarão procurando trabalho sazonal na agricultura para sobreviver. Apesar de serem essenciais para viabilizar economicamente determinados tipos de empresas agrícolas, esses trabalhadores são perseguidos e hostilizados para chegarem a seus locais de trabalho.

Sexto, embora existam grandes possibilidades de reorganizar a produção, o processamento, a circulação e o consumo de alimentos a partir da implementação de soluções novas, potentes e locais (que provaram mais uma vez sua viabilidade em tempos da crise da Covid-19), as forças hegemônicas tentarão restaurar dinâmicas antigas, aumentando assim as chances de voltarmos a passar por crises semelhantes. No entanto, o tal retorno ao normal provavelmente irá na contramão do que reivindica a sociedade civil, ou seja, a democratização dos sistemas alimentares.

Na busca de alternativas que nos permitam ir além dessas contradições, é importante partir de contrapontos que foram desenvolvidos nas últimas décadas e que, durante a atual pandemia da Covid-19, estão se mostrando relevantes mais do que nunca. Discutirei brevemente três desses contrapontos: soberania alimentar, os mercados territoriais e a agricultura camponesa.

Soberania alimentar

A crise da Covid-19 mostra que a situação atual, em que as nações são ao mesmo tempo dependentes de importações e de exportações de alimentos, só pode resultar em grave escassez e/ou grandes excedentes 27 . Ambos cenários geram impactos desastrosos e provavelmente duradouros – especialmente porque aumentam a situação de precariedade e, assim, acentuam a crise. Nesse contexto, as lutas pela soberania alimentar (NYÉLÉNI, 2009; HOLT-GIMÉNEZ; PATEL, 2009; BORRAS et al., 2014; 2015; MCMICHAEL, 2014; SHATTUCK; SCHIAVONI; VANGELDER, 2017) vêm à tona como um contraponto estratégico.

É evidente que a divisão espacial do trabalho que existe atualmente na agricultura global não deveria ser simplesmente restaurada após a crise da Covid-19. É imperativo que ocorra uma redistribuição das atividades agrícolas a fim de garantir que cada país (com algumas exceções específicas) produza a maior parte (digamos 90%) de todos os alimentos de que precisam. São ridículos os argumentos que afirmam que a segurança alimentar será garantida por meio do livre mercado. A crise da Covid-19 mostra claramente que os mercados de hoje estão apenas aumentando os problemas: em vez de atenuar, contribuem para aumentar a escassez de comida e a fome. A crise também evidencia a vulnerabilidade estrutural de muitos milhões que não conseguem gerar renda de forma relativamente autônoma. A precariedade não é mais aceitável – não poderemos seguir com a ideia de restaurar as formas ainda dominantes da agricultura industrializada em grande escala e, de forma interconectada, continuar com a marginalização da agricultura camponesa. Não pode haver um simples retorno ao normal. Qualquer que seja a configuração dos sistemas agroalimentares no futuro, é essencial que além da produção de alimentos, eles gerem altos níveis de ocupação e meios de vida dignos. Somente assim a pobreza poderá ser reduzida e a resiliência a choques

externos incrementada 28 . A necessidade de mitigar as mudanças climáticas é um fator a mais que aponta que a agroecologia deve se tornar o princípio norteador da produção agrícola mundial. As características da agroecologia se relacionam claramente com o conceito de soberania alimentar desenvolvido nas últimas décadas pela Via Campesina, a principal rede internacional de movimentos camponeses (DESMARAIS, 2007; EDELMAN; BORRAS, 2016).

Mercados territoriais

Os mercados territoriais (e o processamento da produção realizado nas próprias unidades produtivas) representam uma importante antítese dos impérios alimentares. Os mercados territoriais (PLOEG; YE; SCHNEIDER, 2012), sejam eles as tradicionais feiras de rua ou as formas recém-criadas de comércio eletrônico, são circuitos por meio dos quais os alimentos não artificializados (ou seja, produtos agrícolas genuínos, frescos e integrais) são comercializados diretamente entre produtores e consumidores. As transações são realizadas (ou enraizadas) a partir de expectativas mútuas e definições compartilhadas do que significa qualidade e preço justo. Crédito, seguros de crédito comercial, factoring e avaliação de risco de crédito são mecanismos que não têm nenhuma relevância nesse tipo de mercado. Os mercados territoriais não são voltados para produzir lucros para impulsionar a acumulação de capital. Eles visam produzir níveis aceitáveis de renda para os atores envolvidos (produtores, comerciantes) e fornecer alimentos saudáveis a preços razoáveis para os consumidores. Na maioria das vezes, esses mercados são como bens comuns: não são propriedade de atores privados e não estão à venda. Podem se desenvolver e se tornar partes fortes e sólidas das economias regionais (SCHERMER, 2017). Em muitos lugares, são o principal circuito de abastecimento de alimentos. Além disso, geram e sustentam uma quantidade considerável de empregos.

