Globalização: As voltas que o capitalismo dá

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Povos Originário Conservação

Em amarelo, área de agropecuária. Em verde, área de floresta. Os polígonos desenhados mostram as áreas que são terras indígenas (roxo) e unidades de conservação (verde). Imagem: MapBiomas/Reprodução

https://infoamazonia.org/2024/06/24/as-voltas-que-o-capitalismo-da/

Carolina Dantas

24 junho 2024

[NOTA DO WEBSITE: Aqui nos mostra como esta visão supremacista branca de que os povos originários são ‘primitivos’, está completamente equivocada. Neste afã do ‘desenvolvimentismo’ onde devemos sacar até a última gota do que a natureza têm, demonstra como o que se considera bem estar e ‘progresso’, precisa ser revisto. Será que a sociedade ‘moderna’, onde também estamos, com toda sua espoliação de tudo e de todos, está realmente trazendo esta proposta fictícia? É o que temos visto nos chamados países desenvolvidos? Ou esta louca obsessão por ‘ter’ acabou levando estas sociedades a situações de degradação, de egocentrismo, de tristeza, ansiedade, exclusões de todas as formas e que o ‘paraíso terrestre’ não foi ‘alcançado’? Será que não chegou o tempo de revermos nossas crenças sobre as crenças? Quando retomaremos uma relação de sacralidade como os povos primitivos demonstram ter pela Vida, e que não passa só pela materialidade?].

Os indígenas protegem a floresta há milênios e nunca tiveram o trabalho valorizado financeiramente. Agora, com o mercado de carbono, são cooptados por empresas para fechar projetos que ferem os seus próprios direitos.

Vamos começar esta coluna com um breve exercício. Acesse a Plataforma MapBiomas. Na aba à esquerda da tela, na parte de Cobertura, escolha: Recorte Territorial – Estado – Rondônia. Se tudo der certo, um mapa do estado irá aparecer à direita com uma boa parte da área em amarelo e uma boa parte em verde. Pequenos pontinhos em vermelho também estão presentes, mas eles são a menor parte do mapa. 

Tudo o que está em amarelo é área de agropecuária no estado de Rondônia. Tudo o que está em verde é floresta. Os poucos pontinhos em vermelho são as áreas urbanas. No mapa acima, os polígonos desenhados sobrepostos representam duas coisas: em roxo, as Terras Indígenas (TIs) e, em verde, as Unidades de Conservação (UCs). 

Olhe atentamente ao mapa. Você consegue ver que as áreas de floresta do estado de Rondônia coincidem exatamente com as áreas protegidas de TIs e UCs? Tudo o que sobrou de floresta é uma terra indígena ou uma unidade de conservação. Eu prestei atenção a isso pela primeira vez lá por 2016, quando comecei a mexer no MapBiomas. Desde então, é cada vez mais clara para mim a relação entre a demarcação de TIs e a proteção da floresta.

Os povos indígenas da Amazônia existem há milhares de anos. Em março de 2023, o jornalista Fábio Zuker fez uma belíssima entrevista com o Eduardo Goés Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP). Na conversa, o arqueólogo detalha as evidências milenares da existência dos povos indígenas. A parte mais interessante e importante é a comparação entre o modo de vida tradicional dessas populações com o modo contemporâneo de exploração da floresta. 

Enquanto os indígenas viviam e ainda vivem em sintonia com a Amazônia, ampliando a biodiversidade e fortalecendo a floresta, o sistema financeiro atual luta por reduzir o espaço tradicional em nome de uma produção massiva agropecuária que destrói o ecossistema.

O argumento daqueles que defendem a redução das Terras Indígenas e Unidades de Conservação é o “desenvolvimento”. Para mim, dá pra simplificar: grana. 

Não vou dizer que grana não é importante. É, sim. O capitalismo dá um duplo twist carpado quando o aquecimento global passa a ser uma emergência. E, assim, surge o mercado de carbono, uma forma de pagar para quem consegue reduzir as emissões de gases do efeito estufa.

