A inquietante insuficiência humana diante da técnica.

“Inquietante não é o fato que o mundo se transforme num grande aparato técnico, o mais inquietante é que não estejamos preparados para isso. Há ainda um terceiro grau de inquietude, o de que não temos uma alternativa ao pensamento calculista, por isso na Idade da Técnica não sabemos o que é bom, o que é bonito, o que é santo, apenas o que é útil”, finalizou Umberto Galimberti (na bancada à esquerda), parafraseando Heidegger, na conferência O ser humano na idade da técnica: niilismo e esperança. O evento foi realizado na quarta-feira, 21-10-2014, no Auditório Central da Unisinos.

 

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Fotos: Julian Kober/IHU


Homem e Técnica. 
Diante de um auditório lotado, o debate em torno das sociedades tecnocientíficas reuniu estudantes da graduação ao doutorado, bem como contou com a presença de diversos professores pesquisadores brasileiros e de outros países. A soma entre um público numeroso e qualificado mais a palestra de Galimberti foi a equação perfeita para o encerramento do primeiro dia de eventos no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A conferência integra a programação do XIV Simpósio Internacional IHU: Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.

“Estamos persuadidos de que a técnica está na mão dos homens, mas na verdade  os homens é que estão a serviço da técnica“, esta foi a primeira frase de Umberto Galimberti ao abrir sua conferência. Entretanto, ele explicou que a “técnica”, enquanto conceito, não é um aparato, como um celular, por exemplo, mas um “modo de pensar, que consiste em alcançar o máximo dos objetivos com o uso mínimo dos meios. A técnica é a forma mais pobre de pertencimento à razão”.

Técnica, os gregos e a racionalidade judaico-cristã

De acordo com o conferencista, para os gregos a natureza não era uma criatura divina, mas sim uma base imutável. “Platão disse: “Não pense que o universo foi feito para o homem. O próprio Heráclito sustentava que o homem deveria compreender as leis da natureza e a partir daí criar as próprias”, ressaltou Galimberti.

Em contrapartida, a tradição judaico-cristã tem uma posição antagônica. “A tradição judaica, e depois a cristã, não vê esse problema, porque veem Deus como quem delegou a Adão o domínio sobre os animais e sobre a terra, como consta no Gênesis. E, desde então, a categoria do domínio se tornou a racionalidade ocidental”, aponta.

Essência do humanismo

“Podemos dizer que a essência do humanismo não são as obras literárias, mas a essência do humanismo é a ciência porque ela dá ao homem a dominação da terra. E isso está ligado à mensagem bíblica, à redenção”, esclarece o italiano. O professor ainda explicou que a “técnica é a essência do olhar científico. A ciência não observa o mundo para contemplá-lo, mas para dominá-lo”, avalia. “Um bosque para o poeta e para o marceneiro são coisas absolutamente diferentes para cada um dos dois. Um vê o sublime, o outro vê móveis”, complementa.

De aprendizes a juízes

Galimberti lembrou que para Kant a Revolução Copernicana levou à transformação do homem aprendiz para o homem juiz. “Antes os homens se comportavam como alunos para aprender a pegar tudo aquilo que a natureza ensinava, mas depois passaram a se comportar como juízes para resolver a que a natureza iria servir. Esse é o grande evento de 1600. Depois, do ponto de vista técnico, nada de grande ocorreu”, afirma.

Heterogênese dos fins

Marx disse: Todos nós consideramos o dinheiro como instrumento para satisfazer as necessidades e produzir os bens, mas se ele cresce a ponto de tornar-se o fim com o qual tudo deve ser medido, estamos diante da heterogênese dos fins. O dinheiro deixa de ser apenas o fim e passa a ser também o meio, tornando-se a condição universal para alcançar todos os objetivos. Com a técnica ocorre a mesma coisa”, explica.

