As pistas deixadas sobre como era viver na Amazônia

Pesquisa com geoglifos indica que teve uso sustentável há milhares de anos.

 

 

https://www.oeco.org.br/reportagens/as-pistas-deixadas-sobre-como-era-viver-na-amazonia/

 

 

Por Vandré Fonseca

quarta-feira, 05 setembro 2018 08:48

 Foto: Jenny Watling.

 

Manaus, AM — A arqueologia tem revelado que a Amazônia era uma região com milhões de habitantes antes da chegada dos europeus, que tinham um modo de vida bastante diferente daquele que hoje se tenta implantar na região. Era uma população numerosa e diversa, que domesticou e cultivou plantas importantes até hoje, como a mandioca, pupunha e castanha, mas que desapareceu pouco depois da chegada de portugueses e espanhóis.

O arqueólogo Eduardo Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP), faz escavações e estuda vestígios deixados por estes povos desde a década de 1990. Nesta entrevista, O Eco conversa com ele para tentar entender melhor como viviam essas populações na Amazônia e o que elas podem nos ensinar.

Nessa conversa por telefone, ele fala da diversidade de culturas que já havia nesta vasta região, provavelmente, há 9 mil anos, e das marcas deixadas. No lugar de pirâmides, imagem que logo vem a cabeça quando se fala em civilizações antigas, na Amazônia os arqueólogos tentam compreender grandes estruturas de barro, que durante anos estiveram escondidas na floresta, e analisam vestígios tão pequenos que precisam ser analisados em microscópios. Para Eduardo Neves, se existe uma palavra que pode representar a Amazônia é ‘diversidade’.

O Eco: Em quase 30 anos de estudo, o que a arqueologia mudou sobre a imagem que se tinha da Amazônia antes da chegada dos europeus?

Eduardo Neves: Eu acho que cada vez mais, hoje em dia, as pessoas aceitam a ideia de que tinha muito mais gente vivendo na Amazônia do que se pensava anteriormente. A gente ainda não sabe exatamente quantas pessoas viviam na região, ainda não consegue responder a essa pergunta, só temos estimativas. A estimativa que costumo seguir é que existiam 8 milhões de pessoas em toda Bacia Amazônica. É a imagem de uma Amazônia muito mais densamente ocupada do que a gente imaginava 30 anos atrás.

“(…) Aqui no Brasil, em uma série de movimentos desde a época da colônia, e mais fortemente nos últimos tempos, no governo militar, querem ocupar, fazer estradas, projetos de desenvolvimento que partem da premissa que a Amazônia nunca teve histórica, que nunca teve ninguém, sempre foi vazia. E a arqueologia diz que não, que a Amazônia tem uma história de ocupação muito profunda. Nós temos que incorporar essa perspectiva de alguma maneira nas políticas públicas.”

E aí nós temos que pensar numa questão sobre a Amazônia, que vira política pública não só no Brasil, mas também nos países amazônicos em geral. A visão que a gente tem é de um território nacional, que tem que colonizar. Claramente, aqui no Brasil, em uma série de movimentos desde a época da colônia, e mais fortemente nos últimos tempos, no governo militar, querem ocupar, fazer estradas, projetos de desenvolvimento que partem da premissa que a Amazônia nunca teve histórica, que nunca teve ninguém, sempre foi vazia. E a arqueologia diz que não, que a Amazônia tem uma história de ocupação muito profunda. Nós temos que incorporar essa perspectiva de alguma maneira nas políticas públicas.

O que aconteceu com essas oito milhões de pessoas?

Uma coisa que aconteceu em todo continente americano, não só na Amazônia e no Brasil, foi que, quando os europeus chegam aqui, eles trazem um monte de doenças, contra as quais as populações indígenas não tinham imunidade, vários tipos de gripe, sarampo, varíola. Havia doenças aqui, como tuberculose e sífilis, que são doenças americanas, mas muitas doenças, com catapora, não existiam aqui. Muitas dessas doenças são zoonoses, como gripe aviária, gripe suína. Aqui na América não tínhamos animais domesticados, ao contrário dos europeus que já tinham uma história de convivência com essas doenças. Quando eles vêm pra cá e trazem essas doenças, as populações que não tinham imunidade contra elas desaparecem rapidamente. A gente sabe que existiam redes de trocas conectando populações dispersas pela Amazônia. Quando os europeus entram, eles de alguma forma participam dessas redes de troca, e a partir daí vai ter o contágio antes mesmo do contato direto com os europeus. As doenças chegavam muito antes. Tiveram um impacto que está melhor documentado nas populações andinas, porque havia mais cronistas nos Andes do que na Amazônia, mas teve um impacto terrível nas populações indígenas.

