A Globalização morreu e precisamos inventar uma nova ordem mundial

Navio Afundando

https://www.economist.com/open-future/2019/06/28/globalisation-is-dead-and-we-need-to-invent-a-new-world-order

Um excerto e uma entrevista com Michael O’Sullivan, autor  de “The Levelling” (ainda sem título em português e não publicado no Brasil, por enquanto; literalmente, seria “O Nivelamento”).

junho  2019 

futuro aberto

por K.N.C.

O mundo já viveu o “ápice da democracia”? O futuro será esse  em que sociedades abertas de mercados livres disputam  influência em questões  globais com  países autoritários sob  capitalismo de Estado? Essas questões evocam uma nostalgia de um passado convenientemente mais simples. Para Michael O’Sullivan, ex banqueiro de investimento e economista na Universidade de Princeton, vale mais a pena considerar  o futuro.

O livro de O’Sullivan, “The Levelling: What´s Next After Globalisation” ( “O Nivelamento: O Quem Vem Aí Depois da Globalização”), oferece um mapa.O autor  vê um mundo multipolar se formando,  mas as instituições internacionais não estão preparadas para isso. Ele expressa  preocupações com um  mundo do baixo crescimento e dívida alta –  e clama por um “ tratado mundial de riscos”, de modo que os bancos centrais  se apoiem apenas em medidas de soluções quantitativas,  sob condições concordadas.

Mas sua abordagem mais intrigante dessas questões  é sua comparação do mundo de hoje com os Debates Putney da Inglaterra do século XVII, quando as praticabilidades de uma democracia baseada na direita foram enunciadas, pela primeira vez, por uma facção  chamada “The Levellers” (“Os Niveladores” , daí a inspiração para o título do livro). O mundo, acredita ele, se dividirá entre os países “Niveladores”, talhados para os direitos e as liberdades,  e os países “Leviatãs”,  felizes  com o  crescimento controlado pelo Estado e muito menos liberdade.

Como parte do projeto Futuro Aberto de The Economist, nós sondamos  as ideias de O’Sullivan em uma  curta entrevista. Ao final da entrevista, há um excerto do seu livro sobre o fim da globalização.  

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The Economist: Descreva o que vem após a globalização.  O que é esse mundo que você prevê?

O’Sullivan: A globalização  já  morreu.  Nós devemos dizer-lhe adeus e ajustar nossas mentes ao  mundo multipolar emergente. Este mundo será dominado por, pelo menos, três grandes regiões: os Estados Unidos, a União Europeia e uma Ásia sino-cêntrica. Essas regiões tomarão medidas muito diferentes com relação à política econômica, à liberdade, à guerra, à tecnologia e à sociedade. Países medianos, como a  Rússia, a Grã  Bretanha, a  Austrália e o  Japão esforçar-se-ão para encontrar seu lugar no mundo, enquanto novas alianças emergirão,  como “uma Liga Hanseatica 2,0″ de Estados pequenos e  avançados, como os da  Escandinávia e dos Países Bálticos. Instituições do Século XX, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organizaçã Mundial do Comércio, se revelarão cada vez mais defuntas.  

The Economist: O que  matou a globalização?

O’Sullivan: Pelo menos duas coisas bateram o prego no caixão.  Primeiro, o crescimento econômico global se desaqueceu e, em consequência, o crescimento tornou-se mais “financiável”; a dívida  aumentou e houve mais “ativismo monetário” – isto é, os bancos centrais bombeando  dinheiro na economia através da compra de ativos, tais como  títulos  e em alguns casos até  mesmo ações – para sustentar  a expansão internacional. Em segundo lugar,  os efeitos colaterais,  ou melhor, os efeitos colaterais percebidos da globalização são mais aparentes: a desigualdade da riqueza, o domínio das multinacionais e a dispersão das cadeias globais de suprimentos, tudo isso se transformou em temas políticos explosivos.

The Economist:  A  morte da globalização era  inevitável ou poderia (e deveria) ter sido impedida?

