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Artigo de Edgar Morin, sociólogo e filósofo, em artigo publicado por La Repubblica, 03-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
04 Mai 2022
“Estamos na escalada da desumanidade e no colapso da humanidade, na escalada do simplismo e no colapso da complexidade. Acima de tudo, a escalada para a guerra global é o colapso da humanidade no abismo. Podemos escapar dessa lógica infernal? A única possibilidade seria um compromisso de paz que estabeleça e garanta a neutralidade da Ucrânia“.
Eis o artigo.
Vivemos uma paz bélica, o corpo confortavelmente em paz, a mente entre bombas e escombros.
Atacamos com palavras um inimigo que nos ataca por sua vez com ameaças, mas dormimos em nossa cama, não em um abrigo. No entanto, participamos da verdadeira guerra sem ter entrado nela, mas fornecendo armas e munições.
A guerra gradualmente internacionalizou-se. À ajuda humanitária e depois alimentar para a população ucraniana, vítima da agressão russa, seguiu-se a ajuda militar sob a forma de armas, primeiro defensivas e depois contraofensivas, cuja qualidade e quantidade aumentam sobretudo graças à contribuição massiva dos Estados Unidos, acompanhados da maioria dos países da União Europeia.
A estratégia do exército russo é implacável. É filha da estratégia de Jukov durante a Segunda Guerra Mundial, que dava o papel principal aos formidáveis bombardeios de artilharia, não apenas contra o exército inimigo, mas também contra as cidades a serem tomadas, deixando no final a aniquilação total da capital do Reich, Berlim, com a artilharia pesada. Como acontece em qualquer exército vitorioso, mas mais terrivelmente no avanço soviético na Alemanha, houve inúmeros massacres e estupros. Sabíamos disso então, mas tomamos o cuidado de não os denunciar, explicando-os como uma vingança pelo enorme sofrimento e mortes infligidas pela Alemanha nazista às populações soviéticas.
Quanto à Ucrânia, um povo senão irmão, pelo menos primo do povo russo, cabe se perguntar se os massacres e os estupros se devem à desordem de certas tropas, à fúria do fracasso ou ao desejo de espalhar o terror.
Ainda não sabemos se a intenção original da agressão de Putin fosse a de derrubar toda a Ucrânia como uma fruta madura, decapitando-a após os primeiros ataques. Parece que a ambição atual diante da resistência ucraniana é conquistar permanentemente as regiões de maioria de língua russa do Donbass e a área costeira do Mar de Azov.
Enquanto escrevo, a luta é feroz e incerta: a ofensiva russa é muito poderosa, mas o exército ucraniano, no curso de sua guerra que vem acontecendo desde 2014 contra os separatistas russófilos, construiu fortificações profundas e bem distribuídas, que têm até agora retardado consideravelmente os avanços russos, ainda não muito decisivos. O que agora parece provável, salvo um golpe de estado no Kremlin, um golpe militar fatal ou um coup de théâtre diplomático (cessar-fogo, compromisso de paz), é que a guerra dure e se intensifique com o suprimento cada vez maior de armas ocidentais e as represálias cada vez mais amplas da Rússia.
O caráter internacional da guerra na Ucrânia está crescendo. É verdade que o campo ocidental, liderado pelos Estados Unidos, declara que não está em guerra com a Rússia. Mas sua intervenção militar em favor da Ucrânia é uma guerra indireta, à qual se soma uma guerra econômica exacerbada pelo aumento das sanções. Estamos em plena escalada, sustentada por novos bombardeios, novas acusações mútuas, novas ondas de criminalização mútua. A guerra indireta incluída na guerra da Ucrânia pode a qualquer momento se ampliar após bombardeios não acidentais em território russo ou europeu. Além disso, Putin repetiu sua ameaça de uma resposta “imediata e fulminante” se um determinado limiar não especificado de hostilidade ou interferência ameaçasse a Rússia, referindo-se a uma arma decisiva, desconhecida de qualquer outro país, que somente a Rússia possuiria.
Essa ameaça não é levada a sério pelos Estados Unidos e seus aliados, com base em um argumento aparentemente racional, bem conhecido desde a Guerra Fria. Se a Rússia quer nos aniquilar, uma resposta imediata a aniquilaria por sua vez. Este argumento racional não leva em conta uma possível acidentalidade e uma possível irracionalidade. A possível acidentalidade seria o lançamento involuntário de uma arma nuclear contra o potencial inimigo, o que desencadearia uma resposta nuclear imediata. A possível irracionalidade é a de um ditador cheio de raiva ou tomado pelo delírio.
