A água que ninguém vê.

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EM ABRIL DE 2012, O INDIANO PRADEEP AGGARWAL, diretor do programa de recursos hídricos da Agência Internacional de Atômica, pegou um voo de Viena para São Paulo. O motivo da viagem: uma “água milenar”, genuinamente brasileira. Na bagagem, Aggarwal trazia os resultados da análise de uma amostra coletada no aquífero Guarani, importante manancial subterrâneo que serve quatro países do Mercosul, incluindo o . Os dados preliminares já tinham sido antecipados por e-mail, mas eram tão impressionantes que ele achou necessário reunir-se pessoalmente com os geólogos Chang Hung Kiang e Didier Gastmans, ambos do Laboratório de Estudos de Bacias (Lebac) da Unesp em Rio Claro.

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Os aquíferos já são muito usados pelos brasileiros, mas ainda pouco conhecidos pela ciência. Pesquisadores e governo buscam novas tecnologias para mapear esses reservatórios subterrâneos a fim de preservá-los de contaminação e garantir seu uso sustentável.

Alice Giraldi

EM ABRIL DE 2012, O INDIANO PRADEEP AGGARWAL, diretor do programa de recursos hídricos da Agência Internacional de Energia Atômica, pegou um voo de Viena para São Paulo. O motivo da viagem: uma “água milenar”, genuinamente brasileira.

Na bagagem, Aggarwal trazia os resultados da análise de uma amostra coletada no aquífero Guarani, importante manancial subterrâneo que serve quatro países do Mercosul, incluindo o Brasil. Os dados preliminares já tinham sido antecipados por e-mail, mas eram tão impressionantes que ele achou necessário reunir-se pessoalmente com os geólogos Chang Hung Kiang e Didier Gastmans, ambos do Laboratório de Estudos de Bacias (Lebac) da Unesp em Rio Claro.

Kiang e Gastmans eram os únicos pesquisadores brasileiros envolvidos num projeto de datação das águas do Guarani. A amostra, analisada num laboratório dos Estados Unidos, revelou que aquela água retirada do aquífero em Valparaíso, região de Araçatuba (SP), havia chegado ali nada menos que 600 mil anos atrás.

“O pensamento corrente era que as águas do Guarani não teriam mais do que 40 mil anos, como haviam mostrado estudos anteriores”, recorda Gastmans. Essa percepção do meio científico tinha uma explicação. Até então, as pesquisas haviam usado o carbono 14 como método de datação, que só pode determinar a idade de águas de até 40 mil anos. Os brasileiros trabalharam com outro isótopo radioativo, o criptônio 81, que exige análises mais complexas, mas em compensação permite datar águas de até 1,2 milhão de anos.

O projeto de datação das águas do Guarani com criptônio 81 foi iniciado pelo Lebac em 2009, com o financiamento da Agência Internacional de Energia Atômica. A iniciativa exigiu a utilização de um equipamento específico, desenvolvido nos Estados Unidos e aperfeiçoado no Brasil (ver quadro na pág. 23 ). “A proposta do projeto é fazer a datação em vários pontos do aquífero, abrangendo todos os países em que ele está presente”, informa Gastmans.

Não é propriamente a curiosidade arqueológica que move o esforço de geólogos e órgãos internacionais na tentativa de definir a idade das águas dos mananciais subterrâneos. “A importância da datação é oferecer subsídios para a gestão desses recursos”, destaca Kiang, que coordena o projeto do Lebac. “Se uma água de 600 mil anos for retirada de um aquífero, serão necessários mais 600 mil anos para que ela seja reposta.” Para os pesquisadores, a idade das águas subterrâneas é na verdade um indicador da taxa de renovação de um recurso cada vez mais crucial para o futuro da humanidade.