A outra coisa é a própria questão da guerra e da escravidão. Os portugueses e os espanhóis chegam aqui com a mentalidade da Guerra da Reconquista da Península Ibérica do final da Idade Média. Muitos grupos desaparecem, exterminados pela guerra.

“Quando os primeiros viajantes cientistas começam a andar pela Amazônia, no final do século XVIII, no século XIX, eles vão ver uma região que está esvaziada porque a população havia diminuído drasticamente nos séculos precedentes. Essa região que antes era ocupada, está recoberta por floresta. Isso deu origem a essa imagem de um trópico que sempre foi desabitado, inóspito e com pouca gente.”

E a terceira coisa foi a escravidão. A atividade econômica mais importante na colônia era a escravidão indígena. Então o impacto dessas três coisas, da guerra, das doenças e da escravidão foi muito grande.

Quando os primeiros viajantes cientistas começam a andar pela Amazônia, no final do século XVIII, no século XIX, eles vão ver uma região que está esvaziada porque a população havia diminuído drasticamente nos séculos precedentes. Essa região que antes era ocupada, está recoberta por floresta. Isso deu origem a essa imagem de um trópico que sempre foi desabitado, inóspito e com pouca gente. Só que esse quadro é muito mais histórico, reflexo dos primeiros anos da colonização, do que o resultado de um modo de vida característico das regiões tropicais.

Como a arqueologia está contribuindo para confirmar essas hipóteses.

Darcy Ribeiro já dizia isso nos anos 1950. Essas coisas não são novidades. A questão é que pela primeira vez, nos últimos anos, a gente está tendo… Qual a vantagem da arqueologia? A arqueologia está escrevendo a história dos povos indígenas antes da chegada dos europeus, e essa história se só tem como saber pela tradição oral, não tem escritos deixados. A vantagem da arqueologia é que ela dá uma perspectiva histórica profunda de milhares de anos. A arqueologia é história, a diferença é que em arqueologia a gente trabalha com intervalos de tempo muito longos, milhares de anos. A gente perde a resolução, nem sempre a qualidade dos dados é refinada, porque não é como um arquivo escrito com informações detalhadas. Mas ao mesmo tempo, a gente ganha em profundidade cronológica. Então a gente consegue entender o que aconteceu, quero dizer, a gente está começando a entender. A gente consegue delinear, digamos assim, a história de ocupação da Amazônia, nos últimos dois mil anos antes da conquista europeia.

Qual impacto que essa população para a floresta? Elas tinham atividades sustentáveis ou causavam impactos grandes na floresta. Existe a hipótese de que, com o desaparecimento dessas populações, a floresta pode se recuperar, provocando uma grande absorção de carbono e interferido no clima global.

Escavação em Monte Castelo. Foto: USP.

É uma hipótese bem interessante. Tem gente que correlaciona a Pequena Idade do Gelo, que aconteceu mais ou menos nessa época, no final da Idade Média, início da Idade Moderna, século XVI, à redução da emissão de gases de efeito estufa, porque teríamos menos fogo. Essa pessoas desaparecem, então param de fazer roça, param de queimar a floresta. Quando desaparecem essas populações indígenas, a floresta começa a crescer absorvendo esse gás carbônico que está na atmosfera, garantindo até um impacto no resfriamento da temperatura do planeta. É uma hipótese interessante.

