‘Vivemos o maior ataque a direitos indígenas desde 1988’, diz pesquisadora.

Para a cientista social Daniela Alarcon, vive-se no Brasil uma conjuntura extremamente desfavorável aos povos indígenas, às comunidades tradicionais e aos camponeses. “Setores como o agronegócio ganharam muito espaço no governo Dilma”, diz. Segundo ela, essa é uma das principais razões da não conclusão do processo demarcatório das terras indígenas no sul da Bahia, assim como de outras áreas e da secular não realização da reforma agrária.

 

 

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Ela se debruça sobre o tema desde 2010, esteve em pesquisa de campo durante quatro meses em 2012, e conta que conheceu todas as áreas retomadas na Serra do Padeiro, entre outras terras indígenas sob litígio. Em março de 2013, Daniela Alarcon concluiu pesquisa de mestrado pela UnB (Universidade de Brasília) sobre as retomadas de terras entre os tupinambás. E alerta: “Vivemos hoje o maior ataque aos direitos indígenas desde a promulgação da constituição de 1988.

A pesquisadora afirma que há favorecimento do agronegócio por trás da demarcação das terras indígenas no sul da Bahia. “Há indícios disso”, aponta. “O governo Jaques Wagner (PT-BA), por exemplo, tem se apresentado como um interlocutor constante, e muitas vezes, o que é bizarro, como porta-voz da elite regional do sul da Bahia. Está evidente a opção pelo agronegócio, pelo setor hoteleiro, em detrimento dos direitos indígenas.”

Em reportagem recente da Agência Brasil, Wagner argumenta que seu governo se preocupa com pequenos agricultores. “Não se trata de grandes latifundiários, mas várias famílias que estão na terra há até 80 anos, plantando e sobrevivendo, e essas famílias muitas vezes não têm para onde ir”, afirmou. Confira a seguir trechos da entrevista que Daniela Alarcon concedeu à Revista do Brasil, 06-10-2013.

Eis a entrevista.

Você aborda esse suposto movimento anti-indígena em sua pesquisa?

Sim, chamo de “frente contra a demarcação”, os indígenas e outros setores defendem fortemente a necessidade de pagar o quanto antes as indenizações aos ocupantes não-índios que têm direito, isso distenderia imensamente o conflito. E o governo Wagner “opina” contra e aponta para a judicialização do processo.

Mas então a preocupação do governo com os pequenos agricultores não é legítima?

Claro que há os pequenos, e por isto este caso é tão complicado, mas há grandes, há netos e bisnetos de coronéis de cacau. Mas estão tentando caracterizar, por isso, a demarcação como um “trauma”, e não como o reconhecimento de um direito originário, previsto na Constituição, como uma oportunidade de fazer justiça histórica.

Essa lentidão na conclusão da demarcação é ilegal, afinal, os prazos já expiraram?

Sim, o processo de demarcação de Terras Indígenas é regulamentado pelo decreto 1.775/96, e é bastante claro quando estabelece prazos máximos para cada uma das etapas do processo, do começo ao fim. Então tem lá: x dias para que o grupo de trabalho elabore o relatório, x dias para que a funai faça isso, x dias para que o MJ faça aquilo. Mas a Funai, o MJ, a Presidência da República desrespeitam sistematicamente esses prazos. É gritante: o decreto fala lá em 30, 60 dias para determinadas etapas, que acabam se estendendo por anos. O MPF propôs uma ação civil pública responsabilizando o estado pela omissão e abusiva demora.

Você acredita que essa lentidão pode ter alguma relação com a PEC 215?

Certamente. Essa é a leitura que fazemos. uma série de medidas administrativas e propostas legislativas buscam retroceder, retirando direitos constitucionalmente garantidos, sobretudo, o direito ao território, a PEC 215 vai nessa direção. Nesse quadro, recentemente, o governo federal determinou a paralisação de processos de demarcação de TIs em curso. Isso infelizmente nos leva a crer que, se o governo não age para garantir os direitos indígenas hoje, é por que aguarda que se consumam essas alterações, que tornariam muito mais difícil, talvez impossível, a demarcação. Esse pedido foi feito pela ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann.

Quais os argumentos apresentados por ela?

Ela utiliza os típicos argumentos da bancada ruralista, alega que o procedimento demarcatório é “falho”, que a Funai age “interessadamente” (seja lá o que for isso), que é preciso pensar no “desenvolvimento”, que é preciso ouvir todos os “interessados”, envolvendo a Embrapa, o Ministério da Agricultura.

E as ações chamadas de retomada dos índios também não são ilegais?

