A saúde do solo, das plantas e a nossa estão interligadas

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Sonia Santoro entrevista Vandana Shiva

15-08-2022

Figura de proa da corrente que conecta o feminismo com a ecologia, Vandana Shiva é conhecida no mundo por seu ativismo contra o patenteamento das sementes, a defesa da soberania alimentar e os direitos das mulheres camponesas. Aqui ela explica como o sistema de patentes e as corporações violam os direitos da terra e da população ao acesso aos alimentos.

“Quando a natureza e as mulheres são tratadas como objetos de propriedade de alguém e manipuladas para obter poder e lucro, a relação se torna violenta”, diz a ativista ecofeminista Vandana Shiva. O ecofeminismo – como outras correntes feministas – define o sistema dominante como “patriarcado capitalista”, ou seja, “a convergência das leis do dinheiro com as leis da dominação patriarcal sobre a natureza e as mulheres, leva à colonização de ambas”, diz Shiva nesta entrevista. Ela também fala sobre como as patentes, as corporações e os bilionários violam os direitos da terra e a população de ter acesso a alimentos que não apenas saciam a fome, mas também nos envenenam.

Vandana Shiva nasceu em Dehradum, na Índia, em 1952. É doutora em Física e doutora em Filosofia da Ciência. Ela é conhecida em todo o mundo por seu ativismo contra o patenteamento das sementes, a defesa da soberania alimentar e os direitos das mulheres camponesas. Ela é uma referência do Ecofeminismo, corrente do feminismo que se conecta com a ecologia. E questionadora da visão hegemônica da ciência a serviço das grandes corporações.

“A ciência e o conhecimento baseiam-se no pluralismo, em muitas correntes de pensamento. Quando apenas uma opinião é permitida, torna-se autoritarismo do conhecimento”, diz ela nesta entrevista, na qual amplia alguns conceitos desenvolvidos no livro Ecofeminismo (Belo Horizonte: Editora Luas, 2021), em coautoria com Maria Mies, e em Unidad vs. el 1 por ciento, publicado recentemente na Argentina pela editora Econautas.

Vandana Shiva (Foto: RadFunds)

Eis a entrevista.

O livro ‘Ecofeminismo’ foi escrito há mais de 25 anos (em 1993) e continua sendo reeditado. Ali vocês descrevem um sistema econômico centrado na ilusão do crescimento infinito que está destruindo o planeta e violando grupos subalternos, principalmente as mulheres. O que mudou nesses 25 anos?

O ecofeminismo vê o sistema dominante como patriarcado capitalista, a convergência das leis do dinheiro com as leis da dominação patriarcal sobre a natureza e as mulheres, o que leva à colonização de ambas. O ecofeminismo é a liberdade interconectada da terra viva e das mulheres e de todos os trabalhadores que trabalham com a terra para criar riqueza. Baseia-se no reconhecimento de que a terra é criativa, as mulheres são criativas, os indígenas são criativos, os pequenos agricultores que cuidam da terra são criativos. Eles são uma fonte de riqueza real.

Nos últimos 25 anos, surgiram novas iniciativas criativas. Simultaneamente, aumentaram o ecocídio e o feminicídio.

Você diz que o sistema econômico é violento com a terra e também produz mais violência contra as mulheres, cria uma cultura da violência.

Sistemas vivos cocriam através da não violência, da mutualidade e da reciprocidade. Quando a natureza e as mulheres são tratadas como objetos de propriedade de alguém e manipuladas para obter poder e lucro, a relação se torna violenta.

Por que é difícil para grande parte da sociedade ver que o “progresso” muitas vezes leva à destruição da base sustentável da vida humana? Mesmo com a experiência da pandemia, parece que não aprendemos muito e que é difícil não reproduzir o mesmo sistema.

Vivemos em tempos em que os poluidores, os extratores e os especuladores acumularam riquezas ilimitadas. Pelo dinheiro controlam a informação e os meios de comunicação, incluindo as redes sociais. Controlam nossas vidas. É por isso que a maioria das pessoas desconhece a profundidade da crise e as raízes da crise.

