Abrindo uma janela na “Catedral da Revolução Verde”

https://www.iatp.org/cathedral-green-revolution

9 de abril de 2021

de Timothy Wise

A matéria abaixo é a entrevista completa com  José Graziano da Silva . Uma versão resumida da entrevista foi publicada originalmente pela  IPS News  em 6 de abril de 2021 com o título “Transformando os sistemas alimentares globais: José Graziano da Silva no caminho para o Fome Zero”. 

José Graziano da Silva tem sido um dos maiores líderes influentes do mundo na luta contra a fome. Depois de liderar no Brasil a campanha ‘Fome Zero’ há quase vinte anos, ele foi nomeado Diretor-Geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em Roma, onde atuou de 2012 a 2019.

Durante seu mandato, ele ajudou a transformar uma instituição conhecida por sua promoção de práticas agrícolas associadas à “Revolução Verde” (nt.: também conhecida no Brasil como ‘modernização da agricultura’) – com sua dependência de sementes comerciais e/ou híbridas e transgênicas, fertilizantes solúveis e agrotóxico – em uma organização que também acolheu os apelos crescentes de agricultores e grupos indígenas por abordagens mais sustentáveis.

Com as mudanças climáticas contribuindo para cinco anos consecutivos de níveis crescentes de “subnutrição”, de acordo com estimativas da FAO, a instituição pela primeira vez reconheceu e começou a apoiar a agroecologia. A medida foi polêmica, e José Graziano foi pessoalmente criticado por permitir que a FAO se desviasse de sua tradicional promoção da agricultura industrializada (nt.: aqui é demonstrado como o poder das transnacionais havia dominado mesmo instituições como essa que é de domínio de toda a sociedade global e não do poder econômico de alguns e que manipula todas suas missões institucionais).

Essa controvérsia está em plena exibição enquanto o Comitê de Segurança Alimentar Mundial debate um conjunto de recomendações de políticas sobre agroecologia e sistemas alimentares sustentáveis ​​nas negociações que acontecem de 29 a 31 de março. Em jogo está a recomendação de um painel de especialistas para promover a agroecologia como uma das estratégias centrais para alcançar sistemas alimentares sustentáveis. Os governos dos países ricos, incluindo o governo dos Estados Unidos, têm tentado sistematicamente enfraquecer as recomendações para uma transição da agricultura uso intensivo de insumos artificiais e em combustíveis fósseis. 

Controvérsias semelhantes cercam a Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, marcada para outubro. A conferência foi convocada pelo secretário-geral da ONU, Antonio Gutierres, para abordar as falhas alarmantes em cumprir as metas estabelecidas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, incluindo a meta de acabar com a fome severa até 2030.

Entrevistei o Sr. da Silva por e-mail sobre agroecologia, o Food Systems Summit e as batalhas sobre o futuro dos alimentos. Desde que saiu da FAO fundou e dirige o Instituto Fome Zero no Brasil .

Você presidiu algumas mudanças significativas em seu mandato na FAO, incluindo o programa “Scaling Up Agroecology” (nt.: Ampliando a Agroecologia). Por que você achou que isso era importante?

Como Diretor Geral da FAO, tive a oportunidade de realizar a Primeiro Simoposio Internacional de Agroecologia em 2014, a segunda em 2016 e sete reuniões regionais entre junho de 2015 e novembro de 2017. Como eu disse no encerramento do primeiro Simpósio em 2014, abrimos “uma nova janela na Catedral da Revolução Verde” que pode ajudar a concretizar a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

A agroecologia é baseada em um conjunto comum de princípios, definidos e identificados pela FAO, que orientam os países “a transformarem seus sistemas alimentares e agrícolas, a incorporarem a agricultura sustentável em grande escala e a alcançarem a Fome Zero e vários outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.”

Após extensas reuniões e consultas, os delegados da FAO votaram para promover e facilitar a agroecologia com base em nossos “Dez Elementos da Agroecologia”, um guia para apoiar os Países Membros a operacionalizá-la como uma abordagem chave da agricultura sustentável. 

Lançamos a “Scaling Up Agroecology Initiative” para fornecer suporte técnico e político aos países que o solicitarem.

Agroecologia se tornou parte de um programa de trabalho regular da FAO, inicialmente apoiando processos de transição agroecológica em três países: Índia, México e Senegal. Hoje em dia, muitos outros países estão testando a abordagem. A agroecologia está crescendo, mas não tão rapidamente como deveria, se quisermos evitar os desastres climáticos causados ​​pelas práticas invasivas da Revolução Verde.

O ex-representante dos EUA em Roma Kip Tom o acusou de permitir que a FAO se transformasse “de uma organização de desenvolvimento baseada na ciência em uma campeã de movimentos camponeses agrários apoiados por ONGs bem financiadas que condenam o comércio como neo-colonialismo e equiparam os direitos de propriedade à opressão.” Como você interpreta e responde a essas críticas, não apenas de você, mas da FAO?

Esse tipo de acusação ideológica veio de um “cowboy do agronegócio” que perdeu uma eleição em Indiana e recebeu uma designação como representante dos EUA nas agências sediadas em Roma como prêmio de consolação durante o governo Trump. Isso fazia parte do mesmo jogo que tirou os Estados Unidos do Acordo de Paris e de outras organizações e mecanismos multilaterais. Graças ao povo americano, o jogo acabou.

