Conflitos com índios vão se agravar, prevê ex-presidente da Funai.

Há uma reação cada vez mais forte na sociedade brasileira às demandas das populações indígenas, na avaliação do antropólogo Márcio Meira, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai). A reação decorre do crescimento econômico e o consequente avanço sobre áreas ocupadas pelos índios por empreendimentos do , da mineração e hidrelétricas, segundo o especialista.

 

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A entrevista é de Roldão Arruda, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 25-02-2015.

Outro fator preocupante para os índios, na avaliação do especialista, é o fortalecimento da bancada ruralista no Congresso e o seu alinhamento com grupos religiosos que apoiam missionários. Meira afirma que o objetivo da Proposta de Emenda Constitucional 215 (PEC-215), que está sendo desarquivada na Câmara, é a paralisação da Funai – cuja missão legal é a proteção dos interesses indígenas.

O antropólogo também acredita, por outro lado, que as comunidades indígenas estão melhor preparadas para a defesa de seus direitos. A perspectiva é de acirramento dos conflitos.

Meira presidiu a Funai durante cinco anos, entre 2007 e 2012. Foi o presidente mais longevo da instituição, desde que foi criada em 1967. Em seu mandato ocorreram a retirada dos arrozeiros da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e a aprovação do projeto de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.

Eis a entrevista.

Em entrevista ao Estadão, em 2008, o senhor disse que o preconceito contra os índios estava aumentando no Brasil. Como vê a situação hoje?

Ficou pior. As reações anti-indígenas estão cada vez mais visíveis entre os atores políticos no Legislativo e no Executivo – onde existem ministros favoráveis e contrários às demandas indígenas. Mas não é só. O sentimento anti-indígena é forte no conjunto da sociedade. As pesquisas de opinião mostram isso. Um levantamento realizado em 2011 pela Fundação Perseu Abramo mostrou que 5% dos entrevistados concordavam de maneira total ou parcial com a expressão ‘índio bom é índio morto’. Isso significa uma concordância de 10 milhões de brasileiros.

A que atribui esse sentimento?

Quando se observa a história do Brasil no período republicano, verifica-se o seguinte: em todas as ocasiões nas quais o País passou por um grande processo de desenvolvimento econômico, sempre associado à expansão da ocupação territorial, houve acirramento das tensões com os indígenas. No início do século 20, o crescimento econômico provocou o avanço territorial em direção a áreas quase inacessíveis nos Estado dos Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo. Os conflitos com os indígenas foram muito fortes, porque eles estavam no caminho da construção das estradas de ferro e também do movimento de colonização que trazia para o Brasil os alemães e os italianos. O massacre dos índios kaingang nessas regiões foi brutal.

De que maneira isso repercutiu na sociedade?

Houve um grande debate na imprensa. O então diretor do Museu Paulista, Herman Von Hering, publicou um artigo no qual defendeu o extermínio dos índios. Dizia que não podiam ser um obstáculo ao progresso, ao avanço da civilização. Se fosse necessário, deveriam morrer. Uma das pessoas que se levantaram contra essa ideia foi Cândido Rondon. Para ele, a civilização não podia significar morte para os índios. O Estado, dizia o sertanista, tinha que proteger esses povos.

Foi um processo semelhante ao que ocorreu na ditadura, com o avanço em direção à Amazônia Legal, não?

Sim. O padrão se repete nos anos 50 e, mais tarde, na época dos governos militares, nas décadas de 60 e 70. Com a construção das rodovias BR-163, BR-364 e Transamazônica, que cortam a região amazônica, vários povos que viviam isolados foram contatados. Entre eles estão os panará, araweté, arara, assuri do Tocantins. Quando a economia está em crise, verifica-se uma redução dos conflitos, uma calmaria em relação às populações que estão no meio do mato, nas terras deles. Não é o que está ocorrendo agora. Os conflitos são agravados porque a expansão atual é capitaneada pelo agronegócio, o setor que mais tem a ver com a ocupação do território.

