Bastidores da tragédia Kaiowá-Guarani: Multinacionais, partidos, Justiça…

Antropólogo e jornalista, Spensy Pimentel deixou, em 2007, o trabalho como repórter especial em Brasília, na Agência Brasil, para se dedicar à pesquisa de doutorado na USP, sobre a vida política dos Guarani-Kaiowá, atualmente em fase de conclusão. Spensy já tinha defendido o mestrado, também na USP, sobre a epidemia de suicídios verificada entre esses indígenas desde os anos 80. Realizou pesquisa no Mato Grosso do Sul exatamente no periodo em que os conflitos entre índios e fazendeiros se acirraram, desde 2009.

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/514922-bastidores-da-tragedia-kaiowa-guarani-multinacionais-partidos-justica

 

 

Em 2011, Spensy Pimentel lançou, junto com parceiros, o vídeo “Mbaraká – A Palavra que age“, sobre o envolvimento dos xamãs Guarani-Kaiowá com a luta pela terra em MS.

Nesta conversa com Terra Magazine, 25-10-2012, o antropólogo Spensy Pimentel elenca alguns dos atores presentes nos bastidores dessa tragédia: – (…) O movimento de recuperação das terras, que organiza as grandes assembleias (Aty Guasu), é uma reação a esse confinamento que o Estado brasileiro impôs aos Kaiowá e Guarani.

Diz ainda Spensy Pimentel: – Esse confinamento foi realizado para viabilizar a instalação do agronegócio ali: cana, soja, gado, milho produzidos para exportação, em parceria (insumos, apoio tecnológico e, muitas vezes, financiamento) de multinacionais como Bunge, Cargill, ADM, Monsanto…

Eis a entrevista.


Quando fui ao Mato Grosso do Sul, em 1999, encontrei dados que davam conta de 308 suicídios entre 1986 e 1999.  Recentemente, a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) divulgou que, de 2000 a 2011, foram mais 555 casos. Como os indígenas percebem o fenômeno?

Há uma série de dificuldades para acessar o que os Kaiowá e Guarani entendem sobre essas mortes. Em primeiro lugar, pode-se compreender que, para qualquer família em que acontece uma morte desse tipo, há, muitas vezes, certa reserva, certo receio de falar a respeito. As informações que pude obter se baseavam, em geral, na conversa com pessoas que conviviam com as famílias onde os casos ocorreram. A partir daí, é possível obter dados sobre as motivações das pessoas – boa parte, jovens – e sobre a forma como os familiares reagem. Em geral, posso dizer que, ao contrário do que já avaliaram algumas pessoas, essas mortes são, sim, um grande incômodo para as famílias Kaiowá e Guarani.

Por que isso está acontecendo?

Não é por acaso que essas mortes começaram a acontecer em maior número desde os anos 80. Os Kaiowá e Guarani mais antigos não se lembram de ter visto mais que um ou dois casos de enforcamentos antes desse período. Esse tipo de morte existia, mas era raro. Nos anos 80, no fim do regime militar, completa-se o processo de expulsão desses indígenas das áreas que eles ocupavam, em geral, nas beiras de rios e córregos, por todo o sul de Mato Grosso do Sul. Dezenas de grupos são literalmente despejados dentro das antigas reservas demarcadas pelo Serviço de Proteção ao Índio entre 1915 e 1928 para liberar a região para o agronegócio. É o que alguns chamam de “confinamento”, pois as antigas áreas, somadas, não passavam de 18 mil hectares. O processo não ocorreu sem reação por parte dos indígenas. Se você olhar os arquivos, vai ver notícias sobre grupos que resistiam aos despejos já em 1978, 1979.

O confinamento tem relação direta com essa tragédia dos suicídios, então?

Essa ação – movida em plena ditadura, é sempre bom lembrar – gerou uma mistura muito grande de famílias vindas de lugares diferentes, sem laços construídos historicamente, disputando recursos em áreas extremamente limitadas. Essas pessoas ficaram submetidas a alguns grupos recrutados pela Funai, como antes pelo SPI, em torno de um “capitão”, que era um indígena empoderado pelo Estado para, em alguns lugares, ser uma espécie de microditador ali do local. Essas figuras recebiam apoio da ditadura para reprimir os demais indígenas que tentassem voltar para seus lugares de origem, como eles fazem até hoje, em casos como o de Pyelito. Foi nesse ambiente autoritário, opressor e miserável que os suicídios se multiplicaram. Só muito recentemente a Funai deixou de empoderar esses capitães.

As pessoas têm uma enorme ansiedade de voltar para seus lugares de origem, que chamam de “tekoha” (lugar onde se pode viver do nosso jeito). Elas querem escapar das reservas porque, ali, sentem que vivem mal. O ambiente nesses lugares é, hoje, tão precário que os jovens estão fazendo rap, eles se identificam com os problemas que grupos como o Racionais MC’s expõem em suas músicas, em relação às favelas de São Paulo: violência, racismo…  Em suma, o Brasil impôs um projeto para os Kaiowá e Guarani que eles não aceitam.

Os acampamentos como o de Pyelito, do pessoal que escreveu a famosa carta-testamento há duas semanas, são, então, formados por gente que quer fugir dessa realidade?

