Agricultura: Agro é tech, mas não é pop – as polêmicas da produção de algodão no Brasil

Colheita de algodão na fazenda Horita, na propriedade Estrondo, Bahia, Brasil, junho de 2023.

https://www.cartacapital.com.br/blogs/fashion-revolution/agro-e-tech-mas-nao-e-pop-as-polemicas-da-producao-de-algodao-no-brasil/

YAMÊ REIS
19.08.2024

[NOTA DO WEBSITE: Normalmente se privilegia de que a corrupção é algo que intrinsicamente está ligado aos setores públicos. No entanto, não é isso que se tem visto, sem isentar nenhum organismo público, nos textos que temos publicado. Parece que a corrupção nasce no mundo dos negócios e acaba, por seus poderes econômico e político, contaminando todo o tecido social, incluindo as administrações públicas. E quem acaba, na verdade, sendo o grande prejudicado é o consumidor final. Sim, porque somos nós que compramos os produtos ofertados no mercado e se não formos no mínimo, um pouco informados, vamos considerar que o que os ‘negócios’ oferecem são confiáveis. Assim, nosso primeiro compromisso é deixarmos de ser omissos, crentes e ingênuos. E isso só acontecerá se formos em busca das informações de instituições sérias e responsáveis].

Enquanto as atenções do mundo se voltam para a destruição das florestas da Amazônia, o bioma do Cerrado vem sofrendo uma devastação galopante com a agricultura e o cultivo de algodão.

Recentemente, o comemorou ter alcançado pela primeira vez a liderança da exportação mundial de algodão, superando os Estados Unidos. Desde os tempos coloniais essa liderança vem sendo disputada, num mercado que inclui a Índia e China, como grandes produtores e exportadores globais dessa commodity.

Esse resultado é fruto de um esforço conjunto dos produtores de algodão e da indústria agro-química para conquistar benefícios financeiros para investimentos em tecnologia, isenções fiscais e apoio institucional, que facilitassem sua expansão e consolidação no bioma do Cerrado nos últimos 25 anos.

Tal como a soja e o milho, o algodão é um dos motores de crescimento e  rentabilidade do agronegócio, e adquire um status especial e difenciado dos outros produtos pela “sustentabilidade” a ele atribuída pelos seus produtores e certificações nacionais ABR e a internacional Better Cotton, com sede na Suíça.

Entretanto, um cultivo em monocultura com uso intensivo de fertilizantes e agrotóxicos, com expulsão do trabalhador do campo e sem beneficiar as comunidades locais não pode ser chamado de sustentável, já que viola os princípios básicos deste conceito. A narrativa do agro que apresenta o Brasil como “o maior exportador de algodão sustentável do mundo” tem sido confrontada por inúmeros estudos acadêmicos nos últimos anos, revelando que o Movimento Sou de Algodão, criado pelos produtores para disseminar a cultura do algodão do agro, é mais um caso de greenwashing da indústria da Moda.

O caso do algodão brasileiro tomou contornos graves em abril deste ano quando a ONG internacional com sede em Londres, Earthsight, publicou um relatório chamado “Crimes da Moda”. O documento demonstra que as maiores marcas varejistas de moda do mundo, Zara e H&M, usam algodão brasileiro certificado Better Cotton ligado a grilagem de terras, desmatamento ilegal, violência, violações de direitos humanos e corrupção. Por meio de vasta documentação, a investigação rastreou o algodão desde as fazendas SLC e Grupo Horita no oeste da Bahia, passando pelas fiações e confecções asiáticas, até chegarem às lojas da Europa.

Enquanto as atenções do mundo se voltam para a destruição das florestas da Amazônia, o bioma do Cerrado vem sofrendo uma devastação galopante e sistemática desde o começo dos anos 2.000. A agricultura em escala industrial já destruiu metade da vegetação nativa e temos visto o problema se agravar nos últimos anos com taxas de desmatamento aumentando em 43% em 2023 em comparação ao ano anterior.

A empresa investigada pela Eartsight, SLC (nota do website: de uma família de Horizontina do RS, antigos donos da fábrica de máquinas agrícolas, SLC que hoje pertence à norte americana John Deere), é o maior produtor de algodão do Brasil, e tanto ela quanto o Grupo Horita (nota do website: grupo de São Paulo e são de origem japonesa), um dos seis maiores produtores, têm sua produção ligada a uma série de ilegalidades. Ambas as famílias têm origem no Sul do Brasil, e estão entre as mais ricas do país. Líderes da sociedade civil local relataram que é raro encontrar fazendas de soja ou algodão no oeste da Bahia que não sejam resultado da grilagem de terras, e isso pode ser constatado pelos inúmeros registros de processos de disputa de territórios desde o inicio da ocupação do Cerrado em 1970-1980, desmatamento ilegal, casos de corrupção, violência e negligência do governo estadual.

Apesar das evidências dos fatos revelados no relatório da Earthsight, a Better Cotton certificou a produção do algodão de ambas as empresas e o produto contaminado pela violência e destruição do Cerrado é vendido no exterior como “sustentável”. A conclusão inevitável é de que os processos de certificação são extremamente falhos e ineficientes, não se preocupando com atestados de propriedade legal, monitoramento de desmatamento, e quantidades usadas de agroquímicos e contaminação das comunidades no entorno das áreas cultivadas.

E para piorar ainda mais o caso, a ONG mostrou, nas últimas semanas, revelações surpreendentes de um ex-funcionário da Better Cotton sobre a manipulação de dados na plataforma online da certificadora, onde constam mais de 13.000 usuários em todo o mundo. De acordo com a fonte, a ausência de verificação dos dados e as manipulações são de tal ordem que é possível que algumas quantidades de algodão convencional não auditados sejam inseridas na plataforma como “algodão sustentável certificado”. Além disso, a Better Cotton raramente verifica as empresas da cadeia de suprimentos quanto à conformidade com suas diretrizes, bastando a auto declaração dos produtores. Ao que tudo indica, a Better Cotton tem agido preocupada com seu crescimento e resultado financeiro, já que as taxas cobradas de seus clientes e associados são proporcionais aos volumes comprados, ou seja, quanto mais algodão, melhor.

Certificações são uma ferramenta essencial de garantia de rastreamento de origem de produtos sustentáveis, trazem confiança aos consumidores de que a cadeia produtiva é ética, respeita os Direitos Humanos e o trabalho digno. Porém, o que estamos vendo é que no caso da Better Cotton o rigor com os protocolos de auditoria e aprovação de registros de produtores vem sendo afrouxados em prol do lucro da empresa, em não em nome de fomentar e incentivar cadeias produtivas éticas na indústria da Moda.

Para nós no Brasil, fica o alerta de que, enquanto clientes número um e consumidores de 100% de algodão brasileiro, estamos também submetidos ao descontrole e as fragilidades das certificações ABR e BCI. As marcas de moda associadas ao Movimento Sou de Algodão devem começar a exigir que as fazendas certificadas obtenham aprovação das comunidades para as atividades que os afetam, que o algodão cultivado não esteja ligado a áreas desmatadas antes de 2019, e que as auditorias sejam conduzidas por agentes imparciais.

Marcas de moda comprometidas com a sustentabilidade e a responsabilidade socioambiental devem perguntar de onde vem o algodão brasileiro e como ele foi produzido, mesmo que ele tenha a certificação Better Cotton ou ABR. Vamos fazer a nossa parte e subir a régua da sustentabilidade na Moda.