Durante minha gestão, reforcei o papel da FAO como uma organização técnica com os pés no chão. Aumentamos a capacidade técnica da FAO em seus escritórios regionais e nacionais, o que ajudou os países a compreender melhor suas próprias necessidades. E integramos a estratégia da FAO em cinco objetivos concretos: erradicar a fome, promover o desenvolvimento da agricultura sustentável, reduzir a pobreza rural, garantir sistemas alimentares justos e construir resiliência nas áreas rurais. Se você olhar de perto, estas são a base para as cinco Trilhas de Ação da Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU.

Críticos como o ex-representante Tom retratam a agroecologia como voltada para o passado e como rejeitadora da inovação, como condenando os agricultores pobres dos países em desenvolvimento à pobreza, negando-lhes o acesso a tecnologias agrícolas avançadas. Você vê a agroecologia como uma rejeição à inovação?

A agroecologia não deve ser vista como um retrocesso que rejeita novas tecnologias. É uma forma diferenciada de produzir alimentos que requer inovação, respeitando as condições locais e a participação dos produtores no processo de inovação. Há uma necessidade de políticas e recursos específicos em ciência e inovação para legitimar e melhorar  o conhecimento dos produtores, de modo que a agroecologia possa liderar a transição dos atuais sistemas agroalimentares em direção à . O que a agroecologia rejeita são as práticas invasivas da Revolução Verde, em particular o uso excessivo de insumos químicos como agrotóxicos.

A FAO é uma organização internacional intergovernamental, mas os pesquisadores documentaram a combinação de apoio interno de alguns países membros da FAO e apoio externo vindo principalmente de organizações da sociedade civil que fizeram da agroecologia uma das alternativas importantes para superar os desafios colocados pela Revolução Verde para o futuro dos sistemas alimentares atuais.

O Secretário-Geral da ONU convocou a Cúpula Mundial de Sistemas Alimentares, agora marcada para outubro de 2021. A convocação foi polêmica desde o início, em parte por causa da parceria com o Fórum Econômico Mundial. A Cúpula tem potencial para transformar os sistemas alimentares das formas necessárias?

A Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU foi lançada em meio à controvérsia sobre a nomeação da Sra. Agnes Kalibata como enviada especial do Secretário-Geral da ONU. Ela lidera a Aliança para uma Revolução Verde na África/AGRA (nt.: essa é uma organização apoiada tanto por Bill Gates como para Fundaçã Rockfeller com o único interesse de manter os agricultores africanos dependentes das transnacionais), uma instituição que promove a abordagem da revolução verde na África. Gradualmente, a Secretaria da Cúpula deu início a um movimento de abertura do processo, com a nomeação de um Grupo de Campeões, que representa diferentes setores da sociedade e uma plataforma de alcance multissetorial para disseminar diálogos em nível nacional, regional e global.

Os diálogos têm como objetivo produzir uma série de relatórios, que se espera alimentem as deliberações da Cúpula. Embora eu ainda não saiba como essas conclusões serão absorvidas pelos verdadeiros tomadores de decisão da Cúpula, espero que esses diálogos possam servir pelo menos para expressar a diversidade de opiniões sobre como seguir em frente.

O Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, Michael Fakhri, levantou preocupações sobre a estrutura da cúpula, argumentando que ela falha em integrar uma estrutura baseada em direitos e que marginaliza trabalhos importantes, como a agroecologia. Esta é uma lacuna da abordagem atual do UNFSS (nt.: United Nations Forum on Sustainabity Standards – Forum das Nações Unidas sobre Padrões de Sustentabilidade)?

O UNFSS precisa ter como fundamento o direito à alimentação adequada e saudável. Portanto, Michael Fakhri apresenta um argumento válido. Durante seu discurso no Conselho de Direitos Humanos da ONU, ele disse que a Cúpula está focando as discussões em torno de soluções científicas e baseadas no mercado, e ele pediu a todos que tornassem os direitos humanos o centro de seu trabalho. Eu concordo com sua visão. Eu também acho que as pessoas pobres precisam ser capacitadas para recuperarem o controle sobre seus próprios sistemas alimentares e obterem uma melhor compreensão de como os alimentos são administrados.

Espero que seu engajamento e chamada possam criar a mudança necessária antes das principais conversas da Cúpula. A Cúpula precisa abranger uma visão clara de que a fome zero e sistemas alimentares sustentáveis ​​não podem ser alcançados sem solos saudáveis, sementes saudáveis, dietas saudáveis ​​e práticas agrícolas sustentáveis.

Se quisermos cumprir a meta da fome zero até 2030, quais são as mudanças mais importantes que precisam ser feitas na Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU?

A coisa mais importante a fazer é capacitar os famintos. O que torna a fome um problema político muito complexo é que os famintos não estão representados. Nunca vi uma associação sindical que representasse os desnutridos.

A maioria das pessoas que enfrentam a fome hoje em dia não estão nessa situação devido à falta de alimentos produzidos, mas porque eles não têm dinheiro para comprá-los. Portanto, dê a eles dinheiro ou recursos para terem acesso aos alimentos. É uma fórmula simples. O melhor seria aumentar o emprego e o salário mínimo pago a um nível que permitisse aos trabalhadores o acesso a uma alimentação saudável. E para aqueles que não podem ser empregados por razões diferentes, proporcionar-lhes um subsídio mínimo por meio de programas de transferência de renda, como fizemos no Brasil com o programa ‘Fome Zero’ durante primeira administração do Presidente Luís Inácio da Silva. É simples assim: não há milagre!

Timothy A. Wise é consultor sênior do Institute for Agriculture and Trade Policy e autor de Eating Tomorrow: Agribusiness, Family Farmers, and the Battle for the Future of Food .

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, abril de 2021.