<em>Agro Xavante</em>: a aliança sórdida contra os indígenas

Xavante E Soja

Indígena no meio da colheita de arroz na terra indígena Sangradouro no Mato Grosso em 23 de abril de 2021 (Foto: Tchélo Figueiredo/SECOM- MT)

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Por João PeresMarcos Hermanson Pomar e Tatiana Merlino, no O Joio e o Trigo

23/09/2022

Como Bolsonaro e ruralistas aparelharam Funai – e lançaram projeto no MT para chantagear povos originários e converter seus territórios em fazendas de commodities. Qual o papel dos militares. A farsa de independência que arrasa culturas ancestrais.

“Vamos receber o nosso amigo, deputado, futuro presidente do nosso país.” É março de 2017. A um ano e meio das eleições, Jair Bolsonaro é recebido aos gritos de “mito” na FarmShow, uma das feiras de agronegócio do Mato Grosso. 

Enquanto a ciência política se ocupava da ideia de que o pouco tempo de televisão, o radicalismo e a falta de alianças fariam de Bolsonaro um fogo de palha, o pré-candidato assentava o caminho que o levaria ao Planalto.

Primavera do Leste é uma entre tantas cidades de tamanho médio onde pessoas de renda média e formação média deram a Bolsonaro a maioria dos votos: 73,58%, no segundo turno contra Fernando Haddad. No palco da FarmShow, um ainda desajeitado candidato recebe a bandeira do Brasil enquanto o hino nacional é entoado. Ele não sabe bem como se portar. Mas já sabe o que quer.  

“Começou ali, exatamente como descrevi pra ti, ele pediu. Esse projeto é ideia do Bolsonaro”, nos conta, cinco anos mais tarde, o produtor rural José Otaviano Ribeiro Nardes. Foi o então presidente do Sindicato Rural de Primavera quem viajou a Brasília para convidar o deputado, e foi ele quem o chamou ao palco da FarmShow, que considera um de seus legados de vida. 

O produtor rural José Otaviano Nardes posa ao lado de imagem de Nossa Senhora Aparecida que ele ganhou do cantor sertanejo Daniel. Foto: Marcos Hermanson

O outro legado é o que começou ali: o Projeto Independência Indígena. Entre tantas iniciativas de agronegócio que o atual presidente da Funai, Marcelo Xavier, busca impulsionar, o projeto de Primavera do Leste, conhecido como Agro Xavante, guarda um lugar especial. É um protótipo daquilo que o bolsonarismo pretende fazer das terras indígenas: um espaço de produção de lucro como qualquer outro, com plantio em larga escala, mineração e, se for preciso, cassinos. 

Projeto estratégico

Quando se olha o mapa de avanço do agronegócio, fica mais fácil entender por que o projeto em Primavera é central para as pretensões do bolsonarismo. Os Xavante têm a maior população indígena do Mato Grosso (estimada em 26 mil habitantes) e suas nove terras ocupam um invejável total de 1,5 milhão de hectares. 

Nos valores estimados pela Receita Federal, uma área de pelo menos R$ 21,5 bilhões, antes mesmo de ser transformada em fazenda. A região dos Xavante é, também, uma área de expansão do agronegócio, que terá à disposição a BR 080, entre Ribeirão Cascalheira e Brasília, e uma ferrovia que pretende ligar o Maranhão aos ramais que levam ao porto de Santos. 

A centralidade do projeto Agro Xavante fica mais explícita quando se analisa a articulação de atores políticos posicionados em postos-chave. “Ele [Bolsonaro] falou para nós: ‘Se eu for eleito presidente, meu sonho é a independência indigena’. E nós já tínhamos tentado.Tu viu isso no vídeo”, continua Nardes, em entrevista na sede do Sindicato Rural. “Ele, como deputado federal, já conhecia o meu irmão, esse que é ministro. Ele teve cinco mandatos federais. Eles eram os dois do PP, Partido Popular [sic], então já conhecia ainda mais.” 

O irmão em questão é Augusto Nardes, ministro do Tribunal de Contas da União que, segundo um texto publicado no site da Farm Show, desenvolve um projeto paralelo na Terra Raposa Serra do Sol, em Roraima, antigo alvo de disputa entre latifundiários e garimpeiros, de um lado, e indígenas de várias etnias. 

Augusto Nardes, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) e irmão de José Nardes. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Indigenismo anti-indígena

O ano era 2016 e naquele momento, circulava pelos corredores da Câmara dos Deputados um então desconhecido delegado da Polícia Federal. Enquanto o Senado selava a sorte de Dilma Rousseff, a bancada ruralista de deputados registrou um longo requerimento pedindo a criação de uma CPI para investigar a Funai e o Incra. Sinal de que os fazendeiros iam à desforra contra o que consideravam como braços “ideológicos” dos governos petistas.