Exatamente. Existem, hoje, mais de 30 acampamentos Kaiowá e Guarani espalhados por beiras de estrada, ou dentro de fazendas, em áreas que eles ocuparam. A isso se somam mais de 20 áreas que foram recuperadas e regularizadas, depois da dura pressão dos indígenas, com mortes de lideranças, etc. Só que essas áreas são quase todas muito pequenas, algumas têm apenas 500 hectares. O Panambizinho, que você visitou em 1999, tem 1,2 mil hectares e foi a única área homologada no governo Lula que não foi embargada pelo STF. Então, essas novas áreas não deram conta de resolver a situação, foram só uma forma de empurrar com a barriga o problema. Sem falar que muitas terras, mesmo as demarcadas, não podem ser ocupadas por conta de intermináveis disputas na Justiça.

Quais as perspectivas de resolver o conflito, de se colocar um fim a essa tragédia?

A atual mobilização que surgiu na internet é muito importante, sobretudo porque a maior arma dos que querem impedir as demarcações é a ignorância das pessoas sobre o que se passa em Mato Grosso do Sul. Quem sabe agora o governo federal e o Supremo Tribunal Federal ajam (há ações esperando há anos para serem julgadas ali). Não é só a Funai que tem responsabilidade nessa história. Alguns processos já estão no Ministério da Justiça ou no Palácio do Planalto, esperando providências. Outros estão no STF ou no TRF da 3ª Região, em São Paulo.

O movimento de recuperação das terras, que organiza as grandes assembleias (Aty Guasu), é uma reação a esse confinamento que o Estado brasileiro impôs aos Kaiowá e Guarani. Esse confinamento foi realizado para viabilizar a instalação do agronegócio ali: cana, soja, gado, milho produzidos para exportação, em parceria (insumos, apoio tecnológico e, muitas vezes, financiamento) de multinacionais como Bunge, Cargill, ADM, Monsanto…

Pesos pesados…

Sim, e não apenas estes. A disputa é desigual porque os indígenas lutam na Justiça por anos com fazendeiros que contratam advogados com o dinheiro que estão extraindo daquelas terras. Não é justo, as empresas que compram essa produção têm de ser responsabilizadas, esse movimento já está começando. Algumas empresas recentemente anunciaram que deixariam de comprar cana produzida em terras disputadas, mas isso ainda é muito restrito. Não se tem notícia de providência semelhante por parte da Petrobras, por exemplo. E o BNDES, apesar de ser provocado há anos pelos movimentos sociais e o MPF, ainda não adotou uma política de frear financiamentos que afetem essas terras. Há muito interesse político em jogo, o estado é governado desde 2007 pelo PMDB, “sócio” do governo federal, como se sabe.

Qual o estágio desse aspecto da questão, hoje?

Muitos dos envolvidos no debate, hoje, não negam a possibilidade de pagar indenizações aos fazendeiros que realmente tenham adquirido as terras de boa fé. Sabemos que muitos deles foram levados ali por incentivo do governo federal ou do Estado. Mas é fato também que muitos deles não têm agido “de boa fé” quando contratam homens armados para atacar os índios ou quando tentam obstruir os trabalhos da Funai na Justiça, na arena política em Brasília, ou até mesmo ameaçando antropólogos, como já aconteceu recentemente. De boa fé seria, neste momento, tentar ajudar a resolver essa crise humanitária por que passam os Kaiowá e Guarani e não tentar lavar as mãos, como alguns vêm fazendo.

Os Kaiowá ficaram conhecidos nos últimos anos como “índios suicidas”, alguns dizem que isso “faz parte da cultura deles”. Que lhe parece isso?

Essa ideia da “cultura” tem sido, sistematicamente, usada contra eles. Dizem que se matam para ir à Terra sem Males. Isso é um equívoco, por vezes, uma perversidade, porque dá a ideia de que os brancos no Estado de MS – e do resto do Brasil, que compram o que é produzido lá  – não são responsáveis pelo que está acontecendo com os indígenas. São responsáveis, sim. O destino post mortem de alguém que se enforca não é bom, as pessoas não são incentivadas socialmente a se matar, isso não existe. São incentivadas a lutar por suas terras, a serem guerreiros, isto sim.

O que existe é um sentimento muito grande de revolta dos jovens, com a situação que eles vivem, que se transforma em uma violência contra si mesmos e suas famílias. Mas quem é que gerou essa situação que causa a revolta? Não foram os indígenas, foram os brancos, com o confinamento. Os acampamentos, repito, são uma reação ao confinamento. Ali, como diz a carta do pessoal de Pyelito, eles vivem coletivamente e morrem coletivamente, estão buscando um estilo de vida que rompe com o que é oferecido nas reservas, o individualismo das cidades, o trabalho degradante nas usinas de cana…

Aí os “suicídios”…

Há suicídios nos acampamentos? Sim, alguns, porque a situação, em alguns momentos, se torna desesperadora. Ainda assim, os Guarani-Kaiowá persistem, porque o único caminho que percebem para fugir à miséria e à fome é a luta pela terra.