Crises não são novidade. Depois que ocorrem, após algum tempo para análise, surgem várias explicações sobre suas causas e sobre o que poderia ter sido feito para evitá-las. Em muitos casos, os estudos de crises passadas criam conhecimento que poderia prevenir futuras. Porém, em certos casos, evitar crises nos demandaria esforços maiores do que gostaríamos empreender e portanto nos entregamos à tendência coletiva de achar que desta vez será diferente. Mas será? Antes de falar da estiagem que aflige São Paulo, vejamos alguns episódios passados sobre crises hídricas, que nos transmitem valiosas lições.
http://envolverde.com.br/ambiente/agua-o-que-ha-em-comum-entre-sikri-ilha-de-pascoa-e-sao-paulo/
por Paulo Bento Maffei de Souza e Paulo Vodianitskaia*
No século XVI o poderoso Akbar, rei dos Moghols, ergue uma monumental cidadela em Sikri, a 30 quilômetros de Agra, na Índia, e a denominou a “Cidade da Vitória”. Isto porque pouco antes um profeta sufi previra a Akbar o nascimento de três filhos nesse lugar, o que realmente aconteceu nos anos seguintes. Algo, no entanto, o profeta não previu, ou não revelou. Quinze anos após transferir para lá o seu séquito de cinco mil mulheres – das quais trezentas esposas -, mil soldados e seus cavalos, Akbar teve que abandonar aqueles “jardins do paraíso”, deixando a fortaleza aos poucos herdeiros do profeta, por um único motivo: escassez de água.
Na mesma época, as tribos da Ilha de Páscoa estavam em seu auge, com uma população de 30 mil habitantes e uma dedicação incondicional a talhar e erguer centenas de gigantescas estátuas de pedra, os moais. Presume-se que essas rochas eram transportadas pela ilha com o uso de troncos de árvores. A competição em torno dos moais acabou por extinguir as florestas gerando, dentre outros problemas, uma severa escassez de água doce. Esse fato, aliado à erosão causada por práticas inapropriadas de agricultura, levou a população à guerra civil e ao canibalismo. Em menos de duzentos anos a população foi reduzida a apenas cem sobreviventes, vivendo em estado de miséria.
Um ano antes do nascimento de Akbar, era fundada no Brasil a Vila de São Paulo da Piratininga. Em região aquinhoada com vastos recursos hídricos, a cidade de São Paulo sobreviveu a Sikri por quinhentos anos. Em 1872 houve o primeiro censo demográfico no Brasil, revelando que dos seus 10 milhões de habitantes, 31 mil viviam na cidade de São Paulo, em franca expansão até ultrapassar a marca de 11 milhões de habitantes em 2011. Em 2014, a cidade enfrenta a pior crise hídrica de sua história.
Essa crise não se limita à cidade de São Paulo, atinge uma ampla região. Dezenove municípios paulistas efetuam racionamento de água, dos quais doze ficam na região de Campinas. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) estima que 3 mil postos de trabalho já tenham sido fechados em decorrência da falta d’água. Agricultores já irrigam em alguns casos somente 30% do que antes da crise hídrica. A Secretaria da Agricultura estima em caráter preliminar que a estiagem já tenha reduzido as safras de café em 25% e de cana e algodão em 10%.
De três destinos bem diferentes, há um ponto comum entre Sikri, Ilha de Páscoa, e São Paulo: em certo momento de suas histórias, enfrentaram crises ambientais sem precedentes, das quais Sikri e a Ilha de Páscoa saíram perdedoras. Que lições podemos tirar dessa crise? Como manter São Paulo em sua trajetória de êxito e desenvolvimento? A resposta começa por qualificativos que podem parecer óbvios, mas não são nada triviais: que o sucesso seja construído em bases duráveis, ou seja, que o desenvolvimento seja sustentável.
Hoje há amplo consenso sobre as condições necessárias e suficientes para que a sociedade se sustente indefinidamente. A organização de origem sueca The Natural Step** propôs essas condições em 1989 e diversos atores públicos e privados vêm buscando adequar-se a elas em todo o mundo, com diversas intensidades de resultados positivos, dependendo de seu estágio de evolução no tema. Essas condições estabelecem que uma sociedade sustentável não polui sistematicamente, não destrói sistematicamente o seu ambiente e não impede as pessoas de satisfazer suas necessidades fundamentais.
Parece simples e óbvio. E de fato é. Se examinarmos situações de colapso ambiental tais como Sikri e a Ilha de Páscoa, veremos que ocorreram como resultado da violação sistemática de uma ou de várias dessas condições. E o que tem isso a ver com São Paulo?
Consideremos alguns poucos exemplos de violações que a nossa sociedade ocasiona, e que tem provável relação com a dramática crise que atravessamos. Nossos corpos hídricos são sistematicamente poluídos, diminuindo a disponibilidade de água limpa. As florestas remanescentes no Brasil vem sendo degradadas de forma crescente, gerando variações da umidade trazida ao Sudeste e Sul do Brasil pelas nuvens que vêm da Amazônia. A nível local, solos menos permeáveis não absorvem água, com consequente aumento da demanda por irrigação e menos geração de chuva. O acúmulo de gases de efeito estufa de origem antrópica vem ocasionando alterações nos ventos de alta altitude que distribuem a umidade do ar, reduzindo a chuva em alguns lugares e aumentando em outros. A lista poderia seguir, pois os exemplos são abundantes.
A recomendação? Primeiro, precisamos aprender a viver sem aumentar as taxas de poluição e degradação ambientais, e sem impedir que nossos semelhantes tenham o fundamental para uma vida digna. Precisamos também restaurar o que vem sendo destruído. É preciso reconhecer o imenso custo que incorreremos ao tolerar padrões insustentáveis para perceber que será mais razoável agir desde já. Precisamos preservar e restaurar as matas ciliares, precisamos de solos porosos e biodiversos, precisamos reduzir ao mínimo o uso de agrotóxicos, precisamos parar de tratar corpos d’água como depósito de lixo. É importante levarmos em conta que cada um de nós no fundo sabe no que poderia contribuir, como consumidor e como cidadão.
Precisamos, enfim, envidar certos esforços que gostaríamos de não precisar encarar. Temos que reconhecer, entretanto, que se continuarmos a violar as condições que tornariam saudável o nosso ambiente, não há porque achar que a natureza será mais tolerante. Precisamos com urgência tratar das causas do problema para evitar uma tragédia social, ambiental e econômica.
* Os autores são consultores em sustentabilidade estratégica na hapiterra.com
** Publicado originalmente no site www.thenaturalstep.org.br/pt-br/brazil e retirado do site Página 22.