Que medidas devem ser tomadas em nível de cada governo para que o bem-estar da vida humana e da terra seja o eixo?

Os governos devem respeitar os tratados que assinaram na Cúpula da Terra: a Convenção sobre Biodiversidade e a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática. Esses acordos intergovernamentais estão sendo minados e sequestrados. Os governos devem evitar a financeirização da natureza.

No livro ‘Unidad vs el 1 por ciento’ diz que apenas 1% da população, os bilionários, usufruem dos recursos. Por que isso está destruindo o planeta?

Desde que as políticas neoliberais de desregulamentação foram impostas e as regras corporativas da globalização e do livre comércio começaram a moldar as políticas econômicas, algumas pessoas se tornaram bilionárias, as corporações se tornaram maiores e começaram a ser propriedade e ser controladas por corporações de gestão de ativos como Blackrock e Vanguard. Elas moldam os investimentos que privatizam os bens públicos e cercam os bens comuns da vida. A indústria da biotecnologia, a indústria das tecnologias da informação e as plataformas digitais acumularam a riqueza das sociedades destruindo as economias locais, os meios de subsistência e os direitos das pessoas.

Você diz que patentear sementes é patentear a vida e que isso não é ético. Eu a ouvi dizer que há mais de trinta anos guarda sementes para que não sejam apropriadas pelas empresas que as patenteiam. O que as sementes lhe ensinaram neste momento?

A semente é autopoiética, auto-organizada, autocriativa. A semente não é uma máquina inventada pela Monsanto e pela Bayer. Eu criei a Navdanya (ONG fundada por Shiva em 1987) para defender a diversidade e a liberdade das sementes e a liberdade dos agricultores de guardar e compartilhar sementes. Criamos mais de 150 bancos comunitários de sementes, guardamos mais de 4.000 variedades de arroz e milhares de variedades de diferentes leguminosas, oleaginosas, milheto e hortaliças.

Durante mais de 35 anos, aprendi liberdade, diversidade e resiliência com as sementes.

Com o patenteamento das vacinas contra a Covid-19 também vimos essa ganância das empresas farmacêuticas. O que é preciso para romper com essas lógicas cujo único objetivo é o lucro?

Os grandes conglomerados de empresas da indústria farmacêutica, da agropecuária e dos agrotóxicos são os mesmos. Eles nos deixam doentes e depois nos vendem remédios patenteados.

É preciso quebrar a lógica do ilimitado e da ganância, defendendo o bem público e os bens comuns, praticando alternativas que nos proporcionem saúde e alimentação, e mobilizando os governos a agir para quebrar os monopólios e manter os bens públicos no domínio público.

Você fala de um novo colonialismo. Em que consiste?

O primeiro colonialismo apoderou-se das terras das comunidades indígenas, inventou a propriedade privada e cobrou aluguéis dos guardiões originais. O novo colonialismo toma conta da nossa biodiversidade e do conhecimento indígena. O novo colonialismo extrai nossos dados por meio de tecnologias digitais. Nós somos a matéria-prima. Nossos dados são manipulados por meio de algoritmos para modificar nosso comportamento para criar mais mercados e mais controle. O novo colonialismo coloniza a vida.

Você trabalhou com os governos da Bolívia e do Equador, que, em suas Constituições, falam de direitos da terra. Diz-se que há criatividade na América Latina e um pensamento descolonizado emergente, porém, o sistema que prevalece não é esse, mas o das monoculturas com cultivos geneticamente modificados. Na Argentina, agora foi aprovado um trigo geneticamente modificado tolerante à seca.

Este é o poder da ganância. Os movimentos pelos direitos da natureza e da Mãe Terra são reais. Nosso trabalho é continuar defendendo os direitos da Terra e os direitos humanos. Um trigo transgênico não deveria minar o movimento pela liberdade das sementes.

Com a pandemia e a guerra Ucrânia-Rússia, o cenário alimentar global é crítico. A produção baseada em monoculturas, herbicidas e modificação genética é proposta como solução indispensável para combater a fome. É a única solução possível? Que solução propõe?

