Belo Monte, um monumento à insanidade

Belo Monte, um monumento à insanidade. Entrevista com D. Erwin Kräutler.

 

 

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Teólogo, filósofo, dono de 22 títulos e condecorações concedidos mundo afora por sua luta em favor da Amazônia, dom Erwin Kräutler, 76 anos, despede-se neste domingo, 3 de abril, do posto de bispo da Prelazia do Xingu, no Pará. Sua cruzada contra a construção da Hidrelétrica de , iniciada bem antes do primeiro governo Lula, seu ex-aliado, tornou-se conhecida além das fronteiras do Brasil. Em seu lugar, assume o maranhense dom João Muniz Alves, 55 anos. A substituição é acontecimento importante na Igreja. Sua despedida está levando a Altamira, sede do bispado, 11 arcebispos e bispos. Dom Erwin nasceu em Koblach, na Áustria, chegou à região em 1965 e ocupava o posto desde 1981, quando também recebeu a cidadania brasileira. A Prelazia do Xingu é a maior do país, com 15 municípios e 368.086 km² de área, superfície maior que a de 20 estados brasileiros. Ele sai com a guerra contra Belo Monte perdida. Mas, nesta entrevista, dada ao #Colabora depois de celebrar a missa do Domingo de Ramos na Paróquia de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Altamira, diz que não se considera frustrado. Acredita que sua luta e a “insanidade” da usina serão exemplos para evitar novas obras iguais na Amazônia.

 

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A entrevista é de Marceu Vieira, publicada por #Colabora, 02-04-2016.

Eis a entrevista.

Perdida a luta contra Belo Monte, que reflexão o senhor faz?

Para mim, o problema, desde o início, não é que o Brasil precise de energia. Isso é lógico. Ninguém vai questionar isso. O problema é a captação da energia. Será que a única maneira de captar energia é sacrificar um rio do tamanho do Xingu? Porque o que está acontecendo é o sacrifício do meio ambiente, o sacrifício do rio. E, mesmo que o Ibama, naquele tempo, tenha elencado 40 condicionantes, e a Funai, outras 23 (hoje, no total, são 54), elas não foram cumpridas. Quem anda pela cidade sabe perfeitamente o absurdo que aconteceu. O que se construiu foi um monumento à insanidade.

Não ficou nada de positivo?

A cidade mergulhou no caos. Em todos os sentidos. No sentido da saúde, da educação, do transporte, da habitação. O saneamento básico prometido não foi feito. A gente combate o vírus da zika e convive, aqui, com esgoto a céu aberto. Eu lamento profundamente esse desprezo pela nossa região. Eu conheço Altamira há mais de 50 anos. Então, eu conheço, sei o que Altamira era e sei o que é hoje. Claro, precisávamos e precisaremos sempre inovar e melhorar. Mas da maneira como isso foi feito? E a transferência desse povo de seu habitat, do lugar onde morava…

Muitas pessoas viviam em palafitas. Não melhorou neste sentido?

Não é tão simples assim. Eles dizem que fizeram um monte de casas. Casinhas! Não são casas onde o paraense possa viver. A cultura desse povo é muito hospitaleira. A família não é apenas pai e mãe. É a família grande, é o clã. Quem, por exemplo, vive no interior e vem aqui para se tratar, para fazer compras ou para encontrar alguém, logicamente, hospeda-se na casa da filha ou do filho. O vovô ou a vovó que chegam aí, pai, mãe, parente, amigo… Fico estarrecido diante de uma família que mora numa casinha dessas aí, e quando vem papai ou mamãe, a filha e o filho, vão ter de dizer: “Pai, mãe, aqui não tem lugar”. Quer dizer, isso é um golpe!

Um golpe?

A gente fala do golpe no meio ambiente, o golpe no coração da Amazônia. Mas também é um golpe no coração desse povo. Isso nunca foi levado em conta. As decisões foram tomadas alhures, nos gabinetes de Brasília. Nós tivemos sempre o direito de protestar, de fazer manifestações, demonstrações. Porém, o rolo compressor passou por cima da gente.

O senhor sofreu pressões em sua luta contra Belo Monte, ameaças?

Sim. No início, foi terrível.

Que tipo de ameaças?