A teoria é perfeita. Na Amazônia, o chamado REDD+ é um modelo de geração de crédito de carbono que busca reduzir as emissões de gases do efeito estufa por meio do desmatamento evitado. As empresas participantes projetam o desmatamento para os próximos 30 a 50 anos e desenvolvem estratégias para evitá-lo. Para cada tonelada de carbono evitada, é concedido um crédito, cujo preço varia entre 5 e 15 dólares.

Seria ótimo se as empresas interessadas no mercado de carbono buscassem áreas que realmente precisam de projetos para redução de gases do efeito estufa, como aquelas em amarelo no mapa. Seria, sim. Mas o que temos visto na Amazônia é uma tentativa atrás da outra de negociar com povos indígenas

Vale ressaltar que não vejo problema em ajudar na preservação dos territórios indígenas. Como eu disse, dinheiro é importante. Os indígenas protegem a floresta sozinhos há milênios, e nada mais justo do que receberem incentivo e ajuda para continuar. O que me deixa transtornada de raiva é que, mais uma vez, como uma versão moderna da história da invasão das terras indígenas, há uma tentativa de lucrar em cima dos povos.  

InfoAmazonia, a Mongabay, a Folha de S.Paulo e outros tantos meios de comunicação parceiros publicaram no último ano sobre o mercado de carbono e as tentativas de exploração dos recursos sem respeito aos direitos dos povos indígenas. 

Crianças Kayapó brincando na aldeia Pykararakre, em agosto de 2023. Comunidade realizou oficina sobre o tema do mercado de carbono no ano passado. Foto: Ianca Moreira/InfoAmazonia Credit: Ianca Moreira / InfoAmazonia Credit: Ianca Moreira / InfoAmazonia

O repórter Fábio Bispo mostra, em uma de suas investigações, que indígenas foram convencidos a assinar papéis em branco em uma das tentativas de contrato para crédito de carbono. Na Terra Indígena Alto Rio Guamá, o acordo para o projeto com a Carbonext ocorreu em reuniões em que os indígenas alegam não saber exatamente o que estava sendo assinado. Alguns sequer falavam português, e tiveram dificuldades para entender o que era falado ou o que constava nos documentos. 

No início de junho, a repórter Jullie Pereira, em parceria com Bispo, mostrou um edital do governo do Amazonas que concedeu Unidades de Conservação para projetos de crédito de carbono. O documento ignora as áreas sobrepostas a Terras Indígenas, sem consultar previamente os moradores das comunidades, como exige a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT-169). 

Em outra reportagem, a jornalista Fernanda Wenzel apresenta uma análise de dois projetos de créditos de carbono na Amazônia brasileira, concluindo que eles podem estar ligados à lavagem de madeira ilegal. Os projetos pertencem a Ricardo Stoppe Jr., conhecido como o maior vendedor individual de créditos de carbono do Brasil, que faturou milhões de dólares negociando esses créditos com empresas como Gol, Nestlé, Toshiba, Spotify, Boeing e PwC.

Assim, como um duplo twist carpado, passou a valer a pena preservar a floresta. Mas eu pergunto a você, querido leitor da InfoAmazonia: é justo que grande parte do dinheiro dos acordos fique com empresas e não com os povos da floresta? São eles que preservam o meio ambiente desde sempre, com ou sem crédito de carbono. É justo uma empresa qualquer chegar, entrar em um território, fazer um acordo sem ouvir toda a comunidade e ganhar milhões de dólares com o trabalho de proteção de povos tradicionais na Amazônia?

É necessário voltar ao motivo inicial da criação do mercado de carbono: a redução dos gases do efeito estufa. Uma empresa que busca um acordo com povos tradicionais que já preservam a floresta está, de fato, criando um projeto para reduzir emissões? Qual é o trabalho dela, sendo que a área já é protegida pelos povos indígenas e, em maior instância, pela União, que fez a demarcação da área?

regulamentação do mercado de carbono em Terras Indígenas no Brasil é urgente, justamente para garantir o objetivo principal do negócio: pagar para quem realmente protege a floresta e, assim, reduzir as emissões de gases. Sem maracutaia. Sem acordo no escuro. Os projetos precisam ser pensados com uma consulta prévia aos povos e sob a perspectiva de uma real parceria entre empresas e indígenas para ajudar na preservação da Amazônia. 

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