As retomadas de terras costumam ser qualificadas pelos setores anti-indígenas como ações ilegais e ilegítimas, como “invasões”. Na verdade, elas são a principal forma de ação política desenvolvida contemporaneamente pelos tupinambás. São condição essencial para a construção, pelos indígenas, de projetos de vida autônoma. Retomando fazendas, eles tornaram-se capazes de deixar as posições de subordinação que ocupavam na sociedade regional (inclusive desempenhando trabalho escravo, em alguns casos) e de voltar a se dedicar às atividades que desenvolviam tradicionalmente, como agricultura em pequena escala, criação de animais, caça, pesca e coleta. Entendo que tal processo permite, ainda, a manutenção e o fortalecimento de sua identidade e de seus laços sociais e territoriais.

 

 

As causas da grande mobilização indígena

 

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Marcelo Degrazia em artigo publicado no sítio Outras Palavras, 05-10-2013 comenta quais são os projetos de mineradoras, madeireiras e ruralistas que avançam sobre os territórios e direitos dos índios e como tramitam em silêncio, no Congresso Nacional.

Eis o artigo.

A Mobilização Nacional Indígena, deflagrada ao longo desta semana, é uma luta pela defesa dos direitos indígenas adquiridos e para barrar uma avalanche devastadora, liderada pela Frente Parlamentar do Agronegócio. A luta é pela terra, sua posse e uso. A convocação foi da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e envolve organizações indígenas e indigenistas de diversas partes do país, agora articuladas e em luta.

A linha do tempo vai até as caravelas de Cabral, mas vamos tomá-la a partir deste ano, para compreender melhor o contexto atual. Em 16 de abril, cerca de 300 índios ocuparam o plenário da Câmara, em protesto contra a instalação de Comissão Especial para analisar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que torna praticamente impossível a demarcação das terras indígenas, ao tirar esta prerrogativa da Fundação Nacional do Índio (Funai) e transferi-la ao Congresso Nacional.

Na ocasião o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), prometeu não instalar a comissão antes do final de agosto. A Casa criou então um grupo de trabalho para discutir a condição dos índios no Brasil, cujo relatório seria um subsídio importante para a decisão de constituir ou não a comissão. Integraram o grupo lideranças indígenas, deputados ruralistas e parlamentares que defendem os direitos dos índios. Segundo Lincoln Portela (PR-MG), mediador do grupo, “basicamente aprovamos a rejeição da PEC 215.” A rejeição, concluindo pela inconstitucionalidade do projeto, foi por unanimidade dos presentes, já que nenhum parlamentar da frente do agronegócio compareceu às reuniões.

Na noite de 10 de setembro, contrariando o parecer do grupo de trabalho criado por ele mesmo, Henrique Eduardo Alves instituiu a Comissão Especial para analisar a PEC 215. Alves estaria atendendo compromisso assumido com a bancada ruralista durante sua campanha para a presidência da Câmara. Muitos dos 27 deputados indicados então para a Comissão Especial integram a frente do agronegócio e são autores de projetos que suprimem direitos dos índios, como veremos.

Nessa semana da Mobilização, Alves pretendia instalar a Comissão Especial, com a indicação do relator e do presidente – mas teve de recuar diante das manifestações.

A PEC 215, de 2000, é de autoria do ex-deputado Almir Sá (PRB-RR), atualmente presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Roraima. Ela estabelece a competência exclusiva do Congresso Nacional para aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e ratificar as demarcações já homologadas – hoje atribuições exclusivas do Executivo, que as executa por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai). Na avaliação de organizações indígenas e indigenistas, na prática significará o fim de novas demarcações.

O risco não seria apenas para o futuro, mas também para hoje, pois das 1.046 terras já demarcadas apenas 363 estão regularizadas. As demais, ainda em processo por vários fatores, ficariam com sua homologação na dependência do Congresso. “Como contamos nos dedos quantos congressistas defendem a causa indígena, com certeza nenhuma terra será demarcada”, considera Ceiça Pitaguary, líder do movimento indígena do Ceará.

“A PEC é flagrantemente inconstitucional”, afirmou Dalmo Dallari, professor de direito da Universidade de São Paulo, ao Instituto Socioambiental (ISA): ela não respeita a separação dos poderes. As demarcações e homologações são atribuições do Executivo, procedimentos de natureza administrativa; ao Legislativo compete legislar e fiscalizar. Para alguns antropólogos, o direito à ocupação dessas terras é originário, e está assegurado na Constituição – as demarcações são apenas reconhecimento desse direito pré-existente.

A opinião de Carlos Frederico Maré, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná vai na mesma direção. Ex-presidente da Funai, ele sustenta que a demarcação é um procedimento eminentemente técnico. Em entrevista ao ISA, disse que “a Constituição não deu direito à demarcação. Deu direito à terra. A demarcação é só o jeito de dizer qual é a terra. Quando se coloca todo o direito sobre a demarcação retira-se o direito à terra, porque então ele só existirá se houver demarcação. É isso que está escrito na PEC: que não há mais direitos originários sobre a terra. Muda-se a Constituição, eliminando-se um direito nela inscrito.”

