Terra, inimiga da Saúde?

Nos últimos tempos, gosto de pensamentos sujos. Passo meus dias em numa sala esterilizada praticando medicina familiar, mas ainda assim minha mente está na terra. Isso porque estou descobrindo o quanto este meio rico e obscuro influencia na saúde de meus pacientes. Estou até começando a me perguntar sobre o quanto Hipócrates estava errado, ou pelo menos equivocado, quando proclamou: “Deixe o alimento ser tua medicina.” Não me entenda mal – a comida é muito importante para nossa saúde. Mas talvez seja o solo em que os alimentos crescem, ao invés deles próprios, o que nos oferece os verdadeiros remédios (nota do site: para ampliar esta informação ver os links do site: https://nossofuturoroubado.com.br/agrotoxico/o-orgao-esquecido-nossa-microbiota e https://nossofuturoroubado.com.br/noticias/voce-e-apenas-10-humano).

 

 

http://envolverde.com.br/saude/terra-inimiga-da-saude/

 

por Daphne Miller*

terra Terra, inimiga da Saúde?Pesquisas de ponta revelam: ao contrário do que pensávamos, bactérias e outros micro-organismos presentes no solo são parte de nosso sistema imunológico. Agroecologia pode preservá-los.

Há pouco, na literatura médica convencional, para apoiar estas afirmações. Procure os termos “solo” e “saúde” no banco de dados da PubMed e os resultados principais apresentarão o solo como uma substância de risco, cheia de leveduras patogênicas, bactérias resistentes a antibióticos, radônio, metais pesados e pesticidas. Mas passe reto por estes relatórios cruéis e irá descobrir uma pequena, mas crescente, coleção de pesquisas que pintam o solo com uma cor muito diferente. Estes estudos sugerem que a terra, ou pelo menos alguns tipos dela, pode ser benéfica à nossa saúde.

Os cientistas que estão investigando essa relação entre a saúde e a terra pertencem a um grupo muito variado — botânicos, agrônomos, ecologistas, geneticistas, imunologistas, microbiologistas – e coletivamente estão oferecendo razões para dar atenção aos lugares onde nossa comida é plantada.

Solo vívido, comida boa

Por exemplo, utilizando a tecnologia do sequenciamento do DNA, agrônomos da Universidade do Estado de Washington descobriram recentemente que um solo com ampla abundância de diversidade de seres (especialmente bactérias, fungos e nematóides) tem probabilidades maiores de produzir alimentos densos de nutrientes. É claro que isso faz sentido quando se compreende que a cooperação entre bactérias, fungos e as raízes das plantas (coletivamente referidas como a rizosfera) é responsável por transferir carbono e nutrientes do solo para a planta — e, ao final, para nossos pratos.

Dado este fluxo de nutrientes dos micróbios do solo para nós, como podemos impulsionar e diversificar a vida no solo? Uma série de estudos mostra consistentemente que a agricultura ecológica produz biomassa microbial e diversidade muito maiores que os cultivos convencionais. A agroecologia compreende muitos sistemas (biodinâmica, regenerativa, permacultura, ciclo completo etc) que compartilham princípios fundamentais holísticos: proteger o solo superficial com coberturas e aração mínima, rotação de culturas, conservação da água, limitação do uso de químicos (sintéticos ou naturais), e reciclagem de todo o lixo orgânico e animal de volta para a terra. Muito desta pesquisa apoia o que os agricultores tradicionais pelo mundo sabem há muito tempo ser verdade: quanto mais ecologicamente plantamos, mais nutrientes colhemos.

Micróbios de combate à alergia

Enquanto os cientistas da terra ocupam-se documentando estas ligações entre o solo e a comida, imunologistas e alergistas na Europa estão trabalhando para descobrir outra conexão intrigante entre a terra e a saúde: o chamado “efeito fazenda”. Por que as crianças que crescem em propriedades que adotam a agroecologia, na Europa Central, têm muito menos incidência de alergia e asma que as que crescem em fazendas industrializadas? Novamente, quase tudo aponta para os micróbios — no estrume, no leite não pasteurizado, na poeira do estábulo, na comida que não é lavada e, sim, no solo. No estudo, pesquisadores estudaram colchões de crianças de fazenda e encontraram uma grande variedade de bactérias – a maioria das quais é tipicamente encontrada no solo.

Como os micróbios do solo e de fazendas protegem contra doenças alérgicas é ainda questão em debate, mas as pesquisas estão apontando cada vez mais para a nova ideia que, por falta de um termo melhor, vou chamar de “hipótese da mudança do ”.

A explicação padrão para o “efeito fazenda” é a hipótese da higiene, que afirma que a exposição a uma variedade de micróbios no começo da vida (incluindo no útero) amortece a resposta alérgica de nosso sistema imunológico adaptativo.