É muito significativo que, durante os primeiros meses da crise da Covid-19, os mercados territoriais tenham se tornado, em quase todo o mundo, focos de contestação e luta. Em muitos lugares, as autoridades tentaram fechar mercados populares, por serem considerados redutos de anarquismo. A impossibilidade de manter o distanciamento social costumava ser o principal argumento para o fechamento. Por outro lado, em muitos desses mercados, as capacidades auto-organizacionais dos atores envolvidos conseguiram rapidamente desenvolver variadas soluções aos desafios postos pela necessidade de isolamento social. Em Porto Alegre, no Brasil, por exemplo, ativistas ocuparam ruas vizinhas para que as feiras tivessem espaço suficiente para garantir o distanciamento social. No País Basco francês, os mercados tornaram-se ruas de mão única, com apenas um ponto de entrada e saída, e foram ampliados para permitir o distanciamento social adequado (além disso, os vendedores de alimentos também poderiam ocupar o espaço normalmente utilizado por comerciantes que não vendem alimentos, os quais não tinham permissão para participar). Em muitas partes do mundo, a entrega em domicílio (do mercado territorial até as casas dos clientes) expandiu-se rapidamente. A Via Campesina apoiou o fortalecimento desses mercados. Na Espanha, o manifesto para a defesa da produção camponesa propõe uma extensão ainda maior dos mercados camponeses e foi assinado e apoiado por centenas de ONGs 29Campi aperti (Campos Abertos) em Bolonha, Itália, organizou entregas em domicílio para responder ao fechamento dos mercados agrícolas 30 . Bienvenue à la ferme (Bem-vindo à fazenda), a organização francesa para a comercialização direta de alimentos, criou o Drive fermier (uma espécie de drive-in camponês), com novos pontos de venda nas cidades. Na China, houve uma rápida expansão do comércio eletrônico por camponeses e cooperativas camponesas. Essas novas iniciativas foram desenvolvidas tendo como base as experiências obtidas anteriormente durante a construção de mercados camponeses (WU; DING; YE, 2015). A importância política de todas essas e de muitas outras iniciativas reside no fato de que demonstram que existem muitas alternativas sólidas às cadeias alimentares dominantes. Assim, todo mercado territorial representa uma ruptura visível, material e simbólica na hegemonia das cadeias alimentares, dos circuitos dos grandes supermercados e, de forma mais geral, do controle do capital sobre a distribuição de alimentos.

Agricultura camponesa


A agricultura camponesa é um contraponto evidente à fragilidade da agricultura empresarial em grande escala. Está manifestamente presente na realidade empírica, fortemente enraizada nos movimentos sociais, mas tem sido ao mesmo tempo negligenciada pelas visões hegemônicas (PLOEG, 2018). Vivendo na marginalização por décadas, a agricultura camponesa resistiu e ainda se renovou. A noção de agricultura camponesa refere-se àquelas unidades agrícolas (familiares) que operam com baixos níveis de custo monetário devido (como gostaríamos de propor) ao seu modo proto-agroecológico de agricultura, em que a coprodução entre o ser humano e a natureza viva é central. Consequentemente, os níveis de renda são relativamente altos e, acima de tudo, relativamente estáveis (PLOEG et al., 2019b). Existe, por assim dizer, uma resiliência inerente que se deve ao baixo uso de insumos externos, aos policutivos associados aos criatórios e à centralidade do trabalho qualificado. Em termos analíticos mais clássicos: o grau de mercantilização é baixo e isso contribui para que atravessem tempos difíceis e turbulentos (PLOEG, 2010). Essas mesmas unidades camponesas tentam evitar altos níveis de dependência financeira dos bancos. Muitos vão preferir se envolver em atividades multifuncionais (que incrementam ainda mais a renda familiar total). Além disso, o estabelecimento de relações de cooperação com outros agricultores é a regra, e não a exceção (LUCAS et al., 2014).