O Projeto de Lei (PL) 1.610, de 1996, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas. Foi apresentado a pretexto de defender o “interesse nacional” (a ser explorado pela iniciativa privada, conforme o Código de Mineração). Se aprovado, irá se converter em lei complementar ao artigo 231 (Capítulo VIII) da Constituição. O senador pediu regime de urgência. Quer votar, portanto, sem muita discussão, e a matéria só não foi submetida à apreciação da Casa devido à mobilização em torno do tema. Na prática, talvez seja tão ou ainda mais danosa que a PEC 215. E não seria de duvidar que esta estaria sendo o boi de piranha, já que o governo mostrou-se receptivo ao PL 1.610.

Já o PL 227, de 2012, retrata cruamente um dos aspectos centrais do chamado “sequestro da democracia” pelas instituições que deveriam expressá-la. Foi proposto pelo deputado Homero Pereira (PSD-MT), ex-presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio, a princípio com redação que visava dificultar as futuras demarcações de terras indígenas. Fazia-o diluindo atribuições da Funai e incluindo, entre as comissões encarregadas de definir novos territórios, os proprietários de terra. Já em sua origem era, portanto, anti-indígena.

Mas tornou-se muito pior, ao tramitar pela comissão de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural da Câmara. Sem que tenha havido debate algum com a sociedade, os deputados que integram a comissão transformaram inteiramente sua redação. Converteram-no num projeto de lei que, se aprovado, revogará na prática, pela porta dos fundos, o Artigo 231 da Constituição.

Tal dispositivo trata dos direitos indígenas. Reconhece “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Estabelece uma única exceção: em situações extremas, em que houvesse “relevante interesse público da União”a exclusividade dos indígenas seria flexibilizada e seus territórios poderiam conviver com outros tipos de uso. Esta possibilidade, rara, precisaria ser definida em lei complementar.

Na redação inteiramente nova que assumiu, o PL 227/2012 é transformado nesta lei complementar. E estabelece, já em seu artigo 1º, um vastíssimo leque de atividades que poderão ser praticadas nas terras indígenas. Estão incluídas mineração, construção de hidrelétricas, rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, oleodutos, gasodutos, campos de treinamento militar e muitos outros.

Um inciso (o VIII), de redação obscura, procura ampliar ainda mais as possibilidades de violação dos territórios índios. Estabelece que é também “de relevante interesse público da União” a “legítima ocupação, domínio e posse de terras privadas em 5 de outubro de 1988”. Embora pouco claro, o texto dá margem a uma interpretação radical. A data mencionada é a da entrada em vigor da Constituição – quando foram reconhecidos os atuais direitos indígenas. Estariam legitimados, portanto, os “domínios e posses de terras privadas” existentes antes da Carta atual. Em outras palavras, a legislação recuaria no tempo, para anular na prática as demarcações que reconheceram território indígena e afastaram deles os ocupantes ilegítimos.

A PEC 237, de 2013, é de iniciativa do deputado Nelson Padovani (PSC-PR), titular do PSC na Comissão Especial da PEC 215, integrante da comissão do PL 1.610 e um dos signatários do pedido de criação da CPI da Funai, uma das estratégias da Frente para enfraquecer o órgão federal, já penalizado por redução de verbas. Essa PEC, se aprovada, tornará possível a posse indireta de terras indígenas a produtores rurais na forma de concessão. Será a porta de entrada do agronegócio aos territórios demarcados, e essa possibilidade tem tirado o sono de indígenas e indigenistas.

A portaria 303, de iniciativa da Advocacia Geral da União (AGU) em 16/07/2012, é outro dispositivo que tolhe direitos indígenas, com tom autoritário, em especial no inciso V do art. 1º, em que o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional (!), à instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, à expansão estratégica da malha viária, à exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e ao resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), projetos esses que serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai (grifo nosso).

É a pavimentação para o avanço econômico do capitalismo sem fronteiras, além de contrariar a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), de 1989, assinada pelo Brasil, a qual assegura o direito de os povos indígenas serem consultados, de forma livre e informada, antes de serem tomadas decisões que possam afetar seus bens ou direitos.

Todas essas iniciativas legais têm por objetivo possibilitar o avanço do agronegócio e da exploração de lavras minerais sobre as terras indígenas. Assim se permitiria inclusive a intrusão em territórios de nações não contatadas. Basta um simples olhar na autoria dos projetos, na trajetória negocial de seus autores e apoiadores, em suas relações comerciais com o agronegócio nacional e estrangeiro e na sua atuação articulada através de uma Frente Parlamentar para se ter certeza de que o interesse econômico é privado, setorista e excludente, em nada aparentado ao interesse nacional, do bem comum ou da União. Se há diversificação de interesses nos projetos, é na razão direta da fome, mas de lucros, do agronegócio, da bancada ruralista, das mineradoras, das madeireiras e empreiteiras.