O que temos de trabalho sobre fogo vem da periferia da Amazônia. Tem um trabalho que saiu de uma região de campos, no litoral da Guiana Francesa, não é da floresta, que mostra porém que o fogo aumenta depois que os europeus chegam. Antes havia técnicas de manejo, baseadas no manejo do fogo, que não deixavam vestígios de muito carvão encontrados nos depósitos. Quando os europeus chegam, aumenta muito mais a deposição de carvão. O que a gente está percebendo agora… estou abrindo um artigo que saiu com dados de Santarém. A gente tem registros de 4.500 anos nesse lago. Parece que nesse contexto, o uso do fogo é um uso mais controlado.

É meio óbvio, mas naquela época não tinha machado de metal. Era tudo com machado de pedra, não tinha motosserra. O fogo era um instrumento importante de manejo, mas que não tinha a escala que se tem hoje em dia. Era uma escala muito menor e mais localizada. O que está acontecendo agora é que a gente está retroalimentando. Se você ver o que que tem lá no Xingu. Os índios sempre usaram fogo para manejar a floresta. Só que agora todo o entorno do Xingu está desmatado, por causa das fazendas de soja, de gado e de milho. Na Terra Indígena, onde a floresta está em pé, você não tem aquela mata de entorno que proteja, então qualquer queimada de roça hoje em dia vira um incêndio de proporções catastróficas.

Então, as evidências arqueológicas não contribuem para a hipótese de que o esvaziamento da Amazônia tenha contribuído para a Pequena Idade do Gelo?

“Os índios sempre usaram fogo para manejar a floresta. Só que agora todo o entorno do Xingu está desmatado, por causa das fazendas de soja, de gado e de milho. Na Terra Indígena, onde a floresta está em pé, você não tem aquela mata de entorno que proteja, então qualquer queimada de roça hoje em dia vira um incêndio de proporções catastróficas”.

Acho que não. Eu penso que não. Tinha muita gente, tinha um efeito interessante de modificação da floresta, mas acho que o modelo que esses autores têm para fogo estão muito mais baseados nos padrões de uso de fogo atuais do que nos padrões antigos. Apesar de achar essa hipótese interessante, ela é contrária ao que defendo. Se a gente coloca a Amazônia numa escala global, não sei se temos evidências para apoiá-la.

Qual é a sua hipótese?

Se a gente pudesse fazer uma viagem e voltar para a Amazônia, mais ou menos, ao ano de 1.500, a gente veria uma espécie de arquipélago, com algumas áreas mais manejadas, com áreas de capoeira mais antigas, em diferentes estágios de sucessão, permeadas por áreas de floresta. As evidências de modos tradicionais de vida, que estão desaparecendo rapidamente no interior da Amazônia, mostram a questão da roça de coivara, em que eles vão mudando de lugar a cada 5 anos, por exemplo. Isso era muito forte até os anos 1950 e 1960, na verdade. Eles faziam uma roça noiva, depois mudavam de lugar, naquela itinerância, em que vão se deslocando através da paisagem. Mas os dados arqueológicos mostram para nós que esses povos antigos eram muito mais sedentários, ficavam muito mais tempo no mesmo lugar. Isto quer dizer que, no entorno desses assentamentos, o impacto de desmatamento ou de sucessão talvez sido muito mais marcado e mais forte. Por outro lado, o fato de não terem machados de metal, e sim machados de pedra, sugere que não existia esse modelo de roça quadradinha, de um hectare, no meio da floresta, que é resultado da motosserra e do machado de metal. Imagino que essas roças antigas eram meio amorfas, não tinham uma forma bem definida. Eles aproveitavam as derrubadas naturais das florestas, plantavam ao longo dos caminhos e das trilhas. Imagino que o gradiente entre o mundo da floresta e o mundo da aldeia era muito mais sutil também.

“Acho que existe uma combinação de processos naturais, que tem a ver com uma mudança climática bem marcada, na transição do Pleistoceno para o Holoceno, com a megafauna. As populações humanas tiveram seu papel, mas colocar só o fator humano não explica.”