Não é só com o agronegócio que surgem conflitos.

Também existem os interesses das empresas de mineração e a questão energética. Com a expansão econômica, torna-se necessário melhorar e aumentar o suprimento energético, para o País continuar crescendo. Como os mananciais das outras regiões estão esgotados, é preciso construir hidrelétricas na Amazônia.

Hoje o deslocamento de índios de suas terras é mais complicado do que nos ciclos de expansão anteriores. Há menos terra, não é?

Sim. O caso do Mato Grosso do Sul é o melhor exemplo disso. Por outro lado, também mudou o sistema de proteção dos direitos indígenas. Ele tornou-se mais sólido a partir da Constituição de 1988 e do regime democrático que veio a seguir, o mais longo de toda a história republicana. Esses fatores, associados a políticas de saúde que tiveram mais eficácia a partir da década de 80 permitiram que a população indígena voltasse a crescer. Passou de menos de 200 mil pessoas, no início dos anos 80, para quase 900 mil nos dias de hoje. Outra novidade da história recente é que os índios passaram a ser atores políticos na cena democrática. Hoje eles têm organizações próprias, desenvolvem suas próprias narrativas, são atores políticos diretos.

Como vê o desarquivamento, na Câmara, da Proposta de Emenda Constitucional 215?

Essa PEC, o projeto de lei votado há pouco sobre recursos genéticos e outras medidas anti-indígenas estão dentro do contexto de crescimento econômico sobre o qual falei. Os atores políticos que atuam contra os indígenas estão interessados nas terras deles. Essa é a questão fundamental. Não se trata de ser contra os índios porque são índios ou porque possuem terras demais. O que acontece é que os índios têm terras que interessam a esses atores políticos.

Pela sua exposição, o agronegócio está sempre no centro do conflito.

O que vimos recentemente foi o encolhimento da produção industrial, ao mesmo tempo que cresciam a produção agropecuária e a exportação de commodities agrícolas. O Brasil foi se tornando cada vez mais dependente da economia gerada pelo agronegócio e isso teve esse repercussões políticas no governo. Não é por acaso que a Kátia Abreu está no ministério.

Os ruralistas ganharam mais poder?

Os ruralistas têm muito poder econômico e político nesse momento. Eles têm dinheiro, financiam campanhas eleitorais, conseguem uma bancada cada vez maior e estão se aliando cada vez mais à bandada religiosa, onde estão missionários que também têm interesses conflitantes com os dos índios. Por outro lado, como já disse, os índios também estão melhor preparados, vão a Brasília com mais frequência. O arquivamento da PEC 215, no final do ano passado, foi uma demonstração de que os indígenas e seus aliados ainda têm força no Congresso.

O que está havendo é um acirramento dos conflitos?

Sim. Isso é decorrência de um processo maior, estrutural, que envolve a economia, a política, toda a sociedade brasileira. Os debates deste ano e do próximo ano no Congresso serão muito marcados por essa agenda. O Judiciário e o Executivo também serão pautados.

Como vê a Funai nesse processo?

A Funai tem sido muito atacada. Procura-se, por todos os lados, construir uma narrativa de que a instituição incompetente e não confiável, do ponto de vista técnico, para a missão que deve desempenhar. Essa narrativa, construída pelos ruralistas, pelos grupos anti-indígenas, tem um sentido ideológico. Na verdade, a Funai foi muito competente nas suas ações. Se não fosse assim, não sofreria tantos ataques, não haveria tanta reação. Se ela não tivesse demarcado nada, se não tivesse conseguido impor e colocar na prática o que está estabelecido na lei, ninguém estaria preocupado com ela. Do total das terras indígenas existentes no País, 80% foram demarcadas após aConstituição de 1988, quando se estabeleceram regras claras sobre a questão. Isso é demonstração clara de como ela foi eficiente.

Acha que é por isso que querem retirar da Funai e transferir para o Congresso a tarefa de demarcação de terras?

