Agricultura: Campo – as transnacionais querem ser “bio”

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Sergio Ferrari, jornalista argentino, radicado na Suíça | Tradução: Rose Lima

 26/08/2024

[NOTA DO WEBSITE: Um alerta importante para que possamos estar a par do que estas mesmas corporações que vêm praticando tantos e tantos crimes corporativos, querendo agora vestir a roupa de cordeiro. Mesmo que possam ser diferentes em comparação com os malfadados agrotóxicos, a ideia de apropriação de toda a humanidade, é a tônica do projeto delas. E destacamos o que é frisado pelo jornalista, ao analisar o material desta importante organização Grain, quanto ao permanente processo de não admitir a liberdade dos agricultores de serem os donos de suas produções para serem, como é no agronegócio, a produção de alimentos mais um braço de seus impérios. Esperamos que os agricultores, verdadeiros, não se deixem fascinar por mais este embuste das transnacionais].

Diante das pressões sociais contra os agrotóxicos, um punhado de corporações tenta reciclar-se. Objetivo: dominar, por meio de patentes, as tecnologias dos biodefensivos; e evitar, por novos meios, que os agricultores sejam autônomos.

A ONG internacional Grain (Grano), com sede em Barcelona, em um estudo publicado na segunda quinzena de agosto, confirma que todas as grandes corporações de agroquímicos -como Bayer, BASF, Corteva, FMC, The Mosaic Group, Syngenta, UPL e Yara, entre outras- já operam nessa área. Sob o nome de Bioinsumos Corporativos: O Novo Negócio Tóxico do Agronegócio, o estudo afirma que essa “penetração nesse mercado se dá de maneira agressiva devido à sua forma típica de proceder, por meio de compras, contratos de licenciamento e fusões”.

A história do setor agroquímico nas últimas décadas é repleta de paradoxos. Até o final da década de 90, a Monsanto (que desde 2018 pertence à empresa alemã Bayer) produzia e vendia, exclusivamente, defensivos químicos (nota do website: o termo legal no Brasil é agrotóxico, ‘defensivo’ foi a expressão criada pela indústria para tirar as características tóxicos dos venenos em todo o mundo) destinados a combater drasticamente pragas em grandes áreas de monoculturas, com impactos desastrosos para os seres humanos e para o meio ambiente. Agora, visa controlar o mercado global de inseticidas do tipo “bio”. Durante todo esse tempo, foi, principalmente, o campesinato que utilizou agrotóxicos não químicos, como os feitos a partir do microrganismo Bacillus thuringiensis (Bt), de impacto mais lento e adequado a unidades produtivas menores.

O oportunismo como base de lucro

De acordo com o relatório Bioinsumos. Oportunidades de investimento na América Latina, publicado em 2023 pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), o mercado global de insumos biológicos atingiu 10,6 bilhões de dólares em 2021, enquanto o de insumos agroquímicos atingiu 245 bilhões. Até 2026, o setor de bioinsumos deverá responder por cerca de US$ 18,5 bilhões, quase o dobro da taxa de cinco anos antes, como resultado de um crescimento acelerado de proporções devido à voracidade transnacional.

Grain argumenta que grande parte do mercado global de bioinsumos já está nas mãos das principais multinacionais de agrotóxicos. Em 2022, a Bayer comercializou insumos de tipo bio no valor de 214 milhões de dólares e projeta 1,6 bilhões em 2035. Em 2023, as vendas da empresa estadunidense Corteva atingiram 420 milhões de dólares, e as do grupo Syngenta, com sede na Suíça, 400 milhões. Essas corporações, assim como o resto de suas concorrentes, estão interessadas em biopesticidas porque são os produtos que mais vendem: cerca de metade do mercado global de bioinsumos. A outra metade inclui biofertilizantes para nutrir as culturas e bioestimulantes para aumentar sua capacidade de absorver nutrientes. Para garantir esse crescimento acelerado, as grandes empresas têm concentrado seu interesse em apenas alguns produtos, aqueles que contêm o microrganismo Bt: 90% do mercado global de biopesticidas.

Em termos de impacto regional, o maior mercado de insumos de base biológica está localizado nos Estados Unidos e no Canadá, seguidos pela Ásia-Pacífico, Europa e América Latina. Um caso emblemático é o do Brasil, um dos mercados em mais rápida expansão e, portanto, um importante alvo para as transnacionais agroquímicas. Em junho de 2024, o Brasil registrou a venda de 1.273 insumos bioagrícolas: metade biopesticidas, metade biofertilizantes. Em sua maioria, destinados às principais monoculturas, como soja, milho e trigo, 82% desses insumos foram produzidos por empresas estrangeiras. De acordo com o Ministério da Agricultura do Brasil, atualmente, os biofertilizantes são usados em quase 40 milhões de hectares e os biopesticidas em 10 milhões de hectares. A área cultivável atual nesse país sul-americano é de quase 79 milhões de hectares.