O professor considera o exemplo da antiga União Soviética como emblemático para pensarmos a técnica na segunda metade do século XX. “Em 1960, quando a técnica da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS era equivalente ao seu opositor, Estados Unidos, ela não poderia cair como potência, afinal haviam enviado o Sputnik ao espaço. Mas quando, em 1989, a técnica da URSS era infinitamente inferior à de seu oponente e tinha pouca contribuição à idade da técnica, não poderia deixar de cair”, explica Galimberti. “O regime não acabou porque as pessoas passavam fome, ou porque as pessoas tinham outras dificuldades, tais como a questão da liberdade. Não tinha nada que ver com questões humanistas, tinha a ver com a técnica”, complementa.

Política e democracia

Segundo o conferencista, para Platão, na Grécia Antiga, a política era técnica, pois era o marco de onde se decidiam as coisas. “Hoje a política não é mais onde se decidem as coisas, mas o local de operação da lógica econômica. Então, é na técnica onde se decidem as coisas. O que os políticos fazem é, somente, representação e é por isso que eles vão para a televisão e para as mídias, porque não têm nada mais para fazer”, aponta.

“Não sei se a democracia hoje tem algum espaço. Ela foi criada por Platão, mas ele a achava pouco aplicável mesmo aos gregos, pois os considerava pessoas de pouca educação facilmente manipulável pelos sofistas“, destaca. ParaGalimberti, na Idade da Técnica não é possível a democracia simplesmente porque os consensos são construídos por meios técnicos, por meio dos aparatos de comunicação em larga escala.

Quando começou a idade da técnica?

Ao contrário do que se pode supor levianamente, a Idade da Técnica não começou com a Revolução Industrial no século XIX, nem mesmo na Primeira Guerra Mundial, no século XX, conforme o conferencista. “A idade da técnica começou com os nazistas, pois colocaram em circulação uma mentalidade potente da técnica. E isso consiste que as pessoas não são julgadas pelo conteúdo de suas ações, mas se são boas ou más nas atividades que executam. É uma questão de eficiência”, esclarece.

“Na Itália existem as melhores minas anti-homens do mundo. Mas quem faz esse trabalho deve ser classificado como operário ou como deliquente?”, provoca Galimberti. “O aparato técnico é feito por sub-aparatos, cujos operadores nem sempre sabem de suas consequências. As pessoas são ‘responsáveis’ somente em relação ao seus superiores, mas a questão técnica não é de suas competências”, exemplifica.

Por fim, trouxe o exemplo do soldado que, via de regra, é considerado “bom”, no sentido de eficiente, à medida que mata mais. “Günther Anders, marido de Hannah Arendt, perguntou ao soldado que disparou a bomba atômica o que ele sentia e ele respondeu, tempos depois: It was my job! (Era o meu trabalho)”, finaliza.

Sobre o autor

Umberto Galimberti (foto) é italiano e professor titular de História da Filosofia e Psicologia Geral da Universidade de Veneza – Itália. É discípulo e tradutor das obras de Karl Jaspers e Heidegger, a quem dedicou três de suas obras, além de ser estudioso de Antropologia Filosófica e Psicologia Analítica. Atualmente, é colunista de um dos maiores jornais da Itália, o La Repubblica. É reconhecido por seu conhecimento circular notável, do mito à Ciência, da Filosofia à História, da Psicologia à Sociologia, da Filosofia da língua à Teologia, da Antropologia à Introdução da técnica, até a obscuridade e o relacionamento técnico dramático do homem. Será publicado, em breve, o texto “O Homem na Idade da técnica”, no Cadernos IHU ideias. O professor tem 17 obras publicadas, inclusive algumas editadas em francês, espanhol, alemão, grego e português. Entre elas estãoCristianesimo. La religione dal cielo vuoto (Milano: Editora Feltrinelli, 2012), Il viandante della filosofia (com Marco Alloni. Roma: Editora Aliberti, 2011) e Psiche e Techne. O homem na idade da tecnica (São Paulo: Paulus, 2005).

A conferência do Prof. Dr. Umberto Galimberti será publicada numa das próximas edições dos Cadernos IHU ideias.

Na próxima edição da revista IHU On-Line será publicada uma entrevista com Umberto Galimberti.