Até hoje sou acompanhado por proteção policial. Há quase dez anos não posso sair sem essa proteção. Não que eu tenha pedido. Mas o governo decidiu. Havia pessoas que pensavam que eu tinha o poder enorme de frear, de brecar Belo Monte. Então, tinha gente que gritava: “Enquanto esse bispo existir, a hidrelétrica não sai”. Isso é um absurdo. Nunca tive essa influência.

O senhor acha que as ameaças vinham de onde? De fazendeiros que estavam de olho nas indenizações?

Sim. Mas é muito difícil apontar. A Polícia Federal foi atrás. Mas esse consórcio do crime é muito difícil de identificar.

Como chegavam as ameaças?

Por indiretas. Por exemplo, numa procissão, de repente, alguém gritava coisas para mim. Depois, foi por escrito. Mandavam cartas veladas. Faxes anônimos. Uma carta foi deixada na TV da Prelazia. Depois, pela internet. Até marcaram o dia em que… (seria assassinado). Depois, de Santarém (cidade paraense a 544km de Altamira), veio um aviso e até estabeleceram o preço da execução.

O povo de Altamira estava do seu lado ou confiava no desenvolvimento prometido?

Interessante é que a parcela do povo daquele tempo que estava a favor de Belo Monte, defendendo Belo Monte com unhas e dentes, e, ao mesmo tempo, hostilizando o bispo, por ele ser contra, enfim, todo esse povo hoje bate no meu ombro e diz: “O senhor tinha razão”. Então, muita gente reconheceu que eu não estava contra o progresso, mas contra uma qualidade de progresso que não posso aceitar.

O que, para o senhor, seria o progresso?

Progresso, para mim, seria melhor qualidade de vida! Veja aí a qualidade de vida do nosso povo! Se viu, então, já sabe.

O que deve ser feito agora que a usina já está pronta?

A única coisa que devemos fazer é… Tomara que outros projetos programados, como os idealizados lá para o Rio Tapajós, tomara que os responsáveis tenham aprendido com o exemplo daqui.

O senhor sempre teve um canal com a cúpula que fundou o PT. Procurou o governo e pediu para que Belo Monte não saísse?

Sim, estive com Lula duas vezes. Ele estava na Presidência.

Ele foi irredutível?

Não. Praticamente, ele me enganou. Em 19 de março de 2009, estive lá com ele. Eu disse que não queria falar sozinho, queria que o pessoal pudesse se manifestar. Então, ele marcou uma nova audiência para 22 de julho. E fomos daqui com dois ribeirinhos, dois índios, a comadre Melo (Antônia Melo, da ONG Xingu Vivo Para Sempre), dois procuradores da República e o Célio Berman, famoso cientista da USP. Lula me pegou pelo braço e disse textualmente (imitando a voz do ex-presidente): “Dom Erwin, nós não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja. Não vamos repetir o monumento à insanidade que foi Balbina (hidrelétrica na cidade de Presidente Figueiredo, no Amazonas, inaugurada em 1989, considerada erro histórico por cientistas e técnicos do governo, pela baixa geração de energia, apenas 275MW, em relação à sua área alagada, quatro vezes maior que a de Belo Monte, e às suas graves consequências socioambientais). O Brasil tem uma grande dívida com os atingidos por barragem. Belo Monte só vai sair se for do agrado de todo mundo!” Isso seria impossível, mas, em todo caso, ele falou.

O senhor acreditou?

Naquele tempo, ele estava bem animado. Eu pensei que Lula era sério. Mas era uma manobra para se livrar do bispo, o bispo inoportuno que chegou lá e disse o que pensava. No final, ele disse: “O diálogo tem que continuar”.

Continuou?

Eu estive lá em outubro, de novo. Quem estava no gabinete, naquele tempo, ainda era o Gilberto Carvalho. Fiquei uma semana em Brasília. E a cada dia eles telefonavam: “Hoje, não dá, amanhã vai dar…” Até que chegou quinta-feira à noite, e disseram: “Infelizmente, não dá, porque o presidente vai viajar”. Ali, eu notei que era, simplesmente, para se livrar deste homem que sou eu. O diálogo, então, foi para o brejo.

O senhor insistiu depois com Dilma?

