‘Combate à pobreza precisa de mudança de 180° no Brasil’, diz ex-relator da ONU.

Print Friendly, PDF & Email

Depois de dez anos de Bolsa Família, chegou o momento de o governo brasileiro reconhecer que a estratégia de combate à fome chegou ao seu limite e que uma “mudança de 180 graus” terá de ser adotada se de fato Brasília estiver comprometida em acabar com a fome no País. O alerta é de um dos principais sociólogos hoje na Europa, Jean Ziegler, que lança nesta semana no seu novo livro, Destruição em Massa – Geopolítica da Fome.

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/519858-combate-a-pobreza-precisa-de-mudanca-de-180d-no-brasil-diz-ex-relator-da-onu

 

A reportagem e a entrevista é de Jamil Chade e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 05-05-2013.

O suíço foi relator da para o combate à fome e passou anos estudando o modelo utilizado pelos brasileiros para enfrentar a miséria.

Ziegler deixa claro que não é contra o Bolsa Família e que o programa de fato terá de continuar. “Mas ele chegou a um limite. Novas ações terão de ser tomadas”, disse. O sociólogo ainda critica as decisões adotadas pelo governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, segundo ele, teria cedido à bancada ruralista e abandonado suas próprias ideias. “Não há motivo para o Brasil não conseguir alimentar sua população”.

Eis a entrevista.

Como o sr. avalia a luta contra a fome hoje no Brasil…

O problema da fome no Brasil não acabou. O caminho precisa mudar radicalmente. A prioridade deve ser outra, depois de anos do Bolsa Família. Por favor, não estou dizendo que o Bolsa Família não é positivo. Claramente ele foi um marco. Mas chegou a um limite. Trata-se de um programa assistencialista. Obviamente que tirou milhões de uma situação de fome. Foi histórico. Mas ele terá de ser mantido por mais 50 anos se nada mais for feito. A Bolsa Família é como a ajuda humanitária da ONU. É boa por si só. Ela acabou com as angústias diárias de famílias. Mas a estrutura não muda com ela e é a estrutura que é perversa. Portanto, não é abolir a Bolsa Família. Ela é a medida de urgência, quando a casa está pegando fogo. Mas ela não vai reconstruir a casa.

Qual, então, a solução?

O País deve investir na de subsistência, nos pequenos agricultores. Nesse ponto, o tem razão. Um país que é uma grande potência econômica e política ainda tem 18% de sua população com algum risco de falta de , isso é escandaloso. A agricultura de base é a mais eficiente. Ela evita que as periferias das grandes cidades explodam, ela ataca o desemprego, ela preserva o solo. Um agricultor não vai matar seu próprio solo. Mesmo a (órgão da ONU para alimentação e agricultura) alerta que a agricultura familiar é a mais eficiente para lidar com a fome. O problema é que o Brasil faz uma política contrária.

Em que sentido o Brasil fez o caminho contrário?

Não houve a prometida por Lula e Dilma. Isso é condição básica para que o Brasil possa lidar de uma forma decisiva contra a fome. Nos últimos dez anos, a taxa de pessoas que tinham dificuldades para se alimentar no Brasil caiu pela metade. Mas, ainda assim, ela é alta para um país que quer ser uma potência. Outro aspecto é que essa redução ocorreu de uma forma muito frágil. O problema é que, a partir de agora, só o assistencialismo não dará resultado. No fundo, o Brasil precisa fazer um giro de 180 graus em sua política de combate à pobreza.

Porque o sr. acredita que o Brasil até agora não partiu para um novo modelo?

É verdade que o Brasil adota uma política de superávit comercial. Além disso, Lula precisava governar e isso exigiu acordos com a bancada ruralista no Congresso. O PT nunca teve a maioria e, ao mesmo tempo, a distribuição de terra é o diabo para alguns dos políticos com os quais o PT teve de se aliar. Como resultado, nos últimos dez anos, a reforma agrária foi colocada no congelador. O Incra deixou de existir como uma entidade com poder. Politicamente, eu entendo tudo isso. Mas, intelectualmente, precisamos deixar claro que o modelo fracassou. Com um país do tamanho do Brasil, não há motivo para não conseguir alimentar sua população. Não há nenhuma justificativa.

O sr. foi, por anos, muito duro contra o programa de etanol no Brasil. Por que?

Quando eu era relator da ONU contra a fome, o governo brasileiro me criticou por não entender nada de etanol. É verdade que o impacto do etanol americano é muito maior que no caso do Brasil. É verdade também que, no Brasil, não se queima comida para fazer combustível. Mas, ao ocupar milhões de hectares para a cana, o Brasil transfere a fronteira agrícola. O gado precisa mudar de local. O impacto é indireto. Mas é real.

Fora do Brasil, como o sr. avalia hoje a situação da fome no planeta?

A cada cinco segundos, uma pessoa morre de fome. 57 mil pessoas por dia morrem. Ao mesmo tempo, no estado atual, a agricultura mundial poderia alimentar 12 bilhões de pessoas. Uma que morre de fome hoje no mundo é simplesmente assassinada. Esse é o maior escândalo de nossa era. No ano passado, 70 milhões de pessoas morreram no mundo. Desse total, 18 milhões são vítimas da fome.

E porque isso ainda ocorre?

É a indiferença que está matando. As crianças da Somália não estão morrendo no centro de Paris. São pessoas totalmente invisíveis. Elas não votam e não são mercado de ninguém. É verdade também que Angela Merkel ou Mariano Rajoy foram eleitos por seus cidadãos para resolver seus problemas. Não para resolver os de outros países. Não é uma surpresa que, numa crise, eles estejam cortando a ajuda internacional. Mas, ao mesmo tempo, isso não exclui o fato de que o massacre cotidiano está, de fato, ocorrendo.

Polêmica marca a trajetória do sociólogo suíço

A polêmica e a provocação fazem parte da trajetória o sociólogo Jean Ziegler. Nos anos 90, escreveu um livro que rompeu um tabu na Suíça e revelou ao mundo como funcionavam a lavagem de dinheiro e o esquema dos bancos suíços com suas contas secretas. Foi acusado, em seu próprio país, de traidor. Agora, é sobre os motivos da fome no mundo que Ziegler se debruça, com o mesmo espírito.

O livro Destruição em Massa – Geopolítica da Fome está sendo lançado com a tela “Criança Morta“, de Cândido Portinari, na capa da edição em português.

O autor repassa a questão da fome pelo mundo, desde seu aspecto biológico, mas principalmente suas causas econômicas e políticas. A mensagem é clara: o mundo tem alimentos suficientes para todos. Portanto, quem morre de fome hoje morre assassinado. “A fome estrutural significa destruição psíquica e física, aniquilação da dignidade, sofrimento sem fim”, aponta.

Em sua mira estão especuladores, multinacionais e governos que deram suas costas ao problema. “O planeta está saturado de riquezas”, diz.

Gosta do nosso conteúdo?
Receba atualizações do site.
Também detestamos SPAM. Nunca compartilharemos ou venderemos seu email. É nosso acordo.