O’Sullivan: Um fator problemático aqui é que não há nenhum organismo central ou autoridade que dê  forma à globalização, além, talvez, do Fórum Econômico  Mundial,  ou talvez da Organização para a Cooperação  e  Desenvolvimento Econômico. De várias maneiras, o fim da globalização é marcado pela resposta pobre e inconsequente à crise financeira global. No geral, a resposta tem sido cortar o custo do capital, e não atacar as causas-raízes da crise. Por isso, a economia mundial vai continuar a mancar, como um coxo, sobrecarregada pela dívida e enganchada ao dinheiro fácil dos bancos centrais.  

The Economist: O título do livro vem dos “Niveladores” dos Debates Putney  de meados de 1600, na Grã-Bretanha.  Quem eram eles e  o que a história deles pode nos ensinar hoje?

O’Sullivan: Os Niveladores  são uma joia oculta  da história britânica. Era um grupo de meados do Século XVII, na Inglaterra, que participou dos debates sobre  democracia que ocorreram numa  região  de Londres chamada Putney. Sua  maior realização foi elaborar  “Um Acordo dos Povos,” que era uma série de manifestos que marcaram as primeiras concepções populares do  que uma democracia constitucional poderia ser.  

Os Niveladores  são interessantes por duas razões. Primeiro, no contexto da época,  sua abordagem era construtiva e prática. “O Acordo” expressa de uma maneira clara e tangível o que o povo quer daqueles que os governam. Por exemplo, propuseram limites temporais  de mandato aos cargos políticos e que as leis concernentes às dívidas fossem aplicadas  igualmente aos ricos e aos pobres.

Em segundo lugar,  são interessantes pela maneira como o  movimento foi revogado e extinto  pelo líder militar Oliver Cromwell e pelos “grandees”  (as elites de seu dia, os senhores). Como tantas outras iniciativas políticas idealistas, os Niveladores falharam. Isto deveria  encorajar o número crescente de partidos políticos novos, como o Change UK (“Mude Grã-Bretanha”), a serem sábios em como enfrentar o processo de reforma política e  mudança.

The Economist: Você prevê  instituições internacionais novas substituindo as velhas e arcaicas instituições do século 20, melhor adequadas para um outro tempo.  Como funcionariam?  E países de valores tão distintos (ie, democráticos, “Niveladores” baseados no mercado, e sociedades e economias controladas pelo Estado, os “Leviatãs”) poderiam de verdade cooperar?

O’Sullivan: Muito se fala da rivalidade da Guerra Fria entre a  Rússia comunista e os Estados Unidos,  e agora alguns querem ver um conflito de civilizações entre a  América e  a China. O “nivelamento” caracteriza um futuro onde há pelos menos dois modelos de vida  pública.  

O modelo mais distinto  para as nações fazerem as coisas à sua própria maneira será o que os Niveladores poderão chamar de   “direitos de homens livres,” ou a ideia da sociedade aberta. O código dos Niveladores  apresenta uma fórmula política muito clara que os europeus e os americanos reconheçarão pelos seus valores, mas decrescentemente pela sua prática.  

O desafio a este código virá da aceitação emergente de modos muito menos democráticos de se conduzir a sociedade, tanto em países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento. Um conflito relacionado será o desejo de uma proporção crescente do eleitorado  por uma sociedade mais aberta, à medida que as economias igualmente se abrem.  

À medida que o  mundo evolui ao longo das linhas de sociedades do tipo Niveladores e sociedades do tipo Leviatãs,  é possível que em alguns países, como na Rússia,  um modelo Leviatã  –  isto  é, ordem em troca de democracia e direitos reduzidos – será o modo de vida aceito. Em outros países, como  mais interessantemente  na China,

à medida que sua economia perde impulso e evolução, pode haver uma tensão crescente entre os grupos que endossam a visão Leviatã (apoiada inevitavelmente pelos “grandees”, os senhores das elites) e os grupos do tipo Niveladores (que apoiam oportunidades iguais e um sistema multipartidário).  O papel e as visões  das mulheres, especialmente na China, e de grupos minoritários, como  a comunidade gay, serão decisivos.  