Outra coisa importante, que pouca gente fala, é a arboricultura, o cultivo de árvores. Talvez os melhores exemplos que a gente tenha agora sejam do açaí e da castanha, que são árvores superimportantes e muito produtivas. Uma castanheira, depois que começa a produzir, pode continuar por centenas de anos. É muito comum ter castanhal em terra preta. A castanheira para crescer precisa de acesso ao sol. Uma muda de castanha para poder crescer, tem que estar em lugar aberto. Se estiver em local fechado, na floresta, ela não consegue crescer. É de se imaginar que havia sistema de manejo incentivando o crescimento dessa planta. Então essa ideia de cultivo de árvores, arboricultura, bacaba, açaí, castanha, pequi, um monte de árvores importantes na Amazônia, podem ter tido papel importante na construção dessas paisagens.

E a caça? Existem hipóteses de que populações antigas tenham provocado extinção da megafauna na América e em outros lugares.

Tem uma revisão que saiu três ou quatro anos atrás, que é a última coisa que eu li, que acompanhei. Parece que no norte de continente, a megafauna se extinguiu antes da chegada dos humanos. Se bem que os dados da chegada dos humanos estão ficando cada vez mais antigos. A questão é que acho que não há uma correlação da extinção da megafauna e da chegada dos humanos. Enquanto que no Sul do continente, no Argentina, na Patagônia, tem uma relação entre  a presença humana e a megafauna, inclusive com presença de megafauna nos sítios arqueológicos. Eles estavam caçando essa megafauna.

Acho que existe uma combinação de processos naturais, que tem a ver com uma mudança climática bem marcada, na transição do Pleistoceno para o Holoceno, com a megafauna. As populações humanas tiveram seu papel, mas colocar só o fator humano não explica.

Por outro lado, parece cada vez mais que alguns tipos de frutas encontradas atualmente têm um padrão de dispersão que não pode ser explicado a partir da fauna que existe hoje, na Mata Atlântica, no Cerrado ou na Amazônia. São frutas de megafauna. O abacate, que é da Mesoamérica (região que vai da Costa Rica ao Sul do México), é um exemplo ilustrativo. Ele tem uma semente muito grande para qualquer animal dispersar. É provável que a megafauna tenha selecionado esses fenótipos, o mesocarpo (polpa), o tamanho das sementes. E quando os humanos chegam, a megafauna está desaparecendo. Não está claro se o homem tem relação com esse desaparecimento, mas o ser humano assume o papel que a megafauna tinha na cadeia trófica, vai promover a dispersão dessas frutas. De alguma maneira, estou simplificando, a gente ocupa o papel que a megafauna ocupava anteriormente.

É possível falar em fases da ocupação humana na Amazônia?

Geoglifo. Foto: Jenny Watling.

A gente sabe que existem humanos na Amazônia há pelo menos 11 mil anos, isto já está bem estabelecido, e provavelmente há 14 mil anos. A gente faz escavações, datas os sítios arqueológicos e coleta amostras de solo para análises químicas. E a gente tem dados que devemos publicar ainda esse ano ou no começo do ano que vem, de evidências de manejo, de mudanças na química do solo, que começam a acontecer há 9 mil anos.

A gente começa a ver a formação de áreas de terra preta na periferia da Amazônia, em Rondônia e na Guiana a partir de, mais ou menos, 6 mil anos atrás. E a partir de 2.500 anos atrás, a ocupação da Amazônia se adensa bastante, a gente tem evidência da presença humana em toda parte. Onde quer que a gente procure, vai encontrar evidência da presença humana. Muita terra preta começa a se formar, evidência de populações humanas sedentárias. Esse processo de adensamento, que começa 2.500 anos atrás, ele vai, com muitas variações locais, até a conquista, até o século XVI.

Algumas áreas da Amazônia tem sequências longas de ocupação, histórias longas de ocupação. Uma delas é a região do Alto Rio Madeira, em Rondônia, por isso trabalho lá hoje em dia. A gente tem ocupações longas, que começam há pelo menos 9 mil anos, ou talvez antes disso. Mas em alguns lugares da Amazônia, nós temos hiatos na história de ocupação, que não estão claros ainda. A gente pode falar de maneira geral que tem gente há pelo menos 11 mil anos na Amazônia, porque desde cedo a gente começa a ver sistema de manejo e caça de pequenos animais. No caso da Amazônia Central, perto de Manaus, temos um sítio que escavamos, que se chama Hata-hara, que fica em Iranduba, na beira do Rio Solimões. Nesse sítio a gente tem muita fauna preservada. A gente tem evidência de consumo de quelônios, muito mais peixes do que mamíferos, quase não tem macaco no registro, mas tem muito osso de réptil, jacaré, tracajá, pirarucu, tambaqui. Alguns peixes consumidos hoje, aparentemente não eram no passado, como é o caso do jaraqui. Não vê muito jaraqui. Muito bagre, pirarucu e peixes grandes, como tambaqui.