Os mananciais subterrâneos são estratégicos e a tendência é que sejam cada vez mais explorados para atender às necessidades de um planeta que só fica mais populoso e cujas fontes superficiais de água doce estão cada vez mais contaminadas. A escassez de água já é um grave problema em muitas regiões do globo, e promete vir a se tornar um dos principais estopins de conflitos entre os países. A fim de estimular a colaboração entre os países em torno desse recurso essencial, a declarou 2013 o Ano Internacional de Cooperação pela Água.

É nesse cenário que as pesquisas sobre águas ocultas ganham cada vez mais destaque. Esse recurso escondido abaixo de nossos pés é cerca de cem vezes mais abundante que aquele que aflora na superfície, na forma de rios e lagos, de acordo com a Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (Abas).

Estima-se que o volume total dos mananciais subterrâneos, no mundo todo, ultrapasse 5 milhões de km3. Segundo a Unesco, pelo menos metade da população mundial é hoje abastecida por essas águas. Praticamente todos os países as utilizam para suprir as suas necessidades. Em alguns deles, como Alemanha, França e Itália, a dependência de aquíferos para o abastecimento público varia de 70% a 90% do total de água consumido. Para acessar esses reservatórios, já foram perfurados em todo planeta 300 milhões de poços, 100 milhões somente nos Estados Unidos, ainda segundo a Unesco.

O conteúdo dos aquíferos tem sido usado para tudo: nas residências, na indústria e no comércio, na agropecuária, no mercado de água mineral e até no turismo, por meio das estações termais.

No Brasil, o grosso da água subterrânea destina-se ao abastecimento público. O Censo 2000 mostrou que 61% da população brasileira utiliza água de poço para fins domésticos. No Estado de São Paulo, nada menos que 80% dos municípios dependem desse recurso, parcial ou integralmente. Apesar disso, os aquíferos são algo muito pouco conhecido pelo grande público, o que se deve em grande parte à impossibilidade de vê-los e à complexidade de estudá-los.

“Um aquífero não é um rio dentro de uma caverna”, esclarece Didier Gastmans, para desconstruir a imagem que muitos de nós fazemos de um manancial subterrâneo. Para complicar ainda mais as coisas, acrescenta ele, as águas do andar de baixo do planeta repousam sobre terrenos bem pouco homogêneos.

Esponja e fratura

“O conhecimento sobre águas subterrâneas tem uma relação umbilical com a geologia, porque é entre as formações geológicas que elas ocorrem”, explica Kiang. Isto é, para compreender os aquíferos, é preciso conhecer os vários tipos de rochas dispostas no subsolo como as camadas de um sanduíche. Formadas em diferentes eras geológicas, essas rochas podem ser porosas, resultantes da deposição de sedimentos, como grãos de areia ou argila; ou cristalinas, como basalto e granito, originados de lava de vulcão.

O aquífero Guarani, por exemplo, foi formado pela deposição de duas sequências de rochas, uma sedimentar e outra vulcânica, durante os períodos Triássico, Jurássico e Cretáceo da era Mesozóica, entre 248 milhões e 65 milhões de anos atrás, época em que os grandes dinossauros ditavam as ordens na Terra.

Os melhores aquíferos, segundo os especialistas, são aqueles formados por rochas porosas. “Quanto maiores os grãos que formaram essas rochas, maior também o espaço existente entre elas”, diz Kiang. Na prática, isso significa uma maior capacidade de armazenar água. “É como se [o aquífero] fosse uma esponja encharcada de água”, acrescenta Gastmans.

Já nos aquíferos cristalinos, formados por rochas impermeáveis, a água se acomoda entre fraturas causadas por terremotos que chacoalharam a crosta terrestre há milhões de anos. Esse tipo de reservatório subterrâneo armazena menos água, pois o líquido precisa procurar um caminho entre as fissuras. “A prospecção de água no aquífero cristalino é muito mais complicada do que no poroso, porque a perfuração do poço precisa encontrar as fraturas na rocha”, conta Gastmans.

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Infográfico: Marcus Japs Penna

 

Fonte: Unesp.

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