Brasil Real: megaeventos, megaconstruções e injustiça ambiental.

“Ressaltamos a injustiça do modelo baseado na atividade do agronegócio voltado para exportação e na produção e o uso intensivo de agrotóxicos. Alertamos para os conflitos ambientais e territoriais, o racismo ambiental e as consequências deste projeto para as mulheres empobrecidas, negras e indígenas. Denunciamos que a legislação ambiental está sendo flexibilizada para acelerar a implantação dos projetos e políticas econômicas”. O texto integra documento do Processo de Articulação e Diálogo Internacional para os Direitos Humanos – PAD publicado no blog “Notícias da Terra” da Comissão Pastoral da Terra – CPT da Rondônia, 20-03-2012.

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/507691-brasil-real-megaeventos-megaconstrucoes-e-injustica-ambiental

 

Eis o documento.

O PAD Processo de Articulação e Diálogo Internacional para os Direitos Humanos – rede formada por seis agências ecumênicas europeias e mais de 160 entidades parceiras no Brasil – manifesta publicamente o caráter injusto do modus operandi e dos impactos do modelo de desenvolvimento brasileiro na vida dos povos e no meio ambiente.

Ressaltamos a injustiça do modelo baseado na atividade do agronegócio voltado para exportação e na produção e o uso intensivo de agrotóxicos. Alertamos para os conflitos ambientais e territoriais, o racismo ambiental e as consequências deste projeto para as mulheres empobrecidas, negras e indígenas. Denunciamos que a legislação ambiental está sendo flexibilizada para acelerar a implantação dos projetos e políticas econômicas. Chamamos atenção para os casos da transposição do São Francisco e da Usina de Belo Monte, emblemáticos da forma social e ambientalmente injusta como o Estado brasileiro, aliado à iniciativa privada, tem conduzido o processo de desenvolvimento.

Para o Brasil, tido por muitas vozes como “espelho” para o desenvolvimento, a soberania e a autonomia política e econômica para a América Latina, as injustiças ambientais são um dos mais constrangedores assuntos.

Os indicadores que apontam avanços na área social nos últimos anos contrastam com os rumos que o país vem tomando no que se refere às questões socioambientais. Nesse contexto, verifica-se o flagrante desencontro entre melhoria nos níveis de consumo geral da população e a incapacidade do Estado em construir projetos econômicos democratizantes, que sejam base para o aprofundamento, a consolidação e a ampliação de uma efetiva e sustentável melhoria da qualidade de vida para a população. Faz-se necessário questionar o preço e o destino desse desenvolvimento, com vistas a promover o debate democrático.

Dentre as atividades produtivas que impulsionam a economia brasileira, está o agronegócio voltado para exportação. As monoculturas de soja, de cana-de-açúcar, de eucalipto, da fruticultura irrigada e outras, assim como a pecuária intensiva, geram divisas e influenciam o PIB nacional, sendo responsáveis pela ascensão do Brasil no cenário mundial como a 7ª economia do mundo.

Porém são também responsáveis, dentre outras coisas, pela produção de extensos desertos verdes, eliminação da camponesa, pela redução da produção de grãos para suprimento de alimentos da população e pela readequação da estrutura latifundiária de acesso à terra, com o recrudescimento da concentração fundiária e o fortalecimento da participação de grupos empresariais estrangeiros, associados a empresas nacionais.

O último censo agropecuário do IBGE (2006) dá conta de uma enorme concentração, onde apenas 1% dos proprietários detém 43% da área agricultável no Brasil. Além disso, há uma crescente estrangeirização das terras brasileiras: dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária mostram que até o primeiro semestre de 2010, pelo menos 4,2 milhões de hectares eram propriedades de estrangeiros.

A efetivação do agronegócio está vinculada também à produção e ao uso intensivo de agrotóxicos, internacionalmente denunciados como danosos ao meio ambiente: à fauna, à flora e aos seres humanos.

A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos denuncia que “mais de um milhão de toneladas (o equivalente a mais de 1 bilhão de litros) de venenos foram jogadas nas lavouras em 2009. [….] Na safra de 2007-2008 foram gastos no Brasil 6,8 bilhões de dólares em venenos, […] na safra 2008-2009, foram 7,125 bilhões de dólares, transformando nosso país no maior consumidor mundial de venenos. Esse valor equivale à aplicação de 734 milhões de toneladas de venenos na nossa agricultura. Eles afetam o solo, a água, os alimentos produzidos e o ar, pois muitos são secantes que evaporam, vão para atmosfera e depois retornam com as chuvas.”

A moderna produção agroexportadora também guarda as heranças históricas do escravagismo. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego dão conta de que pelo menos 220 empresas, a maioria vinculada a esse setor, formam uma lista de usuários de trabalho escravo no seu processo produtivo. Entre os anos de 1995 e 2010, quase 29 mil trabalhadores da agricultura foram libertados de condições análogas à escravidão.

Um dos principais indicadores dos problemas socioambientais que acompanham o desenvolvimento do Brasil é a existência de conflitos em todas as regiões do país. Trata-se de conflitos ambientais marcados pela violência contra a população, a perda dos territórios, a degradação da biodiversidade e dos modos de vida e trabalho, seja em espaços urbanos ou rurais. Em todas as regiões do Brasil, a tensão e o estresse coletivo das populações em situação de conflitos ambientais se justificam pelas ameaças de perdas irreparáveis e pelas constantes mortes violentas.