O documento falava em “fraudes nos laudos antropológicos produzidos, ‘fabricação’ de indígenas mediante falsas declarações, deslocamento artificial de indígenas para reivindicar terras não ocupadas tradicionalmente”. E listava, entre os casos que pretendia investigar, Marãiwatsédé, uma terra do nordeste de Mato Grosso que o povo Xavante havia conseguido retomar. A CPI não tinha planos de apurar a conduta dos fazendeiros que se recusavam a deixar a área, mas a da Funai. 

Marcelo Augusto Xavier da Silva podia não ter experiência na questão indígena, mas era um delegado da Polícia Federal que havia atuado em Marãiwatsédé e trabalhava em Barra do Garças, região onde ficam as terras Xavante. Em entrevista para a BBC Brasil, um procurador que atuou em Marãiwatsédé disse que Xavier beneficiava os invasores, e não os indígenas. Em 2014, o Ministério Público Federal conseguiu afastá-lo da operação de desintrusão, ou seja, de retirada dos fazendeiros. 

No currículo disponível na página da Funai, o delegado descreve que na CPI tinha a função de “coordenar atividades administrativas; redigir ofícios e correspondências”. Sob a presidência de Alceu Moreira (MDB-RS), um dos quadros mais importantes da bancada ruralista, a CPI era um recorte-e-cole de teorias conspiratórias sobre a questão indígena – à frente de todas, a ideia de que os indígenas eram uma maneira de países e ONGs se apossarem das terras brasileiras. 

Delegado licenciado da Polícia Federal e atual presidente da Funai, Marcelo Xavier ajudou a viabilizar o projeto Agro Xavante com apoio público e gestões por dentro da burocracia do órgão indigenista. Foto: Funai/Ascom

Antes mesmo da instalação oficial da CPI, no começo de julho de 2015, o deputado Valdir Colatto (MDB-SC) apresentou um requerimento para a convocação de lideranças Xavante. Embora o pedido tenha sido aprovado, não consta nem no relatório final, nem nas sessões, que os indígenas tenham de fato prestado depoimento. 

O que não impediu o relatório final de citar uma suposta reportagem que relacionava a retomada de Marãiwatsédé ao plano de “fundamentalismo ambientalista-indigenista”. O documento, redigido por Nilson Leitão (PSDB-MT), chegou a pedir o indiciamento de mais de cem pessoas – algumas delas, mortas – e foi mais uma peça na ofensiva para tirar das mãos da Funai a demarcação das terras indígenas ou, se não fosse possível, minar a Funai por dentro. 

Quem fez isso com mais maestria foi Marcelo Xavier. Após a CPI, ele passou um breve período como ouvidor da Funai. Na presidência do órgão, ninguém se firmava: foram seis presidentes diferentes até julho de 2019. De lá para cá, em meio a denúncias quase semanais, Xavier se segura no cargo cumprindo o ideário de fazer da Funai uma fundação anti-indígena.

“Eu não conhecia”, conta José Nardes. “Conheci ele por indicação do presidente [Bolsonaro]: ‘Nardes, procura o Marcelo, que agora nós vamos conseguir fazer o projeto’.” Os fazendeiros já haviam tentado de outras vezes produzir grãos dentro de Sangradouro, a terra indígena Xavante mais próxima de Primavera do Leste. 

Os relatórios da Funai indicam, por exemplo, que desde pelo menos 1999 uma área pequena, de setenta hectares, foi ocupada de forma ilegal pelo fazendeiro Sérgio Manique. Nardes também relata ter tentado arrendar uma área em Sangradouro no ano de 2004, mas sem sucesso: “Chegamos a um ponto que o Ministério Público foi lá e mandou a Polícia Federal prender os produtores. Essa é a ideia da esquerda, usar os indígenas como cobaia para desviar dinheiro do estado.”

Dessa vez, com Bolsonaro na presidência, era diferente. A centralidade do projeto Agro Xavante para o atual presidente se reflete em discursos, agendas e práticas. À diferença de presidentes menos à direita, Bolsonaro colocou a questão indígena entre as prioridades da atuação governamental. Mas não para promover os direitos dos povos indígenas, e sim o uso econômico de terras que somam 117 milhões de hectares – quase 14% do território nacional.

Independência de quem? 

Pouco antes, em 2018, o procurador Everton Pereira Aguiar Araújo foi transferido do Amapá pra Barra do Garças. O Ministério Público Federal, com poder de investigar e barrar problemas relacionados a terras indígenas, era uma peça fundamental do tabuleiro. 

Num ofício de 2019, o procurador diz que os Xavante estavam numa situação muito delicada do ponto de vista social, e dá 45 dias para a Funai resolver o problema. O resolver, no caso, era a criação de projetos de etnodesenvolvimento voltados à criação de renda – etnodesenvolvimento é outra palavra-chave da Funai sob a presidência de Xavier, atrelada sempre à ideia de “independência indígena”. 

