Filósofo e poeta da Martinica, Aimé Cesaire.
https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/aime-cesaire-e-o-racismo-na-histeria-contra-lula/
21/02/2024
[NOTA DO WEBSITE: Aqui não importa ter sido o Lula que tenha falado sobre a questão Hitler /Holocausto/Israel. O que importa para nós do website é o desvelar que o filósofo de Martinica, Aimé Cesaire, nos traz. A constatação de que o ‘patrimônio’ exclusivo de: ‘sofrimento’, violação, degradação e extermínio dos judeus, pertence somente aos brancos. Para o filósofo, o crime de Hitler foi ele ter praticado contra os supremacistas brancos eurocêntricos. Ou seja, todos os outros holocaustos impetrados pelos supremacistas brancos por todos os continentes, não merecem ser ‘holocaustos’. Esse icônico extermínio com toda a honra que devemos, todo o planeta, reverenciar é só dos brancos europeus que casualmente professam o judaísmo. O resto continua sendo, de acordo com o centro do poder ideológico do supremacismo branco, incluindo para os que professam a colonialidade, só isso: resto de e da humanidade. E assim, como alguém ousa conspurcar esse relicário com o ‘resto’? E vemos que é só e tudo isso].
Como lembrou pensador africano, o que não se perdoa em Hitler não é o crime em si – é o crime contra o homem branco; é ter aplicado à Europa o que antes atingia apenas os outros. Ao “denunciar” a comparação de Lula, mídia vincula-se a este olhar colonial.
“A tradição diplomática do Brasil é de resolução de problemas. O ‘incidente’ com Israel vai em direção oposta e atrapalha não só a imagem do país, mas também o andamento de assuntos de interesse da população num ano eleitoral”. Assim o apresentador editorializou, de forma excepcional, o encerramento do programa Roda Viva, que recebeu, na última segunda-feira, o ministro das Relações Institucionais Alexandre Padilha.
Basicamente, o jornalista (ou sua chefia) afirmou que Lula foi irresponsável ao comparar o genocídio em curso na Faixa de Gaza ao Holocausto perpetrado pelo Terceiro Reich, nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Afetou a tradição diplomática nacional e o potencial eleitoral do campo dito democrático nas municipais do fim do ano. A fala de fechamento do Roda Viva sumariza o que tem sido a reação mais “progressista” da mídia corporativa brasileira à forte declaração do presidente. Sobre posições abertamente genocidárias, eu me reservo o direito de nem comentar.
Por trás da preocupação mundana com os rumos da chamada normalidade democrática no Brasil, disfarça-se a pura e simples hierarquização da vida humana. Mas por ora, aos argumentos de superfície: mais do que um disparate conceitual, a fala de Lula seria um erro tático, por ocorrer em meio ao fechamento de cerco em torno do ex-presidente Jair Bolsonaro, acossado pela Justiça por sua cada vez mais deflagrada atuação em prol de um Golpe de Estado em 2022.
Para quê ressuscitar um bolsonarismo nas cordas, se a economia neoliberal capitaneada por Fernando Haddad cresceu acima do esperado? Para que alimentar o fogo de um Congresso cravejado por todos os tons de fascismo? Para que atiçar a oposição, num país de missionarismo evangélico galopante, em pleno ano eleitoral? E mais, para que fazer isso às vésperas de um ato público convocado por Bolsonaro em sua própria defesa? Se a suástica verde e amarela tomar a Avenida Paulista no domingo, a culpa não será da insistente inação de nossas classes política e midiática diante do fascismo, cujas raízes na história recente remontam à Anistia geral e irrestrita que anulou os crimes da Ditadura na reabertura política de 1985. Não, a culpa será de Lula, esse Bolsonaro de sinal invertido.
Reside por trás dessa reação hegemônica o fetiche por uma normalidade imaginária que só pode ser talhada com uma ferramenta, a moderação. Tarik Ali veria aí uma expressão de extremismo centrista, uma postura política pseudo-responsável, calcada na máxima thatcheriana de que “não há alternativa” ao neoliberalismo, caminho “natural” da “evolução humana”. Algumas pilhas de cadáveres no caminho são, literalmente, “ossos” do ofício. O que se denota no debate histriônico da imprensa vira-lata é mais do que isso, é uma brutal inversão da máxima leninista, segundo a qual devemos ser flexíveis na tática e radicalmente inflexíveis no princípio.
Lula teve uma postura de princípio: antirracista, anticolonialista, humanista. O que Israel faz em Gaza é, sim, comparável ao que a humanidade produziu de pior. É o extermínio em massa de uma população inteira, cuja imensa maioria é formada por mulheres e crianças, justamente por estar submetida a 70 anos de assassinato sistemático. Isso precisa ser freado, agora. E o premiê israelense Benjamin Netanyahu não puxará o freio. Não só por afiliação ideológica ao fascismo local, mas porque sua sobrevivência depende da aniquilação da população palestina. Seu comprometimento jurídico, econômico e político é extenso demais para voltar atrás.
O freio terá que vir de fora. E essa deveria ser a prioridade do mundo agora, ou lidaremos com as consequências morais, políticas e humanitárias de termos assistido, inertes, a um genocídio em tempo real. O mundo não tinha imagens do Holocausto até que o Exército Vermelho liberasse os campos de extermínio do Leste Europeu. Alegar ignorância era possível até ali. Agora, não. Como não foi durante a crise migratória de 2015, como não foi – nem é – depois do escrutínio público do genocídio yanomami ou durante a política de morte aplicada pelo ex-governo na crise da COVID. Agora, todo mundo está vendo.
E se o governo israelense conseguir cumprir com a Solução Final sionista, cria-se a jurisprudência que Hitler tentou estabelecer. Lebensraum, espaço físico para o desenvolvimento da vida ariana, era o que buscava o führer com a eliminação total do que ele chamava de bolchevismo judaico do leste europeu. Lebensraum é o que o Estado de Israel busca com a limpeza étnica de Gaza. A comparação de Lula se sustenta, conceitualmente.
Mas mais do que isso, é a única postura antirracista possível. Porque todo projeto colonial, o israelense incluso, é racista. O Holocausto, no discurso sionista, é um artifício ideológico, como deixou claro o pesquisador judeu Norman Finkelstein, também persona non grata em israel. Divorciado do holocausto real, transformado numa excepcionalidade histórica imune a qualquer comparação, ele se torna uma carta branca para sua própria reencenação. Ao fazer a comparação, Lula ecoa Aimé Césaire e desconstrói com duas frases simples, o excepcionalismo que justifica o projeto colonial.
Como diria este grande teórico da negritude, “vale a pena estudar, clinicamente, em detalhes, os passos de Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista e muito cristão do século XX que ele carrega consigo um Hitler sem saber, que Hitler vive nele, que Hitler é seu demônio, que se ele o vitupera, é por falta de lógica, no fundo. O que ele não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, é de haver aplicado à Europa os procedimentos colonialistas que atingiam até então apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África.”
A mídia e a classe política brasileiras mostram o quão estanque no século XXI é o antigo burguês de Césaire: até eleições municipais no Brasil têm maior peso moral do que o extermínio completo e sistemático de um povo não branco.