Dados sobre assassinatos e perseguições em torno dos conflitos são ilustrativos dessas violências: no período de 2003 a 2010, pelo menos 50 lideranças indígenas foram assassinadas por ano nas disputas territoriais; e, nas últimas duas décadas, mais de 1500 pessoas foram assassinadas no campo em situação de conflitos. A esses dados devemos somar ainda os constantes assassinatos de lideranças dos movimentos sociais, como o de Irmã Dorothy Stang (Pará, fev. de 2005), do líder sindical Zé Maria do Tomé (Ceará, abril de 2010) e do advogado Sebastião Bezerra (Tocantins, fev. de 2011). Isso tudo sem contar os muitos defensores dos direitos humanos que estão sob ameaça de morte e precisam viver sob a proteção e a solidariedade de organizações e movimentos sociais.

No que refere ao campo, só no ano de 2010, a Comissão Pastoral da Terra registrou a ocorrência de 1.186 conflitos; desses, 638 envolvendo terra, 204 envolvendo conflitos trabalhistas e 87, disputas pela água.

Nesses conflitos, pelo menos 34 pessoas foram assassinadas. Como exemplo emblemático da violência no campo, citamos o Estado do Pará, Região Norte do país, onde entre 2003 a 2005 pelo menos 52 pessoas foram assassinadas no contexto das disputas por territórios. Em 2010, a CPT registrou 207 conflitos nesse Estado, e o maior número de assassinatos, totalizando 18 mortes violentas. Ressalte-se que, ainda no Pará, só no mês de junho de 2011, seis pessoas foram assassinadas em situações semelhantes.

No Brasil, as injustiças ambientais também estão fortemente marcadas pelo Racismo Ambiental. Grupos sociais tratados como racialmente inferiores, como as populações negras e os povos indígenas, são os maiores atingidos. O Mapa das Injustiças Ambientais e Saúde no Brasil, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (2010), pesquisou 297 conflitos ambientais em todo o país, originados da implementação dos projetos de desenvolvimento.

Em tais conflitos, os povos indígenas e as populações quilombolas, bem como os seus territórios, representam mais de 50% dos atingidos. A eles se seguem inúmeras outras populações que, se não estão identificadas como negras ou indígenas, são, em sua maioria, grupos que em termos étnicos e raciais, e considerando a constituição socioterritorial do país, desses se aproximam, como as comunidades de pescadores e pescadoras artesanais, os ribeirinhos e agricultores familiares.

A tragédia socioambiental resultante do desenvolvimento brasileiro atinge também duramente as mulheres empobrecidas, negras e indígenas. De acordo com o IBGE, as mulheres representam 50% da população rural em idade produtiva e cumprem historicamente papel determinante na agricultura de subsistência e, portanto, no suprimento de água e alimentação das famílias, comunidades e povos. Responsabilizadas pelo cuidado e manutenção da casa e da família, com a destruição dos territórios e modos de vida, as mulheres, cujo trabalho produtivo já é considerado secundário e complementar, passam a enfrentar o aumento da subordinação e dependência em relação aos homens e às políticas sociais. Sem contar que, ao migrarem para os canteiros de obras, muitos homens deixam para trás suas famílias e uma imensa sobrecarga para as mulheres.

A legislação ambiental, como instrumento de precaução dos problemas sociais, averiguação e direcionamento da sustentabilidade ambiental das atividades produtivas, é vista e tratada como peça burocrática que precisa ser flexibilizada ao máximo, de modo a acelerar a implantação dos projetos e políticas econômicas. Figuram, como exemplo de descaso da legislação, a recente revisão do Código Florestal Brasileiro (que prevê, dentre outras coisas, o aumento das possibilidades de exploração de áreas anteriormente protegidas) e os pacotes de decretos presidenciais para aceleração das concessões de licenciamentos ambientais.

Enquanto se aceleram os esforços institucionais para a implementação desses grandes projetos, destacam-se, por outro lado, a morosidade e os impasses na implementação dos direitos das populações tradicionais à terra, à água, ao território e à diversidade cultural garantidos na Constituição Federal de 1988. É o caso dos poucos avanços nas demarcações das terras indígenas; no reconhecimento e garantia dos povos quilombolas; nos direitos das demais populações tradicionais; na implementação de Unidades de Conservação baseadas nos usos tradicionais e autonomia das populações; na consolidação de assentamentos rurais. Políticas que, se efetivadas, cumpririam importante papel para a garantia dos direitos coletivos, do manejo sustentável dos ambientes considerando as diversidades culturais, da soberania alimentar e da gestão democrática dos territórios.

Os casos da transposição do São Francisco e da Usina de Belo Monte são emblemáticos da forma social e ambientalmente injusta como o Estado brasileiro, aliado à iniciativa privada, tem conduzido o desenvolvimento. Mas eles representam a ponta de um processo muito mais amplo e complexo em que outros setores produtivos também vêm sendo dinamizados, tais como as termoelétricas, as indústrias de mineração, siderurgia e petroquímica, a construção civil e o turismo de massa.

Os impactos sociais e ambientais desse modelo têm sido amplamente explicitados pelos movimentos sociais e pelas populações locais. Todas têm em comum a conjunção dos esforços institucionais dos poderes públicos e da iniciativa privada e a necessidade de ocupar vastos territórios, acompanhada da apropriação e degradação dos bens ambientais, da expulsão e/ou contaminação das populações locais e da dizimação de seus modos de vida.