 

A reportagem é de Ricardo Machado, jornalista do IHU.

 

“Hoje a grande ideologia é a ciência e a técnica”

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Uma “maneira muito peculiar” de se entender a razão. Assim o filósofo Jesús Conill classificou a tecnociência em nosso tempo na conferência proferida na tarde de terça-feira, 21-10-2014, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, noInstituto Humanitas Unisinos – IHU.

Intitulada Os marcos e ferramentas éticas nas tecnologias de gestão, a atividade é integra o XIV Simpósio Internacional IHU: Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea, que vai de 21 a 23-10-2014 e cuja programação completa pode ser conferida aqui. A reportagem é de Márcia Junges.

Devemos pensar que o marco que orienta a técnica é histórico e sociocultural. A tecnologia gera cultura e, por vezes, é produto desta. Há uma interação. “A tecnologia gera cultura, mas por vezes se trata de uma produção do que significa a cultura. O humanismo criou a ciência e a técnica, e o meio criou o humanismo. A atual tecnologia crê que se descobriu a si mesma. Vivemos um imperialismo da tecnologia, que para alguns destrói a cultura e o humanismo”, ponderou Conill.

Portanto, quando se fala de cultura tecnocientífica ou tecnológica é preciso pensar o marco que fundamenta o tipo de pensamento que sustenta a sociedade tecnocientífica na qual vivemos. Que tipo de ética pode estar funcionando no desenvolvimento contemporâneo no que a técnica se transformou? Isso tem significado para nos entendermos como seres humanos e nossas possibilidades e limites?

“Hoje a tecnologia está transformando o modo de nos entendermos a nós próprios. Já vivemos situações em que a tecnologia reverte sobre o ser humano e o transforma. Vamos defender uma posição humanizadora, trans, pós ou desumanizadora da tecnologia?”, seguiu questionando o pesquisador. “Que consequências isso terá para as áreas do conhecimento?”.

Em sua fala, Conill continuou a desassossegar a plateia: “É preciso defender uma humanização no processo de historicização da tecnologia? Há antagonismos entre tecnologia, desumanização e humanização? A tecnologia quer fazer um ser humano ‘melhor?’ Lembremo-nos que o ser humano pode desumanizar-se, já o tigre não pode ‘destigrar-se’”.


Tecnologia como força de produção

Para entender o problema do marco que norteia o pensamento contemporâneo cuja tecnociência é preponderante, é preciso nos perguntarmos se sempre fez sentido a presença da técnica e da tecnologia. Se recuperarmos nossa memória histórica e pensarmos como se vivia na Grécia antiga, já naquele tempo se precisava do técnico para resolver questões. A técnica é uma forma de logos para produzir um saber-fazer produtivo. O marco clássico nos ajuda a entender por contraste. É preciso que sejamos conscientes das características da mentalidade do nosso tempo, e por isso devemos ter o sentido crítico e o discernimento, observa o professor.

Já o marco contemporâneo pode ser caracterizado pelo crescente poder da tecnologia, que agora é força de produção. Na Grécia a técnica era um saber-fazer, e agora é um saber-fazer produtivo, transformador dos lugares onde surge a riqueza.  A diferença entre o pensamento clássico dominante é que o marco filosófico é ontológico, no qual o importante é o desvelamento do Ser. A tecnologia moderna não desvela o Ser, não ajuda a descobrir o Ser, não é uma revelação ou caminho da ontologia. O que ela desvela é a força. Quem estuda técnica não se ocupa da ontologia. Há uma dimensão velada, não explícita, que alguns filósofos interpretam através da tecnologia. Segundo Conill, “cada vez mais se pergunta coisas do tipo ‘para que serve a ética, para que serve a filosofia’”.

A tecnologia é a maneira da razão para dizer o que funciona ou parece que é assim. Cada vez mais isso configura nosso modo de viver, pensar e sentir. Nos séculos XIX e XX as ideologias eram marcadas pela política e pela economia. Hoje a grande ideologia é a ciência e a técnica.