Sim. Eu era presidente do Cimi (Conselho Indigenista Missionário). Eu tive lá uma agenda com ela, e um dos pontos era Belo Monte. Ela logo cortou a conversa. Depois, disseram que eu ia falar com Gilberto Carvalho, que ele ia me receber em audiência. Mas, 15 dias antes, num seminário promovido pela CNBB, ele falou bem claro que Belo Monte era inegociável, ia sair de qualquer maneira. Então, pensei: “O que eu vou falar com esse homem?” E não fui. Eles não gostaram. Mas o que eu ia fazer lá? Só para alguém bater fotos e filmar, dizendo que o bispo esteve lá num diálogo que não foi diálogo?

O senhor vai entrar na luta contra a hidrelétrica no Rio Tapajós?

A gente soma, se une a eles. Porque eu não tenho lá a influência que tenho aqui. Eu estive lá num encontro, em 27 de novembro do ano passado, com os índios Munduruku. Penso que a nossa luta, que não foi vitoriosa, talvez tenha reflexo lá, para que não se deixem enganar.

Evitar a usina no Tapajós seria a vitória da resistência a Belo Monte?

Sim. Mas, por outro lado, eu não me sinto frustrado e vencido. Aquilo que fizemos, aquilo que fiz, eu faria tudo de novo. Na função que exerço, na missão que tenho, você não pode lutar por uma causa com a certeza de que será vitorioso. Não é como na economia, em que se analisa o alto custo para depois decidir: O engajamento, para mim, já é uma vitória. Meu Deus, não quero me comparar com ninguém, mas…

Mas?…

Quantas figuras deste mundo se empenharam por uma causa e não conseguiram, mas depois deixaram uma semente? Jesus morreu na cruz e teve, aparentemente, o maior fracasso. Poderiam imaginar que isso iria anular tudo, a sua mensagem. No entanto, a revolução dele segue até hoje. Então, não me sinto frustrado. A gente diz: “Não, agora você vai jogar a toalha, vai pendurar as chuteiras”… Isso nunca me passou pela cabeça.

O senhor chegou a achar que poderia ter um destino igual ao da irmã Dorothy Stang, assassinada em 2005 aqui no Xingu?

Eu enterrei a Dorothy. São experiências que a gente nunca esquece. Quando se está diante de um caixão, e a pessoa que está lá dentro, quer dizer, o que sobrou dela, enfim, quando ela não morreu de malária, de acidente automobilístico, mas foi morta, é algo que toca profundamente. Uns dias antes ela estava ainda comigo. Conheci outras pessoas que tiveram a mesma sorte, como o Ademir Federicci, o Dema (líder ambientalista da região do Xingu, ex-vereador do PT e líder da luta contra Belo Monte, assassinado em 2001). Dema morreu pela mesma causa, antes da Dorothy.

A Igreja tentou tirar o senhor daqui?

Nunca. A proteção à minha vida foi iniciada em 29 de julho de 2006. Depois de eu ter rezado uma missa aqui nesta igreja, eu fui para casa e, às dez da noite, veio o comandante da PM com dois brutamontes policiais me dizer: “O senhor está sob proteção”. Eu disse: “Não vou aceitar”. Aí, ele me convenceu, dizendo que sabia mais do que eu. E que se acontecesse algo comigo, se apenas me triscassem, a Secretaria Especial de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos da Presidência da República iria cobrar. A ordem tinha vindo de lá. Mas a PM daqui assumiu. Eu queria me livrar daquilo. Nessa conversa, ele me disse que, se eu quisesse, poderia sair daqui. Eu não quis. Se saísse, faria a vontade daqueles que se opunham a mim.

Como a Igreja reagiu?

A CNBB sempre me apoiou. Até o Papa Bento XVI, na época, disse para que eu ficasse seguro, disse que rezava por mim. Nunca nenhuma autoridade acima de mim disse para eu sair daqui. Nem me aconselhou. Quem aconselhou foi o comandante da PM. Aqui mesmo, hoje, há dois policiais me esperando. São discretos, não usam uniformes, mas estão me esperando.

O senhor já sentiu medo?

Eu tive medo de entrar em depressão. Porque você está acostumado a andar onde quer que seja. De repente, não dá mais um passo sem ser acompanhado. Mas depois passou. A liberdade exterior foi cerceada, porque eu andava livre aqui nesta cidade. Vida social, visitar pessoas, tomar um cafezinho, ir a batizados… Eu celebro, mas à casa das pessoas eu não vou. Teria de ir acompanhado de dois policiais, e isso me deixa constrangido. Nunca mais fiz isso. Mas eu pensei já naquele tempo: “A vida interior não podem me tirar, e eu vou continuar defendendo essa causa, porque estou convicto de que é a minha missão e a minha obrigação”.