Demarcar a terra significa retirar uma parte do território brasileiro do mercado capitalista. A área demarcada fica fora, diz a Constituição. Não pode ser vendida, trocada, alienada. É uma terra da União destinada ao uso coletivo pelos índios. No fundo é a reforma agrária mais eficaz que já foi feita no País.

 

O STF golpeará a Constituição Federal e os Povos Indígenas em benefício do ruralismo no Brasil?

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“A Suprema Corte do Poder Judiciário brasileiro não pode ser transformada num lavatório das mãos daqueles que as sujaram e sujam com o sangue dos povos e lideranças indígenas de nosso país”. O comentário é de Cleber Buzatto, secretário Executivo do Cimi, em artigo publicado no portal do Cimi, 26-02-2015.

Eis o artigo.

Recentes decisões da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) restringem, de forma violenta e radical, o alcance do conceito de terra tradicionalmente ocupada pelos povos indígenas consignado no Artigo 231 da Constituição brasileira. Ao decidir o caso da Petição 3388, o Pleno do STF designou a data da promulgação da Constituição como referência para caracterizar a referida tradicionalidade, destacando, porém, que o fato dos indígenas não estarem na posse da respectiva terra devido à ocorrência de “renitente esbulho” por parte de não indígenas seria a garantia de que o direito desses povos sobre suas terras estavam mantidos.

Ao dar provimento ao Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 803.462, relativo à Terra Indígena Limão Verde, do povo Terena, MS, em dezembro de 2014, o ministro Teori Zavaski, seguindo o ministro Gilmar Mendes – intelectual orgânico do ruralismo dentro do Supremo e redator dos acórdãos de outros dois agravos, também da 2ª Turma, que anularam portarias declaratórias de terras dos povos Guarani-Kaiowá, MS, e Canela-Apãniekra, MA -, caracterizou, a nosso ver de maneira reducionista e antiindígena, o conceito de “renitente esbulho”.

Para ele, “Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada”. Zavaski fez uso dessa caracterização para negar o direito dos Terena à sua terra tradicional. Leia aqui.

Na prática, tal interpretação do Artigo 231 da Constituição reduz o direito dos povos às suas terras tradicionais a duas situações hipotéticas absurdamente limitadas. Ou seja, para terem o direito às suas terras, os indígenas teriam que estar fisicamente sobre elas em 5 de outubro de 1988 ou, na hipótese de não estarem fisicamente sobre as terras, deveriam estar disputando judicialmente ou em “efetivo conflito possessório”  com os fazendeiros na mesma data.

Diante dessa decisão, cumpre-nos perguntar: era a intenção do Constituinte, ao grafar o Artigo 231 na Constituição brasileira, reconhecer, aos povos indígenas, o direito restrito apenas àquelas terras que eles já detinham a posse física na data da promulgação da Constituição ou que estivessem disputando essa posse judicialmente ou por meio do conflito deflagrado, ou seja, em estado de guerra, com os fazendeiros invasores? É óbvio que não.

Estamos diante de uma situação profundamente sensível. Uma eventual confirmação dessa decisão pelo Pleno do STFseria uma sinalização evidente, para os povos indígenas, de que a guerra é um mecanismo, mais do que legítimo, necessário para que mantenham o direito sobre suas terras tradicionais. É esse mesmo o sinal que o STF está disposto a dar para os povos indígenas do Brasil? A mesma decisão seria, concomitantemente, uma sinalização evidente, para os históricos e novos invasores de terras indígenas, que o mecanismo da “desocupação forçada” dos povos é, mais do que legítimo, conveniente e vantajoso para os seus intentos. É esse mesmo o sinal que o STF está disposto a dar aos inimigos dos povos indígenas do Brasil?

Rogamos que os ministros do Supremo usem o bom senso e o senso de como alicerces de suas decisões e revoguem a decisão em questão propalada pela 2ª. Turma. A Suprema Corte do Poder Judiciário brasileiro não pode ser transformada num lavatório das mãos daqueles que as sujaram e sujam com o sangue dos povos e lideranças indígenas de nosso país.