Produção de óleo de pequi do povo Kĩsêdjê na Terra Indígena Wawi (MT). Imagem: Rogério Assis/ISA
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19/01/2022
Ela é a chance de superar o extrativismo. Significa usar biodiversidade e saberes ancestrais contra as desigualdades, valorizar os povos das florestas e desenvolver ciência, indústria e bem-estar. Requer política pública e frear o avanço do agronegócio.
Um dos mais frequentes e nefastos equívocos sobre os rumos do crescimento da Amazônia consiste em confundir bioeconomia com extrativismo. É fundamental, sem dúvida, ampliar o uso sustentável da gigantesca sociobiodiversidade das florestas tropicais (e de seus rios). Os povos da Amazônia, os cientistas, os empresários responsáveis, os ativistas e as organizações de fomento ao empreendedorismo têm feito progressos imensos nesta direção. Mas a bioeconomia tem que ir muito além das florestas.
O Selo Origens Brasil agrega comunidades locais e dezenas de empresas de vários tamanhos, que beneficiam e comercializam produtos de áreas protegidas, com apoio do Instituto Socioambiental, do IMAFLORA e de diversas outras organizações não governamentais. O Projeto Amazônia 2030 tem divulgado trabalhos mostrando os potenciais dos produtos da sociobiodiversidade florestal tanto em mercados globais como no fortalecimento da gastronomia e do turismo. Centro de Empreendedorismo da Amazônia, Conexsus, BelTerra, IDESAM, Amazônia 4.0, são apenas algumas de uma quantidade crescente de organizações voltadas à valorização do trabalho dos povos da floresta e dos potenciais nela contido em termos de alimentação, novos materiais, usos farmacêuticos e cosméticos.
Mas é claro que, quando for interrompida a destruição atualmente promovida pelo governo federal, a economia da floresta não será suficiente para permitir que o crescimento econômico da Amazônia se traduza em melhoria das condições de vida daquela que é a região brasileira com os piores indicadores sociais. Não se pode tratar a bioeconomia como um atributo limitado à floresta, como se fosse um setor econômico, uma redoma dentro da qual a natureza será protegida, junto com os povos que dela diretamente dependem e que procuram preservá-la.
Bioeconomia é, literalmente, a economia da vida. Neste sentido, mais que um setor entre outros, ela é um valor que deve estar na base de toda e qualquer decisão econômica, em qualquer região do mundo. O desafio da humanidade no Século XXI consiste em reduzir as desigualdades, exterminar a pobreza e a fome, a partir de modelos de crescimento econômico que regenerem os tecidos naturais até aqui devastados pelas formas predominantes de produção de bens e serviços. Orientar o crescimento econômico para a luta contra a crise climática (como vêm fazendo os países que têm relevância no cenário político e econômico global) é colocar a defesa da vida como vetor das atividades humanas.
Mas é claro que este ponto de partida, estes valores ético-normativos, se traduzem de forma diferenciada em cada região. No caso da Amazônia, não se trata apenas de proteger a floresta para que ela cumpra suas funções ecossistêmicas globais e permita melhorar as atividades e as condições de vida das populações que aí vivem. Quando a destruição for afastada da paisagem social das florestas, os efeitos multiplicadores da sociobiodiversidade florestal aparecerão com mais clareza, bem como seus impactos sobre o trabalho e a renda da população. A industrialização dos produtos da floresta e a aplicação da melhor ciência em seu conhecimento são também fontes fundamentais de inovação e crescimento econômico. O trabalho do Instituto Escolhas mostra que a Zona Franca de Manaus pode ganhar dinamismo se suas capacidades industriais e tecnológicas se voltarem para o uso sustentável da sociobiodiversidade florestal. Mas isso será insuficiente.
O capítulo sobre bioeconomia do Painel Científico para a Amazônia mostra que a economia da vida é fundamental para o conjunto da região. Em primeiro lugar, ela deve orientar as políticas urbanas da Amazônia, já que sedes municipais reúnem quase 70% de sua população. Só as regiões metropolitanas da Belém e Manaus contam com 5,5 milhões dos 30 milhões de amazônidas brasileiros.
Enfrentar as carências em educação, saúde, saneamento, gestão de resíduos, habitação e conexão à internet destas regiões exige abordagens inspiradas pela ideia cada vez mais importante nas organizações multilaterais de “soluções baseadas na natureza“. Estas soluções têm que entrar na matriz estratégica das políticas urbanas da Amazônia.
Um exemplo, neste sentido, é a urgência em se promover o maior uso da madeira em obras de infraestrutura urbana, no lugar do concreto, cujo impacto sobre os serviços ecossistêmicos é altamente destrutivo. Usar a madeira não é sinônimo de destruir a floresta. Ao contrário, este uso supõe o manejo sustentável das áreas florestais, promovendo integração entre necessidades urbanas e fortalecimento da sociobiodiversidade. Arborização urbana (como vem sendo promovida em Belém) é outro exemplo de soluções baseadas na natureza, sobretudo em regiões de tão altas temperaturas.
Mas as “soluções baseadas na natureza” terão que inspirar também a agropecuária de commodities e a agricultura familiar da Amazônia que já possui uma rica experiência neste sentido, como mostram os trabalhos do professor Francisco de Assis Costa. O mundo aceitará cada vez menos produtos agropecuários vinculados à destruição da natureza e ao empobrecimento dos serviços ecossistêmicos por ela prestados. Além do respeito às áreas protegidas, deverão ser implantados métodos produtivos que usem os produtos da sociobiodiversidade, que não poluam os rios e o solo e cujo valor agregado esteja não apenas em seus baixos custos, mas sobretudo na capacidade de rastrear seus efeitos regenerativos. A agroecologia, que se tornou política oficial da União Europeia, oferece caminhos promissores para a Amazônia.
Estes são rudimentos de uma ideia que precisa ser aprofundada e cuja inspiração principal é que o crescimento econômico da Amazônia, a luta contra a pobreza e as desigualdades não podem padecer da cisão que consiste em afirmar o valor ecossistêmicos da floresta e, ao mesmo tempo, preconizar modalidades convencionais de crescimento econômico para as cidades, a oferta de commodities e a agricultura familiar.
Se a economia da vida é o vetor do crescimento econômico global é óbvio que, para o país detentor da maior sociobiodiversidade do Planeta, ela oferece oportunidades que o fortalecimento da democracia, a luta contra as desigualdades, a ciência e os povos da Amazônia e do Cerrado saberão aproveitar.