 

Fim de festa em Belo Monte

Até onde a vista já não alcança, de tão vasto, e a poeira vermelha do barro da Transamazônica não deixa mais ver, de tão longe, o fim fica bem depois. Tudo é superlativo em Altamira, imensidão no Sudoeste do Pará. Seus monumentais 161.446 km² de área fazem do município o maior do país em extensão territorial e o terceiro do planeta. Se fosse um estado, Altamira ocuparia, em tamanho, a 16ª posição no mapa brasileiro, à frente de Rio de Janeiro, Espírito Santo, Santa Catarina, Acre, Ceará… Se fosse uma nação, seria, em dimensão, a 92ª do globo terrestre – engoliria uma Grécia e meia; quatro Suíças; quase duas vezes os limites de Portugal.

A reportagem é de Marceu Vieira, publicada por #Colabora 29-03-2016.

Hoje, porém, também são cada vez mais superlativos os desapontamentos, as dores, as decepções e as tristezas da pobre gigante Altamira, cujo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano, medido pela ONU) mal chega a 0,6, patamar considerado sofrível. As sementes desse dissabor foram plantadas em 2011. Foi quando começou a ser erguida ali, no leito do Rio Xingu, sob a desconfiança severa de movimentos sociais, mas com a esperança de quem acreditava no desenvolvimento da região (sobretudo, empresários e poder municipal), a Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

Hoje, com a obra prestes a atingir 100% de conclusão, e com a descomunal hidrelétrica já de posse da licença definitiva do Ibama para operar, o clima em Altamira é de fim de uma festa que não houve. Domingo passado, 27 de março, pousou na cidade o último voo regular Rio-Altamira da Gol, que só existia por causa do grande fluxo gerado pela obra. Cinco anos depois, só uma das condicionantes referentes à cidade foi integralmente cumprida – um aterro sanitário de lixo, e, ainda assim, com ressalvas.

Mamute de 24 turbinas que veio se somar às hipérboles do município como a maior hidrelétrica 100% nacional e a terceira mais imponente do mundo, Belo Monte, esteticamente, nada tem de bela. É um Everest horrendo de concreto e ferro no meio da Floresta Amazônica. Em dimensões e potencial energético, perde apenas para a chinesa Três Gargantas e a brasileira-paraguaia Itaipu Binacional. Ocupa uma clareira impressionante de 37.375.644 m² de área desmatada, imensidão equivalente a 9,11 Copacabanas, ou a 830,5 estádios do Pacaembu.

Controlada pelo consórcio Norte Energia, formado pelo grupo Eletrobras (49,98%), pelos fundos de pensão Petros (10%) e Funcef (10%), pela brasileira-espanhola Neoenergia (10%), pelas associações Cemig-Light (9,77%), Vale-Cemig (9%) e pelas minoritárias Sinobras (1%) e J. Malucelli Energia (0,25%), Belo Monte foi orçada em R$ 16 bilhões e leiloada por R$ 19 bilhões em 2011. Hoje, já está custando cerca de R$ 32 bilhões, dos quais pelo menos R$ 22 bilhões foram financiados com dinheiro público pelo BNDES.

É tão gigantesca que, para ser levantada, foi preciso um colar de construtoras. Foi erguida por empreiteiras que, mais do que nunca, nestes dias conturbados de Operação Lava-Jato, têm frequentado o noticiário político-policial – Andrade Gutierrez, líder do consórcio construtor; Odebrecht; Camargo Corrêa; Queiroz Galvão; OAS; além de Contern, Galvão, Serteng, J. Malucelli e Cetenco.

A sociedade civil organizada da região de Altamira, apoiada por ambientalistas de todo o Brasil e lá de fora, não a queria. Lutou o quanto pôde contra sua construção. Foi acusada de tentar deter o desenvolvimento da Amazônia e do Brasil. Temia pelo Xingu, pelos índios, pelos ribeirinhos, por seus pescadores, pelas remoções que poderia implicar. Quase uma dezena de ônibus que levam e trazem trabalhadores do Centro de Altamira até o canteiro de obras foi incendiada por manifestantes, índios e operários grevistas em protestos na Transamazônica e nos travessões que levam ao canteiro. Em vão. Mesmo assim, a gigante, projetada 30 anos antes, ainda na ditadura militar, acordou – e foi erguida.