É uma população que vai se estabelecendo ou são ondas?

“São várias populações diferentes. Uma coisa interessante, a gente fala muito em biodiversidade, que é fundamental, mas a gente tem que falar também da sociodiversidade ou sociobiodiversidade. Se você olhar do ponto de vista cultural, em termos de línguas indígenas, a Amazônia é a região de maior diversidade linguística do planeta. São centenas de línguas indígenas, são mais de 150 línguas diferentes, muitas são aparentadas, muitas isoladas, muitas famílias pequenas de línguas com duas ou três que são faladas só em algumas regiões da Amazônia.”

São várias populações diferentes. Uma coisa interessante, a gente fala muito em biodiversidade, que é fundamental, mas a gente tem que falar também da sociodiversidade  ou sociobiodiversidade. Se você olhar do ponto de vista cultural, em termos de línguas indígenas, a Amazônia é a região de maior diversidade linguística do planeta. São centenas de línguas indígenas, são mais de 150 línguas diferentes, muitas são aparentadas, muitas isoladas, muitas famílias pequenas de línguas com duas ou três que são faladas só em algumas regiões da Amazônia. Então temos um quadro de diversidade cultural muito grande. Se você olhar para a arqueologia, você vai ver que tem uma diversidade muito grande. Se você voltar ao ano de 1.500, você vai ver que tem um padrão na região de Manaus, uma coisa totalmente diferente em Santarém, outra coisa diferente na Ilha de Marajó, no Amapá seriam outras padrões de ocupação, no Acre, outra história, em Rondônia também.

As áreas que a gente conhece hoje em dia tem uma diversidade muito grande de formas de ocupação. Não é uma única população.

A maioria são populações locais. Quero dizer, teve um começo. A gente pode dizer com certa segurança que, há 30 mil anos, não tinha ninguém na Amazônia. Há 20 mil, eu não sei, podemos encontrar coisas com essa idade. Há 14 mil, tem um sítio datado em 14 mil, lá no Alto Guaporé. As evidências vão ficando menos ambíguas. Há menos de 11 mil, com certeza tinha gente. E há 9 mil, tem gente na Serra dos Carajás, tem gente no Rio Caquetá, na Colômbia, tem gente na Amazônia Central, tem gente no Baixo Amazonas, gente no Alto Madeira. Há 9 mil, não é ainda um quadro de adensamento demográfico, mas a gente vê que diferentes biomas dentro da Amazônia já estavam sendo ocupados. Desde áreas da Serra dos Carajás, nos campos rupestres, até áreas ribeirinhas no Rio Negro e do Rio Solimões.

A gente olha para o tipo artefatos encontrados nos sítios arqueológicos e tenta inferir se tem um padrão de homogeneidade ou não. Se a gente tem a cerâmica muito parecida ou objetos de pedra lascada muito parecidos, em áreas extensas, a gente pode falar que existe uma certa homogeneidade cultural. O caso interessante de Amazônia é que, desde o começo, desde 9 mil anos atrás, não existe uma única categoria de artefato ou um único tipo de artefato que caracteriza a ocupação da região. Se a gente olhar para os objetos de pedra lascada produzidos há 9 mil anos, eles já são muito diferentes entre si. Então a gente tem pontas de projétil bifaciais perto de Manaus, perto de Santarém; tem lascas de quartzo, lá em Carajás; tem lascas de outro tipo de material lá no rio Caquetá, que é o Japurá. Esse quadro de grande diversidade cultural que a gente vê hoje em dia, que está ameaçado de uma maneira inédita, a gente vê ele se estabelecer desde o começo, 9 mil anos atrás.

Acho que a mensagem que eu quero passar para você aqui é que, se existe uma palavra chave para a Amazônia, é diversidade. Ela vale para o Meio Ambiente, mas vale também para a questão cultural.