O estudo da FAO destaca a magnitude do uso de agrotóxicos na América Latina. “Embora a produção agrícola global seja sustentada por um uso intensivo de agroquímicos”, afirma, “de acordo com dados de 2019, pelo menos nove países latino-americanos dobram ou triplicam o número de quilos de pesticidas por hectare usados por países como os Estados Unidos e o Canadá”. E ressalta que o aumento das temperaturas -como resultado das mudanças climáticas-, acelera a forma como as pragas se reproduzem, colocando maior pressão sobre os sistemas de produção da região. Dados que reforçam a importância atribuída à América Latina pelas empresas produtoras de insumos agroquímicos tradicionais e dos novos bioinsumos. E o duplo papel que desempenham: por um lado, promover a produção em larga escala e o agronegócio (ou agronegócio para exportação) e, por outro, contribuir para o aquecimento global e para a crise climática.

Agroquímicas e seu poder arrasador

A corrida das grandes corporações agroquímicas no desenvolvimento e na promoção de bioinsumos anda de mãos dadas com impressionantes avanços tecnológicos e científicos, como a capacidade de editar geneticamente, com a biologia sintética e a ciência de dados, que facilitam a identificação de microrganismos para a formulação de novos bioprodutos. Além disso, os avanços tecnológicos permitem que eles garantam o controle do monopólio por meio de patentes. De acordo com Grain, essas corporações estão apostando em trazer esses produtos geneticamente modificados ao mercado sem ter que enfrentar obstáculos regulatórios.

Uma patente é um título de propriedade industrial através do qual o direito exclusivo sobre uma invenção é reconhecido. Impede que outros façam, vendam ou usem tal invenção sem o consentimento de seu proprietário. Entre 2000 e 2023, foram registrados mais de 44 mil pedidos de reconhecimento oficial de patentes de bioinsumos em todo o mundo.

Diante dessa avalanche de multinacionais que tentam penetrar e se impor no mercado de insumos biológicos a qualquer preço, a reação dos pequenos e médios produtores agrícolas é insignificante. Segundo Grain, esse processo em curso “pode provocar uma nova onda de privatização dos modos de vida” que até agora têm sido reservados às comunidades camponesas e aos seus conhecimentos ancestrais. As patentes de processos e sequências genéticas de microrganismos criarão um mercado de bioinsumos dominado pelas corporações, dando-lhes direitos de monopólio. Isso significa, diz Grain, que aqueles que desejam usar produtos com certos componentes ou processos patenteados “devem obter autorização ou pagar pelo direito de uso”. Como a Via Campesina e a Grain alertaram em 2015 em seu documento conjunto sobre A Criminalização das Sementes Camponesas: Resistência e Lutas, em caso de descumprimento dos mecanismos estabelecidos pelo direito internacional de patentes, o campesinato pode receber multas onerosas e até sentenças de prisão.

Novo paradigma agrário

Essa é uma questão de relevância global com um impacto significativo, particularmente para a América Latina e o Caribe, que continua sendo fundamental para a segurança alimentar e a preservação da biodiversidade no mundo; uma região que produz alimentos para cerca de 1,3 bilhões de pessoas (mais que o dobro de sua população), reúne 50% da biodiversidade do planeta e abriga seis dos países mais biodiversos do planeta: Brasil, Colômbia, Equador, México, Peru e República Bolivariana da Venezuela. E, ao mesmo tempo, possui o maior número de espécies de alimentos silvestres ameaçadas, além de 200 milhões de hectares de terras já degradadas.

As grandes empresas do agronegócio fazem parte das principais responsáveis pela crise climática e por muitos outros problemas globais. Para Grain, “a solução não é apenas reduzir os pesticidas e os fertilizantes químicos”, porque ambos são componentes inevitáveis do modelo de agricultura industrial inserido em um sistema alimentar global injusto e predatório, controlado por algumas corporações multinacionais. A solução vem da definição de um novo paradigma de produção e distribuição agrícola.

Nesse quadro, como, há décadas, os movimentos sociais do campo vêm propondo o grande desafio que consiste em realizar uma transição para a agroecologia baseada no conhecimento, nos saberes camponeses, na inovação coletiva e na soberania alimentar, descartando soluções tecnológicas caras e com patentes corporativas que apenas perpetuam a agricultura industrial e suas consequências devastadoras. É, simplesmente, uma questão de realocar o cursor social, colocando a saúde de cada ser vivo e da Mãe Terra no centro.