A emergência de uma nova ordem mundial,  com base em grandes regiões e colorida pelos modelos Niveladores e Leviatãs de  governança, ecoa diversos períodos na história. O desafio nos próximos anos será para nações do tipo Leviatã, como a China,  manter a estabilidade econômica de modo que o  crescente desemprego,  por exemplo, não quebre “o contrato Leviatã”. Igualmente, o desafio em países  Niveladores  será manter sociedades abertas, fraternas, frente à  volatilidade política e potencialmente econômica.

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Adeus à globalização

Excerto de “The Levelling – What´s Next After Globalization”, de Michael O’Sullivan, publicado por PublicAffairs (Hachette Book Group)

Pode ser bem  melhor que aqueles que cresceram afeiçoados à  globalização superem isso,  aceitem sua passagem e comecem a se ajustar a uma nova realidade. Muitos resistirão e, como os trinta e cinco peritos em relações internacionais  publicaram num anúncio no New York Times em  26 de julho de 2018, sob a bandeira de “Porque Devemos Preservar a Ordem e as Instituições Internacionais”,  sentirão que a ordem mundial existente e suas instituições devem ser mantidos. Eu discordo. A globalização, pelo menos da forma como as pessoas vieram a apreciar, já morreu. Daqui em diante, a morte da globalização pode tomar duas formas.  Um cenário perigoso é que  testemunhemos  o fim imediato da globalização do  mesmo jeito como o primeiro período da globalização desmoronou, em 1913. Esse cenário é o favorito dos comentaristas  porque  lhes permite escrever sobre calamidades sangrentas de fim de mundo. Esse é,  felizmente, um cenário de baixa probabilidade, e com desculpas a muitos  comentaristas de poltrona que, por exemplo, falam desejosos de um conflito no Mar da China Meridional, sugiro  que  uma batalha marítima de  larga escala entre a China e os Estados  Unidos  é improvável.

Em lugar disso,  a evolução de uma nova ordem mundial –  de um mundo inteiramente multipolar composto de três (talvez quatro, dependendo de como a  Índia se desenvolva) grandes regiões que são distintas nos funcionamentos de suas economias, de suas leis, de suas  culturas, e de suas redes de  segurança  – está manifestadamente a caminho.  Penso que até 2018 a multipolaridade era um conceito mais do tipo teórico -, mais algo sobre o qual escrever do que testemunhar. Isto está mudando rapidamente: as tensões de comércio, os avanços  tecnológicos  (tais como a computação quântica) e a regulamentação da tecnologia são apenas algumas das fissuras em torno das quais  o mundo está se dividindo  em regiões distintas. A multipolaridade está ganhando  tração e terá dois eixos grandes. Em primeiro lugar,  os polos no mundo multipolar têm que ser grandes em termos de , financeiro e geopolítico. Em segundo, a essência da multipolaridade  não é simplesmente que os polos são grandes e poderosos,  mas também é que  desenvolvem maneiras culturalmente consistentes e distintas de fazer as coisas. A multipolaridade, na qual as regiões fazem coisas distintas e diferentemente, é igualmente muito diferente do multilateralismo, onde as fazem juntas.

A China, em particular,   é interessante no contexto da mudança da  globalização para a multipolaridade,  não só porque no Fórum  Econômico Mundial de 2017  o presidente chinês reivindicou o manto  da globalização para a China. A  China tirou proveito extremo da globalização e dos seus benefícios  (por exemplo, a filiação à Organização Mundial do Comércio) e jogou um papel vital na dinâmica da cadeia de suplementos que  conduziu a globalização. Contudo, os fluxos de comércio da  China se afastam cada vez mais de um mundo globalizado e se aproximam de um mundo regionalizado. Por exemplo,  os dados do FMI mostram que em 2018, comparado com  2011, o  Camboja, o Vietnã, o  Laos e a  Malásia fizeram comércio  mais com a China e relativamente  menos com os Estados Unidos. Esses países, junto com Bangladesh e com o Paquistão, permitiram-se ser seduzidos por relacionamentos de comércio e investimento com a China e agora estão  em sua órbita.