As monoculturas produzem quantidades cada vez maiores de produtos nutricionalmente vazios. Oitenta porcento do milho e da soja nos Estados Unidos são usados para alimentação animal e biocombustível. Isso não é alimento para pessoas. Apenas 2% do milho nos Estados Unidos é consumido diretamente como alimento para humanos.

Oitenta porcento da comida que consumimos vêm dos pequenos produtores. São os pequenos produtores biodiversos os que produzem mais alimentos. Na Navdanya, mudamos a métrica de produtos básicos de monocultivo de “rendimento por acre” para “saúde por acre”.

A chamada Revolução Verde, a agricultura industrial e o melhoramento industrial são uma indústria extrativa: tomam as sementes dos agricultores de forma gratuita, reproduzem-nas para maximizar os insumos químicos e maximizar os rendimentos extrativos dos produtos básicos de monocultivo.

O “rendimento” é uma medida extrativa que não mede a produtividade real, o custo real, a biodiversidade ou a qualidade e a nutrição dos alimentos.

Em vez de medir o peso de produtos nutricionalmente vazios e sofrer com a ilusão de que estamos cultivando mais alimentos, deveríamos substituir o rendimento por acre pela medida mais adequada de nutrição por acre que a Navdanya adotou. Podemos alimentar o dobro da população da Índia com uma nutrição completa se cultivarmos nossas variedades nativas e aumentarmos a biodiversidade em vez de produtos químicos.

Deveríamos intensificar a agricultura com biodiversidade em vez da agricultura baseada em produtos químicos.

Como seria nossa dieta ideal?

Nossa dieta deve ser, acima de tudo, diversificada. Nossa alimentação deve vir de solos orgânicos, ricos em biodiversidade e produtores de diversos fitoquímicos nas plantas. Nossa alimentação deve ser fresca e não ultraprocessada. Os alimentos processados estão causando uma explosão de doenças crônicas não relatadas.

Nossos alimentos deveriam ter percorrido a menor distância possível do ponto de produção até nossos pratos, para reduzir os quilômetros de transporte de alimentos e as emissões climáticas. A saúde do solo, das plantas e a nossa estão interligadas.

Diante da crise no Sri Lanka, há algumas semanas, muitos disseram que era consequência de uma tentativa do governo de mudar o modo de produção para orgânico. Que análise você tem sobre isso?

A crise do Sri Lanka é uma crise de dívida, agravada pela Covid-19 e pelo confinamento. Por causa da dívida, o presidente queria reduzir a importação de fertilizantes químicos. A proibição de seis meses de fertilizantes não constitui uma política orgânica. Os agricultores orgânicos do Sri Lanka estão indo bem, o movimento está crescendo e os custos dos fertilizantes estão dobrando. Esta manhã tive um seminário on line com agricultores orgânicos, cientistas e camponeses do Sri Lanka. Eles estão indo bem, mas enfrentam os cartéis e seu poder midiático. O “Cartel do Veneno” (os conglomerados que produzem e vendem agroquímicos) impõe uma falsa narrativa através do seu poder nos meios de comunicação.

A agricultura orgânica salvou Cuba da fome quando o colapso da União Soviética e o embargo comercial dos Estados Unidos impediram Cuba de obter petróleo e fertilizantes. Os cubanos transformaram a crise em oportunidade e criaram uma Revolução Orgânica.

Você diz que devemos ir em direção a uma “Democracia da Terra” e fala da “unidade” como forma de alcançar a liberdade. Pode explicar isso?

Todos nós somos parte da terra, filhos da Mãe Terra. Em termos ecológicos somos uma família terrestre com outras espécies como nossos parentes. Devemos cuidar delas e proteger seus direitos. Esta é a Democracia Terrestre: uma interconexão de toda a vida em interconexão. A diversidade cria liberdade através da unidade e da interconexão. Unidade não é uniformidade. A uniformidade fragmenta e divide. A uniformidade, quando imposta à diversidade na natureza e na cultura, cria capacidade de expansão e extinção. A Democracia da Terra é a liberdade de todos os seres, baseada em sua auto-organização e na simbiose.