E as relações dessa população da Amazônia com as paisagem que existem ao redor, como a transição para a caatinga, cerrado e Andes. Existe relações dessas populações do entorno com a Amazônia ou era um universo isolado.

Com a Caatinga, a gente não sabe direito ainda. Mas com os Andes, principalmente Amazônia Ocidental, no Peru, Colômbia, Equador, as relações os Andes são muitos claras. O cacau é uma planta amazônica, mas é superimportante na Mesoamérica, para os Maias, os Astecas. A mandioca é uma planta amazônica que também era muito consumida na América Central e no Peru. O milho é mesoamericano, vem lá do México, mas entra muito cedo na Amazônia. A pupunha, que uma planta que até hoje é superimportante na América Central, e é uma planta amazônica. A gente vê desde cedo relações pelas plantas, entre plantas amazônicas que são cultivadas há 4 mil anos, ou até antes, fora da Amazônia, como a mandioca, e plantas que entram na Amazônia. O milho não é da Amazônia, mas entra na Amazônia há pelo menos 6 mil anos.

Foto: Edison Caetano.

No Peru, existe um sítio arqueológico muito famoso, chamado Chavin de Huantar, na Cordilheira, no alto da serra, coberto de neve. Durante muito tempo, foi considerado o sítio cerimonial mais antigo dos Andes. Tem mais ou menos 3 mil anos. Se você olhar a iconografia, tem muitos objetos de pedra, estátuas de pedra, ela quase que totalmente faz referências a temas amazônicos, o amendoim, que é uma planta amazônica, o jacaré-açu, tem a sucuri, a mandioca. Um monte de planta e bicho representado nessa iconografia, o que levou alguns autores a proporem há muitos anos que esses povos teriam tido uma origem ou uma influência amazônica na configuração desses templos.

Porque não tem pirâmides na Amazônia?

Estou escrevendo um livro que tem esse título. Essa é uma pergunta que todo mundo faz e é superimportante. De fato, não tem. Acho que não tem por causa da abundância. Existia muito recurso, e esse tipo de estrutura aparece em contextos de algum tipo de escassez. Se você olhar na América do Sul, elas aparecem no litoral do Peru, que é uma região muito produtiva, litoral muito piscoso, mas que é deserto. Então você tem recursos muito produtivos e concentrados e circunscritos em áreas específicas. Na Amazônia, não. É difícil de controlar os recursos. Não tem pirâmide porque o sujeito diz ‘ não vou continuar a trabalhar para esse pentelho, eu vou embora, vou cuidar da minha vida’. Aquela coisa do caboclo leso, da “leseira baré”, tem uma cara política também. É muito comum os viajantes contarem que contrataram gente para remar e acordou no dia seguinte e todo mundo sumiu.

Se não tem grandes construções, o que o arqueólogo busca na Amazônia para contar a história da região.

A gente não tem pirâmide de pedra, mas têm estruturas de terra que são monumentais. No Acre, por exemplo, temos sítios com aterro, que são grandes, são geométricos, quadrados, estradas. A gente está descobrindo uma rede de estradas lineares antigas. A gente tem muita coisa que não é de pedra, mas que é de terra. Que se fosse de pedra, talvez fosse chamado de pirâmide ou um sítio monumental. Durante muito tempo nem se consideravam (essas estruturas), não se reconhecia como arqueológico, porque era de barro, debaixo do mato, parecia que era natural. Então tem muita coisa para se estudar, muito aterro, muita vala, muita estrada. Tem a terra preta, tem uma cerâmica maravilhosa, algumas delas que infelizmente queimaram lá no Museu Nacional no Rio de Janeiro, uma coleção marajoara maravilhosa que o Museu Nacional tinha. Uma tragédia, isso.

“Durante muito tempo nem se consideravam (essas estruturas), não se reconhecia como arqueológico, porque era de barro, debaixo do mato, parecia que era natural. Então tem muita coisa para se estudar, muito aterro, muita vala, muita estrada. Tem a terra preta, tem uma cerâmica maravilhosa, algumas delas que infelizmente queimaram lá no Museu Nacional no Rio de Janeiro, uma coleção marajoara maravilhosa que o Museu Nacional tinha. Uma tragédia, isso”.