Transvaloração dos valores

A mídia vende um sem número de expectativas. Além dela, a medicina aparece em nosso tempo como detentora da cura para todas as doenças, que serão extirpadas com a promessa de vida saudável e higienizada. Essa tecnoracionalização permeia nosso cotidiano e nem nos damos conta disso. Há um incremento e poder da tecnologia, que se tornou o grande aparato da tecnocracia. Nos cursos de formação técnica não entram mais conteúdos humanistas, de questionamento, observa Conill. Nas instituições em geral, inclusive nas universidades, se reproduz uma tecnoestrutura, liderada por tecnocratas responsáveis pela gestão do empreendimento. Isso cria grandes problemas de abstração, criando falácias de realidade – nos distanciamos tanto da realidade que criamos movimentos tecnocráticos autocompreendidos como possíveis de realizar todos os problemas, sem capacidade de acessar o real. Segundo Conill, “vivemos uma ausência de ordem comum – a comunitas é anterior às partes”.

Modernamente não somos um todo do qual fazemos parte, pela emergência da liberdade individual: vivemos a ficção de uma sociedade individual. Cremos estabelecer relações com os demais quando queremos, bem como as rompemos quando estas não nos servem mais, objetou o conferencista. O contratualismo é a figura preponderante do pensamento moderno. Se estabelecem ou rompem contratos à vontade. O desmembramento da comunidade vem se dando cada vez mais. “O crescimento do poder da tecnociência e a ausência de ordem comum ou compartilhada são dois grandes eixos modernos”, acrescentou.

É preciso desvelar os valores existentes por trás das tecnologias. Recuperando uma ideia tributária a Friedrich Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, hoje se fala em transvaloração de valores, e não na perda ou não existência de valores que norteiam a tecnociência. “Necessitamos uma hermenêutica que mostre os valores que estão operando em nosso tempo. Por isso refiro-me à necessidade de uma transvaloração dos valores. Necessitamos de uma nova ética, que não se confunda com a religião, que esteja à altura da modernidade e da vida contemporânea. Esta ética não deve ser meramente individual, porque estamos praticando-a institucionalmente, socialmente e profissionalmente. Ela não pode ficar só na intenção. Por isso penso que uma ‘ética da responsabilidade’ seja o caminho, na qual devem ser educados os profissionais”, frisou Conill.

Para o professor, o mercado financeiro neoliberal se converteu no modelo da economia atualmente. Um total de 90% da movimentação da economia se dá pela financeirização, pelas finanças, e não pelos bens e serviços. “Trata-se de uma perversão da economia e da estrutura econômica. As conivências entre política e economia são de tão alto grau que o esquema da economia colonizada pela política não dá conta de explicar o que acontece em nosso tempo. Basta pensar em quem nomeia o presidente de instituições financeiras como o FMI, por exemplo. Não são políticos que fazem isso? Devemos pensar meios de impossibilitar tais conivências…”.
Quem é Jesús Conill?

Jesús Conill estudou nas Universidades de Valencia, Espanha, e München, na Alemanha. Atualmente é catedrático da Universidade de Filosofia Moral e Política da Universidade de Valencia. Além disso, realizou estudos e pesquisas de extensão nas Universidades de München, Bonn, Frankfurt e Main, na Alemanha; St. Gallen, na Suiça; e Notre Dame, nos Estados Unidos. É autor, entre outras obras, de hermenêutica (Madrid: Tecnos, 2006), Horizontes de economía ética. Aristóteles, Adam Smith, Amartya Sen (Madrid: Tecnos, 2004), Ética de los medios. Una apuesta por la ciudadanía audiovisual (coeditor, junto com Vicent Gozálvez – Barcelona: Gedisa, 2004).

As conferências do Prof. Dr. Jesús Conill serão publicadas, nas edições de Cadernos IHU ideias, no início do ano de 2015.

Jesús Conill concedeu uma entrevista à revista IHU On-Line, sob o título ‘A manutenção da subjetividade humana diante do impulso tecnocientífico instrumental‘ que pode ser acessada aqui.