Há seis anos, quando o então presidente Luís Inácio Lula da Silva desarquivou o projeto e anunciou o início das obras, atribuindo a “gringos” a grita contra a usina, a promessa oficial era de que Belo Monte levaria à região a contrapartida de desenvolvimento, emprego, renda, mais escolas, mais hospitais, mais segurança, rede de água tratada e de coleta de esgoto, melhoria das condições de vida dos povos indígenas e ribeirinhos, moradia decente a quem precisasse ser removido e, entre outras maravilhas, reunidas em 54 condicionantes, lazer e bem-estar. A Amazônia, ali, enfim, seria exemplo de crescimento sustentável. Não foi o que aconteceu.

Hoje, com a obra prestes a atingir 100% de conclusão, e com a descomunal hidrelétrica já de posse da licença definitiva do Ibama para operar, o clima em Altamira é de fim de uma festa que não houve. Domingo passado, 27 de março, pousou na cidade o último voo regular Rio-Altamira da Gol, que só existia por causa do grande fluxo gerado pela obra. Cinco anos depois, só uma das condicionantes referentes à cidade foi integralmente cumprida – um aterro sanitário de lixo, e, ainda assim, com ressalvas. O município, onde, na medida do possível, viviam bem, obrigado, 98 mil pessoas, tem hoje cerca de 170 mil habitantes, segundo a prefeitura – e seus problemas duplicaram com a chegada dos milhares e milhares de forasteiros atraídos pelo megaempreendimento.

O índice de distribuição de água tratada e de coleta de esgoto, que era de 0%, continua em 0% (a Norte Energia instalou os dutos, mas, até hoje, não os conectou às residências). Um hospital geral, prometido para amenizar o impacto do aumento da população – e que, por isso, como determinava a cartilha de condicionantes, deveria ter ficado pronto antes do início do erguimento da usina –, foi, de fato, construído, embora com atraso, mas, até hoje, não funciona. Há um ano, é só um prédio vazio com letreiro na fachada, um monumento de cimento ao nada numa região ainda mais doente.

A cultura de seus cerca de 10.000 índios de 11 etnias, que viviam em paz, foi exposta ao defloramento. Das mais de 100 ilhas que havia no Rio Xingu, habitadas por mais de 1.000 pescadores, apenas nove não ficaram submersas. Todas as cerca de 40 praias naturais, com suas areias muito brancas, que surgiam no verão e proporcionavam diversão para seus moradores, desapareceram, engolidas pela mudança do nível do rio.

Os habitantes de Altamira andam tristes e inseguros pelas ruas. Uma autoridade municipal disse ao #Colabora que, hoje, tem medo de andar pela cidade com seu cordão de ouro no pescoço e seu iPhone na mão. O município é um imenso canteiro de obras parado ou semiparado, onde a lama do barro, neste período de chuvas, faz atolar até jipes 4×4 (o do secretário de Planejamento de Altamira, Luiz Cláudio Pereira Corrêa Júnior, por exemplo, ficou agarrado, na manhã da segunda-feira 21 de março, no lamaçal de uma obra compensatória abandonada).

Uma multidão de 40.000 pessoas (8.000 famílias) teve de ser removida de suas casas, demolidas para dar lugar à área alagada ou a construções da usina. Esse mundaréu de gente, equivalente à população de cidades como São Loureço (MG), Paraty (RJ) ou ainda como Remanso e Sento Sé (BA), foi remanejado para novos bairros, batizados de RUCs (Reassentamentos Urbanos Coletivos), construídos pela Norte Energia, mas, até hoje, não dotados de infraestrutura de transporte, comércio ou lazer. Pescadores que moravam à beira do rio estão agora distantes até dez quilômetros de onde ganhavam seu sustento.

Aliás, as mudanças dos humores do Xingu reduziram bruscamente a pesca (80% da vazão do rio no trecho conhecido como Volta Grande foram desviados para um canal artificial de 20km de extensão e com média de 300m de largura, quase metade do Canal do Panamá). O tucunaré, por exemplo, peixe-símbolo do rio, farto antes da usina, tornou-se raro. Como se esconde entre pedras no raso, e as pedras da região onde a pesca ainda é permitida foram afogadas, o tão apreciado peixe sumiu.