Tem muita coisa para ser estuda, mas é uma coisa diferente. A arqueologia está dando essa virada porque coisas que a gente considerava naturais na verdade não são, foram transformadas pelos índios. Talvez a terra preta seja o melhor exemplo disso. Mas tem outras coisa também. Essa região do Acre, até os anos 1970 era coberta de floresta. No Oeste do Acre, o pessoal começa a desmatar e aparecem as estruturas. São mais de 500 estruturas de terra. O que é interessante no caso do Acre, a gente tem evidências paleobotânicas….

Isso eu gostaria de saber mais. É também uma arqueologia de coisas minúsculas.

É, de micro vestígios. É a coisa mais legal que está acontecendo. O trabalho da Jenny (Jennifer Watling) mostra que eles convertiam um tipo de floresta, aquela floresta de bambu típica do Acre, em outro tipo de floresta, que é uma floresta de palmeiras. Quando a gente pensa em ocupação de áreas de floresta, nosso modelo é derrubar a floresta, plantar roça, botar pasto… A Jenny mostra que, no Acre, eles manejavam a floresta convertendo um tipo em outro tipo de floresta. Isso é uma coisa meio revolucionária. É um modelo que a gente não tem na nossa cabeça, transformar a floresta em outro tipo de floresta. Os dados da Jenny vem de micro vestígios, são coisas microscópicas. Dados da fauna, de pesca, são ossinhos de peixes conservados. São novos tipos de evidências, muito mais interdisciplinares, que trazem resultados muito interessantes.

Hoje já não se discute se a  terra preta em origem natural ou foi produzida por humanos.

Pode ser que tenha uma ou outra pessoa que discorde, mas está estabelecido. E hoje em dia existem centenas de trabalho que assumem que a terra preta tem autoria antrópica. São solos claramente formados pela atividade humana no passado.

O que forma a terra preta?

“Quando a gente pensa em ocupação de áreas de floresta, nosso modelo é derrubar a floresta, plantar roça, botar pasto… A Jenny mostra que, no Acre, eles manejavam a floresta convertendo um tipo em outro tipo de floresta. Isso é uma coisa meio revolucionária. É um modelo que a gente não tem na nossa cabeça, transformar a floresta em outro tipo de floresta.”

Em português claro, é composteira. Composto orgânico, carvão queimado a baixa temperatura, não o carvão de queimada, mas aquele carvão de fogueira de casa no interior, que queimou o dia inteiro, na hora de esquentar abana e vira um fogo, depois vira aquela brasa de novo. E muito resto de peixes, osso de peixe, que tem muito fosfato, resto de sementes. É composto, lixo orgânico. As pessoas cavavam buracos, jogavam lixo, e isso vai se formando ao redor das casas e vão ser formando os solos antrópicos.

Mas propositalmente ou de maneira acidental?

Aconteceu. As pessoas estavam paradas e vinham jogando lixo orgânico. Depois, é claro, perceberam que esses solos tinham uma produtividade que era notável. Mas na minha opinião, claramente foi uma coisa não planejada. Até porque a gente tem terra preta em área de várzea. E solos de várzea são solos muito ricos, então não precisaria criar terra preta em solos já produtivos.

Qual a lição esses povos nos deixaram?

Eu acho que a lição que deixam é que na Amazônia dá para viver e é bom para se viver. E a gente tem evidência de ocupações milenares e estáveis. E segundo, que não deve existir uma contradição entre ocupação humana e preservação da floresta. Pelo contrário, a ocupação humana pode até levar a uma geração de mais biodiversidade. Mas obviamente tem que ser uma ocupação diferente daquela que a gente está fazendo hoje em dia. Eu adoro Manaus, mas uma cidade com 2 milhões de habitantes tem um impacto muito grande. E a tragédia contemporânea é que, quando a floresta é destruída, além do impacto sobre as populações que é horroroso e a gente estar perdendo uma biodiversidade imensa, tem também uma história de ocupação que está nessas florestas. Dá para viver bem, dá para viver durante muito tempo, mas não do jeito que está.