O procurador federal da república Everton Aguiar recomendou que a Funai realizasse projetos de etnodesenvolvimento em Sangradouro e depois emitiu parecer favorável ao Agro Xavante. Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados

Em reportagem de 2021, registramos como a visão de Everton conflita com a de outro procurador que atua na questão indígena em Mato Grosso. Na visão de Ricardo Pael, o projeto Agro Xavante é inconstitucional, já que as áreas demarcadas são de “usufruto exclusivo” dos povos tradicionais. “O indígena que quer começar hoje a agricultura, sem financiamento, sem assistência técnica, ele cai de mão beijada nas mãos do agronegócio que quer explorá-lo. E é isso que a Funai faz.”

Mas, como Sangradouro fica na região de Barra do Garças, é Everton o responsável pelo monitoramento do Agro Xavante. 

Documentos internos da Funai obtidos pelo Joio mostram que o procurador se reuniu com pessoas envolvidas no projeto Agro Xavante em outubro de 2020, e deu parecer favorável à lavoura. “Aparenta voltar-se a garantia do etnodesenvolvimento, sustentabilidade, e, portanto, autonomia dos povos indígenas habitantes da T.I Sangradouro”, garantiu Everton em despacho datado de 25 de novembro.

No mesmo documento, ele também argumentou que a parceria entre indígenas e fazendeiros não configura arrendamento e não fere o usufruto exclusivo previsto no artigo 231 da Constituição Federal: “A Constituição garantiu direito de uso exclusivo dos indígenas às terras indígenas, mas também garantiu o direito à dignidade.”

O mesmo o procurador Everton Aguiar foi quem pediu a prisão do ex-coordenador regional da Funai em Ribeirão Cascalheira (MT), o suboficial da reserva da Marinha Jussielson Gonçalves Silva, após denúncias de que Silva estivesse colaborando com a prática de arrendamento da Terra Indígena Maraiwatsede.

Aguiar também conseguiu na Justiça a interdição de um trecho da BR 158 que atravessava a mesma terra indígena, sob argumento de que a estrada facilitava a entrada de invasores na TI.

Mais um militar

Outro militar da reserva, o capitão reformado do Exército Álvaro Carvalho Peres, nomeado em 18 de setembro de 2020 para comandar a Coordenação Regional Xavante em Barra do Garças, integra esse quebra-cabeça. 

Peres, que ficou conhecido por agredir um cacique xavante dentro da sede da Funai de Barra do Garças em maio de 2021, tem facilitado a vida da Cooperativa na sua gestão à frente da CR Xavante. 

Em documentos obtidos pela reportagem, Álvaro concede à Cooigrandesan sucessivas dilações de prazo em relação a questionamentos emitidos pela área técnica local de Barra do Garças, permitindo que a cooperativa atrasasse a entrega de documentos importantes à Funai, como a prestação de contas da lavoura e a relação de trabalhadores envolvidos no plantio – o primeiro pedido foi realizado em dezembro de 2021, mas os documentos ainda não foram entregues. 

Em outro documento, o capitão do exército ainda classifica a estrada de terra de cinquenta metros de largura aberta no meio da TI Sangradouro para escoar a produção da lavoura como “um serviço essencial para a vida das comunidades Xavantes”.

Nem tão caladinhos

“Fui eu que coloquei o Agnaldo lá”, continua Nardes. Agnaldo Santos é superintendente de Assuntos Indígenas de Mato Grosso. Na visão do fazendeiro, um “simples cidadão” de Poxoréu, uma das cidades onde fica a Terra Indígena Sangradouro. 

Vereador, Santos conhece bem a região, e fez da articulação entre indígenas e fazendeiros a prioridade de sua gestão. Ele nos recebeu no Palácio Paiaguás, em Cuiabá, sede do governo de Mato Grosso, e fez questão de ressaltar que tem acesso direto à primeira-dama Virgínia Mendes e ao governador Mauro Mendes. “A primeira-dama me conheceu pela rede social, me acompanhava e aí me convidaram para assumir  a superintendência depois de um ano de mandato”, conta. 

No dia seguinte a nossa visita, ele iria ao Parque Indígena do Xingu entregar cestas básicas: “Porque agora a gente tá em campanha, né?”. De acordo com Santos, caso o governador seja reeleito, a superintendência ganhará status de secretaria, com orçamento próprio para lidar com a questão indígena. 

Ao longo da entrevista, ele lista quais as etnias que estão firmando parcerias com fazendeiros. “Os Bakairi aqui de nobre do município de Nobres, que estão produzindo 200 hectares. Os Bakairi de Paranatinga estão produzindo, estão produzindo já 1000 hectares, só que estão bem caladinhos. Os Umutina também estão com a área aberta. Os Nambiquara também estão produzindo 200 hectares. E os Parecis, que estão em grande escala. Os Parecis são de 19.000 hectares.”

Agnaldo Santos, superintendente de Assuntos Indígenas do estado do Mato Grosso, é quem articula apoio do governo estadual aos projetos de lavoura mecanizada em terras indígenas. Ele também reivindica autoria sobre o Agro Xavante. Foto: Marcos Hermanson