Contudo, a  China propriamente não é globalizada: é cada vez mais difícil  para empresas ocidentais fazerem negócio lá  em igualidade de condições com as empresas chinesas e o fluxo do dinheiro e das ideias – para fora e para dentro da Chinca, respectivamente – está severamente reduzido.  O fluxo de pessoas  é um outro indicador. Os fluxos dentro da China são dinâmicos e são talvez mais controlados do que antes, mas os fluxos de estrangeiros para a China são minúsculos comparados  com outros países, e  a China só recentemente estabeleceu uma agência  (a Administração Estatal de Imigração, criada no Congresso do Partido em 2018) para fomentar os fluxos de imigrantes para a China. Assim como a  China se transformou num pólo principal, também se tornou menos globalizada e indiscutivelmente está contribuindo à tendência à desglobalização.

Em uma larga  escala, sem escolher países individualmente,   podemos medir a extensão pela qual o mundo está se  tornando multipolar, ao examinarmos as tendências agregadas do comércio, do PNB, da inversão direta estrangeira, do tamanho do orçamento de governo, e da população. Tudo isso está  muito menos concentrado, ou mais disperso, do que costumava estar, e cada vez mais se concentram em torno de   diversos polos. Por exemplo, nos cinco anos de 2012 a 2017, a inversão direta estrangeira chinesa na Austrália  aumentou a uma taxa de 21 por cento ao  ano, comparado a seis por cento da inversão dos Estados Unidos   na Austrália, sugerindo que o investimento asiático na Austrália está subindo.

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Mesmo que a  multipolaridade seja  baseada na dispersão e na regionalização crescentes do poder econômico, é expressa igualmente de outras maneiras, notadamente poder militar, liberdade política e digital, sofisticação tecnológica, e um senso maior da prerrogativa e  confiança culturais. Isto não é medido tão facilmente como a multipolaridade econômica, mas algumas vertentes claras estão emergindo. Para tentar sintetizar o que um polo implica,  podemos apontar diversos fatores iniciais: tamanho do PNB de um país, tamanho de sua população, a existência de um legado imperial, a extensão de seu papel econômico regional, seu tamanho militar e sofisticação (por exemplo, orçamento absoluto, número de aviões de combate e  navios), seu lugar no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU relativo à sua região, e sua participação (ou não) em um grupo regional (tal como a OTAN ou a União Europeia).

Sob esse esquema,  a União Europeia, o Estados Unidos, a China, e potencialmente a Índia são  polos, mas o Japão e a  Rússia não se  qualificariam como polos distintos. A  Rússia, por exemplo, posiciona-se bem  em determinados aspectos da multipolaridade (por exemplo, militarmente), mas em seu estado atual pode não se tornar nunca num  polo verdadeiro,  no sentido empregado aqui.

[…]

O caminho para a multipolaridade não será suave.  Uma tensão é que  desde a Revolução Industrial  o mundo teve um ponto de âncora em termos do locus  e da propagação da globalização ( a Grã  Bretanha no século XIX e os  Estados Unidos no século XX). O fato de que há agora pelo menos três pontos de referência introduzem uma dinâmica nova e possivelmente incerta nos assuntos internacionais.

O potencial é alto para a fricção, o engano, e o conflito entre as maneiras cada vez mais diferentes de se  fazer coisas nos  polos principais. Essencialmente, a multipolaridade significa que em vez de falar uma língua comum, os polos principais falam  distintas línguas políticas.  A tensão no comércio é uma possibilidade óbvia aqui. Uma outra forma de tensão é a crise da identidade criada para os países que não estão completamente dentro de um dos polos – outra vez,  o Japão, a Austrália, e o Reino Unido são os principais exemplos – e a crise da ambição para os países, tais como  a Rússia, que querem ser polos mas faltam-lhes  os recursos para conquistarem isso de forma convincente. No nível mais chão, as implicações do fim da globalização como nós o conhecemos e o trajeto para a multipolaridade se tornarão uma parte importante  do debate  político. À margem disso, o fluxo de pessoas, de ideias e de capital pode ser menos global e mais regional e há tempo poderia ser reforçado por um sentido crescente de regionalização, por parte dos polos principais. Em uma maneira negativa, um mundo mais multipolar pode ser o marco decisivo que sinaliza o ápice da democracia e potencialmente o começo de disputas, dentro das regiões, por visões  competidoras de democracia, força institucional, governança estatal e controle.

Tradução de Edvaldo Pereira Lima [email protected] , agosto de 2019.