Unidades agrícolas como essas em geral produzem principalmente (ou apenas) para os mercados nacionais, regionais ou mesmo locais (WILKINSON, 2004). Muitas delas comercializam sua produção em mercados territoriais 31 . Os jovens (os de origem rural ou não) têm, nas últimas décadas, desenvolvido ainda mais o repertório das práticas agroecológicas para assegurar a continuidade e aumentar a resiliência dessas unidades produtivas (MOREL; SAN CRISTOBAL; LÉGER, 2018).

Unidades camponesas provavelmente se sairão relativamente bem na crise político-econômica provocada pela pandemia da Covid-19, embora haja também indícios preocupantes de que em algumas partes do mundo (como nos EUA) eles não sobreviverão à crise. Esses estabelecimentos são dimensionados de acordo com a força de trabalho disponível na família. Portanto, não há necessidade de mobilizar trabalhadores assalariados. As unidades camponesas dispõem (da maior parte) dos recursos necessários para a produção (são autossuficientes) e frequentemente comercializam diretamente pelo menos parte de sua produção. Nos marcos do Projeto de Modernização, tais características são consideradas como sinais de fraqueza e atraso (legados do passado). Mas em tempos de Covid-19, elas ressurgem como a materialização da resiliência.

Será especialmente importante no contexto pós-pandemia a capacidade de a agricultura camponesa gerar níveis relativamente altos de emprego e mantê-los ao longo do tempo (ver a Tabela 2 para uma ilustração disso). Em 1987, pesquisas realizadas na Holanda mostraram que a agricultura camponesa gerava 40% mais empregos do que a agricultura empresarial para produzir a mesma quantidade de leite (os níveis de renda por unidade de força de trabalho eram praticamente os mesmos). Com o passar do tempo, essa diferença foi ampliada consideravelmente. Em 2010, subiu a 73% (sendo que, novamente, os níveis de renda eram iguais por unidade de força de trabalho). Por meio da geração considerável de empregos, a agricultura camponesa fortalece a economia real e, mais especificamente, ajuda a reduzir a precariedade.

Conectando os componentes para a construção das alternativas

A agricultura camponesa é um ponto de partida formidável para as novas soluções tão necessárias para o período pós-pandêmico. Fornece a grande maioria dos alimentos consumidos no mundo e é capaz de sobreviver a períodos difíceis (LANGTHALER, 2012). Além disso, é avessa a assumir dívidas grandes e de longa duração, embora segmentos consideráveis dela estejam agora altamente endividados 32 . Através dos tempos, tem evitado estabelecer vínculos de dependência permanente aos mercados de insumos, serviços e capital. No entanto, ela é marginalizada em muitas partes do mundo e seus vínculos com os consumidores dependem cada vez mais de impérios alimentares, que se apropriam de parte importante dos frutos resultantes do árduo trabalho camponês. Embora a agricultura camponesa esteja relativamente próxima à agroecologia (ALTIERI; TOLEDO, 2011), em muitas partes do mundo ainda permanece a quilômetros de distância dos processos de transição agroecológica. Em síntese: a agricultura camponesa representa uma promessa para a reconstrução alimentar e agrícola da era pós-Covid-19 – mas também deve evoluir, da mesma forma que precisa ser apoiada por meio de processos de reforma agrária e de pesquisa e extensão agroecológicas.

Ao repensar o futuro que está por vir (e espero que chegue em breve), a agricultura camponesa, a soberania alimentar, os mercados territoriais e a Agroecologia surgem, como argumentei ao longo deste texto, como componentes importantes para construir a(s) alternativa(s) necessária(s). Ainda mais quando são considerados dois direitos humanos básicos subjacentes às lutas que visam construir essas alternativas. São eles o direito à alimentação adequada e saudável (que atualmente está fortemente ameaçado para os trabalhadores pobres e pessoas marginalizadas em todo o mundo, e mais ainda durante a crise da Covid-19) e o direito de escolher por si próprio a maneira como deseja trabalhar a terra 33 .

No entanto, devemos estar cientes de que a mera operação de juntar os componentes não garante automaticamente que o modelo construído será estável e coerente e que vá contribuir para a reorganização da desordem deixada pela crise atual. Esses componentes só conseguirão convencer e mobilizar as lutas por alternativas se forem coerentemente coordenados entre si.Se olharmos para eles através dessa perspectiva, veremos aparecer três lacunas consideráveis a serem enfrentadas. Cada uma representa uma série de incertezas, incógnitas, questões e desafios. Juntas, constituem um programa estratégico de pesquisa e debate.

