A irresponsabilidade e o cinismo do Governo Federal em relação aos povos indígenas atingiu um patamar inimaginável, com a divulgação nos últimos dias de uma minuta de portaria para “regulamentação” do Decreto 1775/1996, dispositivo que rege o já complicado e lento processo administrativo de regularização de terras indígenas no país.
http://www.ecodebate.com.br/2013/12/04/comunidades-indigenas-queiram-gentilmente-concordar-com-seu-proprio-exterminio-diz-mj/
Brasília, 02/10/2013 – Índios fazem protestos na Esplanada dos Ministérios. A manifestação fez parte da semana de Mobilização Nacional Indígena, que reuniu representantes de etnias de todo o país para chamar a atenção da sociedade sobre as violações de direitos das comunidades. Foto de Valter Campanato/ABr.
Não é novidade para ninguém o cenário de calamidade em que se encontram as comunidades indígenas que ainda não tiveram suas terras demarcadas, especialmente em Estados como o Mato Grosso do Sul, o Paraná e o Rio Grande do Sul. Os índices de assassinatos, suicídios, violência de todo tipo, sem falar na falta de acesso a direitos sociais elementares de cidadania, iniciando pelo simples registro civil dos indígenas, são de não fazer inveja para os episódios mais sombrios da história humana e exigiria um esforço sincero do Governo para a reversão deste quadro.
Depois de um banho-maria de meses, nos quais ficaram paralisados todos os processos de demarcação de terras sob pretexto de fazer avançar um novo marco regulatório que traria ao Governo o mágico poder de “mediar” conflitos históricos sem tomar posição, eis que o Ministério da Justiça traz à tona esta portaria desastrosa, que terminará por inviabilizar os processos de demarcação justamente nessas regiões onde o conflito é latente, estrutural, e tão arraigado historicamente que certamente ainda trará grande dor de cabeça para este Governo que prefere tapar o sol com a peneira, e seguir fazendo valer suas alianças de governabilidade acima de qualquer bom senso em relação à realidade.
A medida é irresponsável porque metade da população indígena do país que se encontra fora da Amazônia segue existindo, com taxas de crescimento demográfico altas, e confinadas em espaços diminutos de terra, depois de passarem por processos violentíssimos de expropriação sobretudo no século XX. É o caso dos 40 mil guaranis e kaiowas que habitam o Mato Grosso do Sul, e também dos guaranis das regiões Sul e Sudeste, e dos povos do nordeste. Eles continuarão aí, lutando por suas terras e pelo futuro de seus filhos e netos, com a mesma força e persistência que vêm demonstrando ao longo dos quinhentos anos de invasão. Lula disse, em visita recente na qual costurava apoio dos ruralistas no Mato Grosso do Sul para a reeleição da presidenta Dilma, que ela deveria tomar imediatamente para sua mão a “saída para os conflitos” para que tivesse efeito em “tempos de paz”, porque “na hora que começar a guerra vai ser muito mais difícil, muito mais caro e muito mais complicado”. Se os tempos já não são de paz, como finge crer o ex-presidente, a completa paralisação dos processos de demarcação certamente levará a uma guerra cada vez mais intensa.
O problema é que o Governo tem deixado claro a quem prestará apoio durante esta guerra. Enquanto fazendeiros são acusados frequentemente de encomendar assassinatos de lideranças indígenas, especialmente no MS, e o Governo pouco faz para apurar, conter a violência ou proteger os indígenas, as retomadas de terras, que restam como o último recurso dos índios diante de um cenário como esse, são cada vez mais criminalizadas. Nas agora chamadas “Câmaras de Mediação” que o MJ tem criado para “mediar conflitos”, o Ministro Cardozo nada mais faz do que chantagear os índios dizendo que não fará avançar os processos das terras nas quais eles façam retomadas. Se não fazem retomadas, ele não faz nada para avançar porque teria que ouvir a deus e o mundo antes de tomar qualquer decisão; se fazem, ele não faz nada porque arrumou um pretexto para isso.
Mas além de irresponsável a recém divulgada “portaria regulatória” do MJ, que teve grande contribuição da AGU e da Casa Civil, é trazida a público com o gesto de maior cinismo que poderíamos imaginar.Depois de meses de discussão a portas fechadas, o MJ divulga a portaria já pronta apresentando-a à Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), sob pretexto de consulta. Simultaneamente, apresenta-a ao Congresso dos Ruralistas, que não perderão a oportunidade para tentar deixar a tal portaria ainda pior e enterrar de vez qualquer tentativa de solução para o conflito que não seja a eterna submissão dos índios a uma situação de desgraça, a caminho de mais um ciclo de genocídio. Além de se submeter ao genocídio, restaria ainda aos índios representados pela sua bancada na CNPI ter de referendar o processo, para que o Governo não precisasse sentir-se sozinho como o grande responsável por esse ato desastroso.Mas as lideranças indígenas da CNPI e de todo Brasil certamente não cederão a esse capricho cínico, e expressarão toda a sua revolta dando a responsabilidade a quem merece, como já sinalizaram através de nota da APIB.