O problema com esta teoria é que nosso sistema imunológico é surpreendentemente simplista e parece reagir similarmente tanto ao se encontrar com um conjunto diverso de micróbios em uma fazenda ecológica quanto com com uma porção relativamente homogênea de micróbios tipicamente encontrada em um apartamento ou numa fazenda convencional. Mas, e se nossas células imunológicas forem simplesmente uma proteção de retaguarda, para uma primeira linha de defesa mais sofisticada — nossos micróbios residentes?

E se um microbioma de solo saudável e diverso puder nutrir um bioma humano mais diverso e protetor? De fato, novas pesquisas sugerem que é o caso, e que uma troca microbial solo-intestino pode oferecer o real “efeito fazenda”.

Troca de genes no nível do intestino

É claro que isso é tudo muito novo — e para mim, como médica, um pouco desorientador. Na escola de medicina, aprendi que nossas bactérias internas pertencem a um clube restrito e que elas não têm nada a ver com micróbios em nosso ambiente externo. Patógenos como a salmonela e a e.coli devem ultrapassar esta barreira, como acontece quando sofremos intoxicação alimentar ou outras infecções, mas sua influência foi considerada transitória – embora ocasionalmente devastadora. Mas agora que podemos sequenciar o DNA de um microbioma inteiro, usando uma técnica chamada metagenômica, estamos começando a conectar os pontos e descobrindo que podem ocorrer trocas genéticas entre nosso microbioma e o mundo exterior – particularmente em lugares onde cresce nossa comida.

Entre os primeiros a documentar esta transferência de genes está um grupo de microbiologistas franceses. Eles identificaram a mesma sequência exata de DNA em duas espécies de bactérias Bacteroidete diferentes – uma vivendo em uma alga marinha e outra, nos intestinos de japoneses. Concluíram que a bactéria marinha pegou carona até o intestino humano via sushi e outros pratos com algas nori e passou seu DNA para os micróbios residentes do humano hospedeiro. O resultado final desta troca é que muitos japoneses – e possivelmente pessoas de outras culturas comedoras de algas – adquiriram maior habilidade que para extrair nutrientes valiosos de suas nori.

Justin Sonnenburg, um microbiólogo em Standford que estuda como o ambiente influencia em nosso microbioma, contou-me que as descobertas deste estudo de algas nori são, provavelmente, apenas a ponta do iceberg. Ele acredita que vamos continuar a descobrir novas formas de interação entre o solo, os oceanos e nosso microbioma – e seu enorme papel em nossa saúde.

Impressionado pela crescente evidência de que nossa saúde depende de nosso solo saudável, converti meus “pensamentos sujos” em ação. Agora, digo a meus pacientes que a comida que cresce em um solo bem tratado deve oferecer distintas vantagens, relacionadas a obter melhores nutrientes e construir um sistema imunológico saudável.

É claro que identificar essa comida pode ser complicado, já que a certificação de produtos orgânicos, apesar de ser certamente útil, nem sempre nos leva aos produtores mais saudáveis. Muitas propriedades certificadas como orgânicas são realmente ecológicas, mas algumas propriedades que produzem em larga escala, com este certificado, ainda aram profundamente e usam agrotóxicos aprovados – duas práticas que danificam o solo e seus micróbios. Ao mesmo tempo, há agricultores que não podem pagar por um certificado orgânico, embora estejam implementando as práticas da agroecologia, que produzem comprovadamente um solo rico e uma população microbial próspera. Como não existe nenhum selo de “solo saudável” ou “micróbios saudáveis” que possam nos levar a estas fazendas minha sugestão é perguntar uma questão simples:

“O agricultor vive em sua fazenda?”

Agricultores que vivem em sua terra e alimentam sua família com ela tendem a se importar com seu solo como se fosse mais um membro da família. Ir a feiras de produtores é um meio confiável de obter este tipo de produção, e alguns supermercados [nos EUA] também estão começando a apoiar os agricultores locais. Lembre-se: quando mais procurarmos estes produtos, mais eles irão fazê-lo.

Claro: outra opção é plantarmos nossa própria comida. Comer alimentos frescos de um solo saudável não é uma opção “tudo ou nada”. Usar todos os dias um punhado de ervas, de um canteiro de apartamento, pode ter um impacto positivo em nossa saúde. Sobre a comida plantada em casa, ou produzida localmente, sempre proponho a meus pacientes pensar duas vezes, antes de descascar. Afinal de contas, quem sabe que bactérias benéficas podem ser eliminadas? Por sinal, comer vegetais frescos fermentados é uma ótima maneira de adquirir uma mega-dose de bactérias do solo.

