04 Mai 2023
“A luta pela terra e por território tem uma imensa força, uma centralidade. Pelo trabalho coletivo, os Sem Terra, os Povos Originários e os Povos Tradicionais conquistam o início da interrupção da mercantilização da terra e o começo da democratização da terra, o que passa inclusive pela afirmação de outra política econômica, construída com base nas necessidades do povo e não no lucro e na superexploração da força de trabalho da classe trabalhadora e do campesinato”, escreve Gilvander Moreira.
Eis o artigo.
Na era da financeirização do capital e da especulação exacerbada do grande capital, imperam relações transnacionais pouco controladas pelos governos dos Estados nacionais. O Estado capitalista está em crise aguda transbordando contradições. O capitalismo quanto mais se desenvolve mais brutal e podre se torna. Nesse contexto do capital e do capitalismo, o movimento de luta pela terra para superar o ‘cativeiro da terra’, seu aprisionamento em estrutura fundiária pautada no latifúndio, tornou-se imprescindível para a formação do novo sujeito social para além do capital. Sem desconcentração da propriedade fundiária, sem reforma agrária e sem resgate dos territórios pelos povos originários (indígenas), pelo campesinato e pelos Povos e Comunidades Tradicionais não conquistaremos a superação da injustiça social, urbana e ambiental. “É preciso esvaziar as cidades e os povos reconquistarem seus territórios”, alerta o mestre Joelson Ferreira, articulador da Teia dos Povos.
Na América afrolatíndia, estamos diante de evidências da emergência de formações sociais plurinacionais a partir das lutas populares na Bolívia e Equador. Nunca estará tudo dominado. A história não acabou. O sistema do capital tem um poder de dominação gigantesco ao olharmos com base nele – perspectiva hegemônica -, mas se olharmos considerando a classe trabalhadora e o campesinato – o profundo das relações sociais, o contra-hegemônico -, percebemos que o sistema do capital está recheado de contradições e inconsistências, é um gigante, mas com pés de barro. Já alertava José de Souza Martins, em 1989, no livro Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo que “nas sociedades ricas e nos espaços ricos das sociedades pobres, a reprodução e o poder dominam a superfície, o espaço, o imaginário, mas não dominam o subterrâneo, os nichos do contrapoder, a imaginação” (MARTINS, 1989, p. 119).
Capa do livro “Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo” de José de Souza Martins. (Foto: divulgação)
Como muitos outros movimentos populares, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde 1975, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), desde 1984, pelas suas práxis, se tornam sujeitos históricos que “transformam demandas individuais em propostas coletivas. […] como força política, consolidam saberes, e avançam na conquista de suas reivindicações. Deixam evidentes as contradições do modelo de acumulação implementado na modernidade, rejeitando sua racionalidade, com vistas à construção de novos padrões de produção e trabalho” (PIETRAFESA, 2015, p. 100).
A luta pela terra potencializa e politiza os sujeitos dela ampliando o protagonismo dos camponeses na produção de novos projetos de sociedade, na construção de uma cultura política que se contrapõe à cultura hegemônica da lógica do capital e na formação de contra-saberes que são disseminados na sociedade pelo protagonismo dos sujeitos sociais engajados. As ações de resistência política dos sujeitos da luta pela terra se revestem de transgressão e de inovação na gestão territorial, após (re)conquistarem alguns territórios. “Se ocuparmos e não administrarmos de forma própria e direta os nossos territórios seguindo os princípios da sustentabilidade, crescerá sempre o agronegócio. Nossa presença e atuação nos territórios precisam ser no sentido de resgatar a confiança dos animais conosco seres humanos. Se envenenarmos a terra, as águas e o ar e matarmos os animais, não somos dignos de habitar aqueles territórios. Temos que ser autoprodutores, autônomos, e não depender de Estado e nem de governos” (CACIQUE BABAU, do povo indígena Tupinambás, do sul da Bahia, no IV Congresso da CPT, dia 12/7/2015). [1]
A luta pela terra é também luta por soberania, uma vez que “os perigos para a soberania não estão, portanto, sempre vinculados a guerras, conquistas e defesa de fronteiras” (APPADURAI, 1997, p. 37), não vem só do exterior, mas é no interior dos territórios que, de forma disfarçada, mas contundente, os representantes do capital internacional fincam suas bandeiras, via agronegócio, e vão solapando a soberania dos povos da terra auferindo lucros absurdos à custa de uma tremenda devastação socioambiental. Exemplo disso é Aimorés, MG, onde o fotógrafo Sebastião Salgado nasceu e foi criado. O filme O Sal da Terra, biografia de Sebastião Salgado, retrata as apropriações da terra sob o signo do capital causando inclusive migrações forçadas de populações em muitas regiões do mundo.
Link para assistir na íntegra o documentário sobre a vida de Sebastião Salgado: https://www.youtube.com/watch?v=2h1PHq_2xi0
Baseando-se na necessidade, sentida de forma dramática, de um pedacinho de terra, os Sem Terra, os indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais, na luta coletiva pela terra e por território, ampliam a consciência e começam a perceber que têm muitos outros direitos a conquistar e, acima de tudo, descobrem que podem mais, que não são tão fracos como se sentiam antes ou como a ideologia hegemônica dissemina aos quatro ventos e tenta impregnar as consciências para reproduzir pessoas resignadas e conformadas.
A luta pela terra e por território tem uma imensa força, uma centralidade. Pelo trabalho coletivo, os Sem Terra, os Povos Originários e os Povos Tradicionais conquistam o início da interrupção da mercantilização da terra e o começo da democratização da terra, o que passa inclusive pela afirmação de outra política econômica, construída com base nas necessidades do povo e não no lucro e na superexploração da força de trabalho da classe trabalhadora e do campesinato.
A mesma terra que foi expropriada passa a ser força de luta pela reconquista de identidades. Os geraizeiros, os quilombolas, os indígenas, os vazanteiros, os seringueiros, os groteiros, os/as apanhadores/as de flores ‘sempre viva’ etc, enfim, as várias faces do campesinato percebem que sem-terra e sem território serão dizimadas e perderão suas identidades, mas só podem afirmar suas identidades na luta pela terra e pelo território. Para continuar existindo, resistem e insistem na luta coletiva pela construção de um Projeto Popular para construirmos uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, sustentável ecologicamente, politicamente democrática, plural culturalmente e responsável geracionalmente.
1 – Marco temporal: terra para os Povos Indígenas ou para o agronegócio devastador? Por Frei Gilvander
………………………………………….
Notas
[1] Cf. Palavra Ética na TVC/BH com o cacique Babau, do povo indígena Tupinambás, na internet, aqui.
Referencial Bibliográfico
APPADURAI, Arjun. Soberania sem territorialidade – notas para uma geografia pós-nacional. In: Novos Estudos, CEBRAP, São Paulo, n. 49, p. 33-46. Nov./1997.
MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo. São Paulo: HUCITEC, 1989.
PIETRAFESA, José Paulo. Conflitos agrários, protagonismo camponês e ocupações de terra no Brasil. In: Conflitos no campo Brasil 2015. Goiânia: CPT Nacional, p. 100-108, 2015.