Mais uma vez será necessário um grande esforço da sociedade e do movimento indígena para conter essa medida, já que o Governo Dilma insiste com todos os meios de que tem, em ser registrado na História como o grande algoz dos indígenas durante o período “democrático”. O que não é de se admirar se consideramos que as analogias entre a política da Ditadura Militar e a do Governo Dilma são muitas e se expressam em vários campos, a ponto de nos perguntarmos se não estaríamos diante de um caso político da Síndrome de Estocolmo. A portaria proposta pelo MJ agora é a reedição exata do modelo de demarcação de terras indígenas que vigorava durante o regime de exceção, no qual as decisões de caráter técnico eram submetidas aos acordos políticos do chamado “grupão”, como já se notou desde que seu embrião foi anunciado pela Ministra Gleisi. Um enorme retrocesso, em suma. Para não falar da adoção de um modelo econômico baseado no crescimento a qualquer custo e na primarização centrada na exportação de commodities, outra marca da Ditadura, o Governo Dilma repete condutas ainda mais graves e surpreendentes, como a edição de leis de exceção (como a Lei Geral da Copa e a Lei Antiterrorismo) para fazer passar a Copa do Mundo em um país que desde de junho tem provado não ser este mar de submissão que os analistas pintavam. Se aos índios só resta mais uma vez a mobilização de base, a sociedade toda deve ficar alerta para que o Governo não procure a “saída para os conflitos”, de que falava o ex-presidente, na criminalização da resistência indígena, como cada vez mais parece querer fazer ser o caso.
Daniel Pierri é representante do CTI na Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI)
APOIEM A MANIFESTAÇÃO NESTA QUARTA-FEIRA, DIA 4, CONTRA A PORTARIA DO MJ, E
TODAS AS MEDIDAS ANTI-INDÍGENAS EM CURSO
Nota enviada por Helena Ladeira, do CTI.
Mais de mil indígenas protestam em Brasília contra mudança no processo de demarcação de terras
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Brasília, 04/12/2013 – Índios de várias etnias protestam em frente ao Palácio do Planalto. Eles entraram em confronto com seguranças ao tentar subir a rampa que dá acesso ao local. Foto de Antonio Cruz/Agência Brasil.
Depois de cercarem o Palácio do Planalto, em Brasília, na manhã de ontem (4), cerca de 1,2 mil índios de várias etnias estão neste momento divididos em manifestações no Congresso Nacional e diante do Ministério da Justiça. O grupo protesta contra o que classifica como mais uma iniciativa do governo federal para inviabilizar a demarcação de terras indígenas. A presidenta Dilma Rousseff não estava no local.
Durante o protesto, os índios chegaram a entrar em conflito com seguranças do Palácio do Planalto e a fechar o trânsito em vários trechos da Esplanada dos Ministérios.
O estopim da manifestação foi a minuta (esboço) de uma portaria que, segundo as lideranças indígenas, o Ministério da Justiça está produzindo. Representantes do movimento dizem ter tido acesso à cópia do documento no último final de semana. Segundo Sônia Guajajara, uma das coordenadoras da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o texto estabelece mudanças nos procedimentos legais necessários ao reconhecimento e à demarcação de terras indígenas.
A proposta, ainda segundo Sônia, visa a oficializar a proposta do governo federal de que outros órgãos de governo além da Fundação Nacional do Índio (Funai) sejam consultados sobre os processos demarcatórios em curso. A proposta foi apresentada pela ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, ainda no primeiro semestre deste ano, com a justificativa de minimizar conflitos entre índios e produtores rurais.
“A gente entende que a minuta servirá só para dificultar ainda mais o processo de identificação e demarcação de terras. O governo federal e o Congresso Nacional estão aliados para atacar e diminuir os direitos indígenas, principalmente os territoriais, favorecendo o agronegócio e o latifúndio”, disse Sônia Guajajara à Agência Brasil, adiantando que o grupo quer ouvir o ministro José Eduardo Cardozo sobre o assunto.
“Há um momento em que as autoridades, e o ministro da Justiça, principalmente, têm que se posicionar e atuar para que os direitos sejam cumpridos, para implementar o que já é garantido constitucionalmente, e não adiar ainda mais isso. O efeito da demora na demarcação de novas terras indígenas é tensionar ainda mais a situação. O governo e o ministro pensam que estão mediando, apaziguando as tensões, mas os conflitos só vêm aumentando”, acrescentou Sônia.
Ao perceber a chegada dos índios, seguranças fecharam todas as portas de acesso ao Palácio do Planalto. Os índios rodearam o edifício e tentaram passar pela entrada lateral. Fazendo barulho e carregando faixas com pedidos de “demarcação de terra urgente”, alguns manifestantes forçaram a passagem, entrando em confronto com a segurança. Alguns seguranças chegaram a usar spray de pimenta para dispersar o grupo.
Após cerca de meia hora no local, parte do grupo seguiu para o Congresso Nacional. Outra parte se reuniu diante do Ministério da Justiça, impedindo o acesso dos servidores que chegavam. Policiais militares reforçam a segurança do local. Representantes do ministério estão negociando com os líderes do protesto. Segundo a assessoria do ministro José Eduardo Cardozo, ele pretende receber uma delegação indígena para discutir o tema.
Além de criticar a minuta, os índios também cobram a apuração de crimes contra os povos indígenas, como o assassinato do cacique Ambrósio Vilhalba, da Aldeia Guarani-Kaiowá Guyraroká, em Cristalina (MS). Vilhalba foi encontrado morto segunda-feira (2). A Polícia Civil deteve dois suspeitos e investiga se a morte foi consequência de rixas entre o cacique e outras lideranças da aldeia.
“O governo deve deixar de promessas e cumprir o que prometeu para nós. Hoje você vê o povo indígena lá em Mato Grosso do Sul sendo assassinado por fazendeiros, por grandes pecuaristas, que querem tomar a terra do índio. Queremos demarcação de terras urgente. Não dá mais para aguentar. Também queremos direito à saúde e à educação. E respeito ao povo indígena”, disse o índio kinikinau, de Mato Grosso do Sul, Nicolau Flores.
Edição: Davi Oliveira
Reportagem de Alex Rodrigues e Danilo Macedo, da Agência Brasil.