Eu também falo aos pacientes sobre algumas outras vantagens (não comestíveis) de se conectarem com agriculturas saudáveis. Por exemplo, apesar de os dados não serem conclusivos, é provável que passar um tempo em uma plantação local possa oferecer uma prevenção relativamente segura e de baixa tecnologia para as famílias com predisposição à alergia. “Tempo na terra” parece especialmente atrativo por prevenir a necessidade de antialérgicos ou doses de antiistaminicos. Pesquisas recentes dizem que o tempo que uma pessoa passa trabalhando na terra é um meio de construir relações de comunidade, melhorar a força e a condição física, diminuir a probabilidade de demência em idosos e melhorar o desempenho escolar dos adolescentes. Seria simplista enxergar a presença em fazendas saudáveis como panaceia para tudo que nos aflige, mas é uma parte importante de minha caixa de ferramentas médica.

Cuidando de nossa sujeira

Passei a ver meus pacientes como uma parte integrante de um ciclo de agroecologia, onde o fluxo de saúde é bidirecional. Nossas escolhas influenciam diretamente na saúde da agricultura – que, em retorno, produz impactos em nossa saúde. A compostagem é uma maneira de alimentar a agricultura local e, em consequência, nos fortificar. Encorajo os pacientes a proteger seu solo como protegem seus corpos. Embora muitos de nós estejamos cientes de que as químicas usadas no solo podem ser danosas para nossa saúde, raramente percebemos que produtos que usamos em nós mesmos e em nossas casas – como triclosanos, compostos orgânicos voláteis, parabenos, PBAs, PVCs e lixívia – podem afetar a saúde do solo e seus micróbios. (Por sinal, extratos de alecrim ou manjericão produzem excelentes antissépticos, vinagre é o melhor produto de limpeza, karité e manteiga de cacau são hidratantes perfeitos, e bicarbonato de sódio diluído é um shampoo excelente.

Sei há muito que antibióticos, esteroides e outras drogas bactericidas podem causar efeitos colaterais não intencionais em meus pacientes. Agora, entendo como estas drogas podem causar impacto na vida microbial sob nossos pés e, em última instância, em nossas próprias células.

Certamente, qualquer produto químico que diminua a diversidade microbial irá, em consequência, diminuir o valor nutricional de nossa comida. Mas existe outra preocupação: microbiologistas da Universidade de Washington em Saint Louis perceberam recentemente que as bactérias do solo, quando expostas a antibióticos e outros químicos, podem desenvolver genes resistentes a antibióticos que, assim como as enzimas digeridoras de algas nori, podem ser transferidas para nosso microbioma, converterndo bactérias a princípio benignas em “superbugs” nocivos e resistentes a medicamentos.

Pensar em um corpo saudável como extensão de uma agricultura saudável, e vice versa, é uma mudança de paradigma para muitos de nós. Mas quando consideramos que todas as nossas células crescem obtendo do solo e das plantas seus nutrientes, tudo faz sentido. Na verdade, não é tanto exagero dizer: nós somos terra.

* Edição: Antonio Martins do Outras Palavras. Tradução: Gabriela Leite.

** Publicado originalmente no site Outras Palavras.

2 Comentários

  1. Muito interessante! Agora falta transformar essa pesquisa em algum sistema aberto que permite tratar a água!
    Eu fiquei curioso em saber se os canos de PVC encontrados no Brasil ainda têm ftalatos pois sei que na França, já pararam de ter há 10 anos. Também eu gostaria de saber sobre as caixas de água, será que o revestimento de plástico interno tem aditivos que soltam perturbadores endócrino na água (ainda mais nesse verão tão quente)? Será que isso tem algo a ver com a baixa taxa de natalidade do Brasil que é de 1,83 enquanto países desenvolvido, como a França, por exemplo, ainda está um pouco acima de 2?

    1. Bom dia! Se o texto mencionado é quanto à pesquisa com ftalatos e não ‘Terra, inimiga da saúde?’, é importante se observar, no meu entender, que este tipo de pesquisa é mais acadêmica e de interesse da indústria do que objetivamente de interesse da sociedade. Infelizmente também confunde o consumidor porque desvia do foco mais importante que é a presença em materiais de contacto direto com os organismos vivos, seja através dos alimentos (filmes de pvc embalando produtos gordurosos) seja através da vida que vem pelos canos com a água tratada. E que estas moléculas além de serem lipossolúveis, são disruptores endócrinos e mesmo depois de tratada a água, como na pesquisa, a contaminação já ocorreu e sempre permanecerá porque a proposta é tratar a água industrial e não a rejeição e o banimento total e absoluta destes plastificantes em todos os produtos do dia a dia. Grato pela mensagem, proponho que veja o link http://nossofuturoroubado.com.br/aditivos-plastificantes/conexao-entre-o-pvc-o-feto-e-a-obesidade, para ver que esta molécula também é obesogênica e sem nenhum controle já que vão muito além de uma delas desta ampla família de ftalatos. Felicidades, Luiz Jacques.