A primeira lacuna diz respeito às interrelações entre os diferentes componentes. Ao relacionar, digamos, o conceito de soberania alimentar (que se aplica especialmente ao âmbito nacional) à agricultura camponesa (na qual é central o nível micro das propriedades individuais, embora geralmente cooperantes), torna-se claro que em muitas situações os dois componentes não se encaixarão perfeitamente (por exemplo, em estabelecimentos familiares dedicados a produzir principal ou exclusivamente para a exportação, ou, como ocorre hoje em dia, a cultivos flexíveis 34 cuja função principal é conferir o máximo de flexibilidade ao capital). Nesse sentido, para levar a sério a soberania alimentar, torna-se necessário em várias situações reorganizar a agricultura familiar (por exemplo, mudando a composição dos sistemas de produção). Esse aspecto se aplica principalmente quando são consideradas as exigências peculiares dos mercados territoriais.

Algumas questões a esse respeito são levantadas:

• Como assegurar que os estabelecimentos agrícolas camponeses que comercializam suas produções em determinados mercados territoriais forneçam alimentos suficientes para abastecer a população que depende desses mercados?

• Como garantir que haja diversidade suficiente nos produtos alimentícios fornecidos?

• Como controlar os níveis de qualidade e de preço da produção alimentar escoada nesses mercados?

Quando a atenção se volta as escalas regional e/ou nacional, outras questões surgem. Por exemplo: Como diferentes mercados territoriais podem cooperar entre si 35 ? Como, juntos, podem garantir a soberania alimentar?

Quando abordamos a questão da agricultura camponesa, surge outra gama de questões:

• O que acontecerá, por exemplo, aos milhões de trabalhadores rurais (migrantes ) 36 37?

• É possível criar novas unidades de produção camponesas, suficientes para atender à demanda alimentar, ou as unidades existentes podem responder a essa necessidade?

• Qual é a implicação das diferenças de tamanho e de escala atualmente existentes na agricultura camponesa? Como lidar com as heterogeneidades regionais?

• Como podem as fragilidades no nível micro ser equilibradas com aquelas no nível macro? É preciso reconhecer honestamente que ainda estamos muito longe de darmos respostas adequadas a esse conjunto de questões 38 . A boa notícia, porém, é que esse mesmo leque de questões (e muitas outras relacionadas) constitui uma agenda estimulante e altamente relevante para a pesquisa e o debate público.

Processos de pesquisa-ação dedicados a investigar as novas práticas certamente oferecerão muitos novos insights. A esse respeito, Walden Bello está absolutamente certo quando afirma que:

“Um novo paradigma [nunca] nasce perfeito. O que lhe dá impulso são as crises irreversíveis do antigo paradigma e a convicção de uma massa crítica de pessoas de que é a única forma de superar os problemas do antigo sistema e abrir novas possibilidades de realização de valores que as pessoas prezam. […] As perguntas não respondidas só podem ser respondidas e as ambiguidades e contradições só podem ser resolvidas por meio da prática, pois a prática sempre foi a mãe das possibilidades” (BELLO, 2020, p. 13).

Para encontrar maneiras de preencher as diversas lacunas existentes entre esses diferentes componentes, será essencial o envolvimento do Estado. Os movimentos sociais (inclusive os movimentos camponeses) não podem resolver essas questões por si próprios ou impor materialmente novas soluções nas interfaces entre os diferentes componentes (entre a agricultura camponesa, os mercados territoriais, a soberania alimentar e a agroecologia). No entanto, os movimentos sociais também são essenciais, pois os Estados também não podem resolver por si sós. Contudo, não está claro o que os Estados devem fazer e como podem fazê-lo. Essa é a segunda lacuna. Experiências com políticas públicas que não sejam as de abordagens centralizadas e já conhecidas, que apresentam esquemas regulatórios rígidos e burocraticamente administrados e formas altamente expansivas de intervenção no mercado parecem irrelevantes e contraproducentes diante dos desafios colocados pelo novo contexto. A maioria dos países tem muito pouca experiência no estabelecimento de regras para autorregulação local e regional (e esquemas relacionados de redistribuição) e na garantia de mecanismos democráticos para estabelecer os equilíbrios corretos em diferentes escalas geográficas. Aqui, novamente, pesquisa crítica e debate são necessários. O que os movimentos sociais real e concretamente podem exigir do Estado? É mais urgente do que nunca que os movimentos sociais desenvolvam a capacidade de exigir do Estado as respostas necessárias.

