Nos anos 1930, o embaixador brasileiro em Paris declarou que os índios no Brasil estavam “extintos”. A história, contada em livro pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, foi lembrada logo no início da mesa da Flip batizada com o título de um de seus livros, “Tristes trópicos”. No debate, mediado pela jornalista Eliane Brum, os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Beto Ricardo denunciaram ataques antigos e atuais contra os direitos indígenas no país. E apontaram a permanência, em setores da sociedade nacional, de visões parecidas com a do diplomata de quase um século atrás.
http://oglobo.globo.com/cultura/flip-2014/antropologos-denunciam-ofensiva-contra-direitos-indigenas-no-brasil
Eduardo Viveiros de Castro e Beto Ricardo falam sobre ameaças à Amazônia e dizem que índios são ‘exemplo’ para o futuro
PARATY – Um dos fundadores do Instituto Socioambiental (ISA), Beto Ricardo abriu o debate repassando as últimas décadas de luta por direitos indígenas no Brasil, que se intensificaram durante a ditadura, quando a Amazônia era vista pelo regime como “vazio demográfico” a ser explorado economicamente. A militância daquele período culminou com as conquistas da Constituição de 1988, que ajudou, por exemplo, a ampliar a demarcação de reservas. Mas essas conquistas enfrentam hoje uma nova ofensiva, disse Ricardo.
— Hoje há cerca de 400 iniciativas no Congresso contra os direitos indígenas. Muitas são lixo legislativo, não têm chance de aprovação, mas algumas apresentam riscos reais — disse Ricardo, citando a PEC 230, que transfere a responsabilidade pelas demarcações do Executivo para o Legislativo. — Os territórios indígenas são criticados pelo agronegócio por serem muito extensos. E o Congresso está cheio de representantes do agronegócio.
Viveiros de Castro disse que essa é a “ofensiva final” contra os índios, mencionando o histórico de violências sofridas por eles desde a colonização. Citou como exemplo mais dramático o caso das populações tradicionais no Mato Grosso do Sul, como os guarani:
— Os índios do Mato Grosso do Sul vivem numa Faixa de Gaza brasileira. Estão confinados na beira da estrada, e ainda têm seu território pouco a pouco reduzido, sofrendo todo tipo de violência — disse Viveiros de Castro, bastante aplaudido em vários momentos do debate, assim como Ricardo.
Duas perguntas da plateia provocaram respostas incisivas dos debatedores. Uma delas pediu que se comparasse o projeto atual da usina de Belo Monte, que está sendo construída no rio Xingu, com o projeto similar desenvolvido, mas não implementado, durante a ditadura.
— É verdade que houve uma revisão técnica do projeto, não é o mesmo da ditadura — disse Ricardo. — Mas cria-se uma visão de que assim ele teria pouco impacto sobre a região, o que não é verdade. Para alimentar Belo Monte será preciso barrar o Xingu em outros pontos. Belo Monte é como um Cavalo de Troia. O que o Brasil precisa é buscar novas matrizes de energia.
Viveiros de Castro chamou Belo Monte de “picaretagem econômica” e lembrou que outros pontos da Amazônia sofrem ameaças parecidas à do Xingu:
— Belo Monte não existe para fazer energia, existe para empreiteiras fazerem Belo Monte. Rios da Amazônia como o Xingu, o Tapajós e o Madeira estão sendo barrados, sem que haja uma ideia clara do que pode acontecer com a maior bacia de água doce do mundo. É uma postura suicida.
Em outra pergunta, um espectador disse ter feito viagem recente pelo Norte do Brasil, onde encontrou “pseudo-índios bêbados, preguiçosos e sujos”, e pediu a opinião dos debatedores. A pergunta causou manifestações de espanto em parte da plateia.
— Identidade é coisa mais profunda do que roupas — disse Ricardo. — Existe essa ideia de que os índios têm que corresponderao estereótipo que fazemos deles. Se fogem disso, são condenados à morte. Mas o que dizer dos brasileiros que pedem cidadania europeia para obter vantagens? Deixam de ser brasileiros por isso?
Para Viveiros de Castro, os índios não são “lembrança do passado” e sim “exemplo” para o futuro.
— Vivemos uma catástrofe climática. Nosso mundo, entendido como modo de vida, já acabou — disse Viveiros de Castro. — Então, nada melhor do que consultar os especialistas em fim de mundo, os índios. O mundo deles acabou há 500 anos. Mas alguns sobreviveram. E mostram que é possível viver numa terra sem destruí-la.