De qualquer forma, atualmente é provável (sabendo também que o improvável pode acontecer) que entre um deslize e outro a guerra se estenda aos territórios europeus e seja ampliada por mísseis intercontinentais nos territórios russos e estadunidenses sem poupar a Europa. Uma terceira guerra mundial, de um novo tipo, que utiliza armas nucleares táticas de alcance limitado, drones, guerra cibernética para destruir os sistemas de comunicação que sustentam a vida das sociedades, seria o resultado lógico da ampliação da atual guerra internacionalizada.
Acrescentamos uma observação importante: a guerra introduz nos países em conflitos controles, vigilância, eliminação de qualquer opinião que se desvie da linha oficial e o bombardeio da propaganda para justificar permanentemente os próprios atos e criminalizar ontologicamente o inimigo. A Rússia de Putin já era um estado autoritário sob as ordens de um ditador. A guerra agravou o controle e a repressão ali, atingindo não apenas aqueles que se opunham à agressão, mas também aqueles que questionavam sua validade. Na Ucrânia, a caça a espiões e terroristas deu origem ao controle da população, os excessos cometidos por algumas de suas tropas ou banderistas são escondidos e, mesmo denunciando as violências reais, a propaganda é desencadeada contra um inimigo totalmente criminalizado. Na França, mesmo que não sejamos um país beligerante e ainda vivamos no extremo conforto da paz, temos acesso apenas às mais falsas afirmações da Rússia de Putin e às imagens da destruição que provoca.
Estamos na escalada da desumanidade e no colapso da humanidade, na escalada do simplismo e no colapso da complexidade. Acima de tudo, a escalada para a guerra global é o colapso da humanidade no abismo. Podemos escapar dessa lógica infernal? A única possibilidade seria um compromisso de paz que estabeleça e garanta a neutralidade da Ucrânia.
O status das regiões russófonas do Donbass poderia ser decidido com um referendo. Aquele da Crimeia, uma região tártara parcialmente russificada, mereceria um status especial. Em suma, as condições para um compromisso, por mais difícil que seja, são claras. Mas a radicalização e a ampliação da guerra estão inegavelmente reduzindo as possibilidades. A situação geopolítica da Ucrânia e sua riqueza econômica em grãos, aço, carvão e metais raros fazem dela uma presa cobiçada para aqueles grandes predadores que são as duas superpotências. O deslocamento da Ucrânia para o Ocidente após Maidan provocou a agressão russa, e a agressão russa provocou não apenas o apoio a uma nação vítima de uma invasão, mas também o desejo de a integrar ao Ocidente, o que era, afinal, o que a maioria dos ucranianos desejava.
A Ucrânia é vítima não só da Rússia, mas também do agravamento das relações conflituosas entre os Estados Unidos e a Rússia, incluindo, evidentemente, o alargamento da OTAN, que por sua vez é inseparável das preocupações suscitadas pela guerra russa na Chechênia e pela sua intervenção militar na Geórgia. A salvação da Ucrânia está não só em libertar-se da invasão russa, mas também do antagonismo entre a Rússia e os Estados Unidos.
As sanções contra a Rússia, embora atingindo duramente não só o regime de Putin, mas também o povo russo, não sabemos até que ponto também afetam os sancionadores, recaindo em parte sobre eles: não são apenas seus suprimentos energéticos e alimentares que estão ameaçados mas, sem dúvida, com o aumento da inflação e as restrições por vir, sua economia e toda a sua vida social: uma crise econômica é sempre em si mesma geradora de regressões autoritárias e do estabelecimento duradouro de sociedades de submissão.
A Rússia de Putin é um abominável regime autoritário. Mas não é comparável à Alemanha de Hitler; seu hegemonismo pan-eslavista não é, como o de Hitler, a vontade de colonizar a Europa e escravizar os povos racialmente inferiores. Qualquer hitlerização de Putin é excessiva. Estamos em um mundo dominado pelos antagonismos entre as superpotências e entregue a delírios étnicos, nacionalistas, racistas e religiosos. Por mais que as superpotências possam ser repugnantes de várias maneiras, a distensão em seus conflitos é uma condição sine qua non para evitar desastres generalizados.
Devemos, pois, esforçar-nos por chegar a um compromisso. Isso não salvaria a humanidade, mas ganharia uma trégua e, talvez, uma esperança.