Uma endemia de prostituição emergiu do afogamento das margens do rio. A violência contra mulheres aumentou na proporção de uma ocorrência, em média, por dia, na delegacia da cidade, segundo a Superintendência de Polícia Civil.

Numa região historicamente já ferida por conflitos agrários (foi ali que, em 2005, foi morta a freira missionária norte-americana Dorothy Mae Stang), o número de assassinatos, depois de Belo Monte, saltou de 48 para 86 por ano – ou uma taxa de 57 por 100 mil habitantes, segundo o IBGE, número cinco vezes maior que o considerado “não epidêmico” pela Organização Mundial de Saúde.

Os roubos e furtos se multiplicaram a ponto de forçarem a Secretaria de Segurança do Estado a implantar um plano antiviolência para a região. A incidência da criminalidade juvenil disparou, segundo a percepção geral.

A evasão escolar, impulsionada pela atração de jovens para o trabalho não qualificado na obra, levou a reprovação escolar a subir 40,5% no ensino fundamental e 7,35% no médio. A evasão das salas de aula aumentou 57%. A superpopulação fez os preços dos aluguéis subirem escandalosos 3.000%. As mobilidades urbana e rural, que já eram precárias, tornaram-se caóticas. Havia 205 táxis na cidade antes da obra. Hoje, são 570, que rodam sem taxímetro e, indiferentes à míngua de empregos e à escassez do dinheiro, passado agora o auge da construção da usina, cobram quanto querem dos passageiros (a bandeirada mínima custa R$ 20, mesmo que o deslocamento seja de apenas 100m).

Os acidentes de trânsito cresceram na progressão geométrica de 144% – e, por tabela, o índice de atendimentos demandados por batidas de carro ou quedas de moto na cidade variou 213% para mais no Hospital Geral de Altamira, o único de alta complexidade em toda a região do Baixo Xingu, formada por 11 cidades, cinco delas impactadas diretamente por Belo Monte (as outras quatro são Vitória do Xingu, Senador José Porfírio, Brasil Novo e Anapu).

Outra decepção proporcionada por Belo Monte diz respeito não só a Altamira e a suas cidades vizinhas, mas ao país todo. A 880km de Belém e a 1.880km do Palácio do Planalto, em Brasília, a usina fora projetada com a loa de que acrescentaria 11.233,1 MW à matriz energética brasileira. Mas seus empreendedores já admitiram que a produção média, por causa das mudanças impostas ao projeto, não deve passar muito de 4.000 MW.

Também é superlativa, em Altamira, a decepção com Lula, que ressuscitou o plano de construção da usina, e sua sucessora, Dilma Rousseff, em cujo governo a obra foi executada. Uma data é marcante na cidade: 22 de junho de 2010. Naquele dia, do alto de um palanque montado no Estádio Municipal José Marino Bandeira de Matos, o Bandeirão, cujos dois únicos acessos estavam protegidos por tropas da Força Nacional, para conter manifestantes contrários ao projeto, o então presidente anunciou assim o que estava por vir (a transcrição é oficial, dos arquivos do site da Presidência da República):

– De vez em quando, vem um gringo (aqui) dar palpite sobre o Brasil. Precisamos mostrar ao mundo que ninguém mais do que nós quer cuidar da nossa floresta. Ela, a floresta, é nossa. E que gringo nenhum meta o nariz onde não é chamado, porque saberemos cuidar das nossas florestas e do nosso desenvolvimento.

Lula se referia, ali, a estrelas como o cantor inglês Sting e ao cineasta canadense radicado nos Estados Unidos James Cameron, que, dois meses antes, estivera na região e protestara contra o erguimento da usina, “uma questão não só do Brasil, mas do mundo todo”, como dissera o diretor de “Avatar”, entre outros filmes de sucesso.

Durante sete dias, de 14 de a 21 de março, o #Colabora esteve em Altamira, onde navegou no Xingu, sobrevoou Belo Monte e ouviu dezenas de pessoas, entre lideranças da sociedade civil, de ONGs, autoridades municipais, índios, pescadores, ribeirinhos, moradores removidos de suas casas, representantes do Ministério Público, do Ibama, jovens, idosos, gente comum. Só a Norte Energia, insistentemente procurada, recusou-se a falar. O resultado deste trabalho rendeu uma série de reportagens que começamos a publicar a partir de hoje.