Isso leva à terceira lacuna. Como o Estado e os movimentos sociais podem, na prática, efetivamente cooperar e se fortalecer mutuamente? O que podem oferecer um ao outro? E que capacidades sinérgicas possuem? O que as experiências históricas podem nos ensinar? Essas são perguntas novas e nada fáceis. Mas, enfim, há todo um mundo a ser construído.

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27 Assim, repentinamente, houve nos EUA um excedente de batatas fritas congeladas. Ao mesmo tempo, os supermercados sofreram com a escassez de batatas fritas. É exemplar para a crise atual: grandes excedentes e carências caminhando lado a lado em muitos casos. Isso também se deve ao alto grau de especialização das cadeias produtivas e, de forma associada, à rigidez em suas logísticas.

28 No mundo pré-pandemia, cerca de 50% das pessoas pobres do mundo (vivendo com menos do que o proverbial um dólar por dia) viviam em zonas rurais (IFAD, 2010).

29 Ver <https://soberaniaalimentaria.info/otros-documentos/luchas/728-movilizacion-sin-precedentes-a-favor-de-la-alimentacion-de-proximidad>.

30 Ver <https://bologna.repubblica.it/cronaca/2020/03/16/news/mercato_campi_aperti-251421413/> e <https://www.drive-fermier.fr/>.

31A presença de circuitos curtos e relações diretas entre produtores e varejistas está contribuindo para a estabilização dos preços e a garantia da continuidade do abastecimento alimentar na escala dos territórios.

32 Devido à “tesoura de preços” (tendência a aumento dos custos de produção e queda nos preços dos produtos) na agricultura e às tendências geradas pelos chamados programas de modernização, significativos segmentos da agricultura camponesa também se endividaram (ver, por exemplo, STOLL, 2010; TAYLOR, 2011). Isso muitas vezes levou à desativação de unidades de produção camponesas e prejudicou as relações internas em meio ao campesinato. No entanto, por meio de processos de recampesinização, essas tendências estão sendo revertidas em alguns lugares. Em

geral, a agricultura camponesa está menos endividada e mais propensa a se engajar na construção de uma base de recursos autocontrolada, que inclui uma ênfase no autofinanciamento dos processos de desenvolvimento e de crescimento econômico (PLOEG, 2018).

33 Este último direito é central na Declaração dos Direitos dos/as Camponeses/as, reconhecida pelas Nações Unidas em 2018 (ver CLAEYS; EDELMAN, 2020).

34 Cultivos flexíveis (FlexCrops, em inglês) correspondem às produções agrícolas que podem servir a diferentes finalidades econômicas no sistema industrial-financeiro. Podem tanto assumir a função de um ativo financeiro especulativo nas bolsas de valores internacionais, como ser comercializados como insumos para diferentes setores industriais, como biocombustíveis, cosméticos, produtos químicos e outros (Nota do Editor).

35 A Rede Ecovida de Agroecologia desenvolveu um rico repertório de respostas para essa pergunta. O vídeo “O Circuito”, produzido pela Articulação Nacional de Agroecologia apresenta um exemplo eloquente a esse respeito (ver em: https://agroecologia.org.br/2015/11/04/o-circuito/) (Nota do Editor).

36 É promissor que a Declaração dos Direitos dos/as camponeses/as das Nações Unidas, ativamente promovida pela Via Campesina, considere como equivalentes camponeses e trabalhadores rurais.

37 A esse respeito, é revelador que trabalhadores migrantes na China, que anteriormente transferiram suas terras, tenham enfrentado problemas significativos ao retornar para suas comunidades como consequência do surto de Covid-19. Somente onde a terra permaneceu cultivada pela família, os trabalhadores migrantes puderam voltar a participar na produção agrícola. Isso mostra que a terra e a agricultura permanecem como elementos centrais para a segurança econômica das famílias e para a geração de postos de trabalho.

38 Elementos importantes para tais respostas já foram propostos, por exemplo, por AGARWAL, 2014; BURNETT; MURPHY, 2014; HENDERSON, 2017; MCKAY; NEHRING; WALSH-DILLEY, 2014; MASSON; PAULOS; BEAULIEU BASTIEN, 2017; PAHNKE, 2015; SCHIAVONI, 2017; TRAUGER, 2014.