Obra do artista indígena Jaider Esbell, no viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte. Foto: Maurício Vieira/Hoje em Dia
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05/07/2024
[NOTA DO WEBSITE: Temos que sair desta monocultura intelectual eurocêntrica e ocidental. Que sejamos inteligentes e nos associemos à nossa maravilhosa diversidade cultural, de inteligências e do mundo fático que recebemos de ‘presente’ nos dias de hoje, porque diferente de outras nações das Américas, não tivemos ‘tempo’ de exterminarmos, como elas fizeram, todas as etnias que sempre viveram nas três Américas. Que sejamos humanos suficiente e o humildes o bastante, para abrirmos nossos corações e mentes para estas outras visões de mundo e de integração com as manifestações da natureza. E então aprendamos, todos os eurodescendentes e de outros ancestrais imigrantes e colonizadores, o que estas outras ‘faces’ da humanidade planetária têm para nos ensinar. Que sejamos mais acolhedores e não tão excludentes com aqueles que não tiveram todas as chances que recebemos da exploração autoritária de nosso país, praticada pelos nossos ancestrais. Com certeza, todos teremos muito a aprender para transformarmos esta trágica situação que vive a maioria de nossos conterrâneos, muitos já ultrapassando os limites mínimos de dignidade humana].
Escuta? São os gritos de socorro das cidades. A catástrofe no Rio Grande do Sul, deixando rastros de lama e mortes, é o mais recente deles no Brasil. Afinal, são tempos de eventos climáticos extremos – de grandes inundações e secas a ondas de calor extremo – nas cidades. E o preço da inação é mais alto que o boleto enviado ao poder público por consultorias estrangeiras e grandes empreiteiras para a reconstrução de cidades.
Neste ano pré-COP, os olhos do mundo estão voltados para a Amazônia – e outros biomas ameaçados. Com justiça, evidentemente. Os ativismos, principalmente os indígenas, lançam-se em defesa da “floresta em pé”, numa batalha corajosa contra o agronegócio, as mineradoras e as petroleiras. A questão urbana diante da crise climática, no entanto, é uma pauta a se batalhar por mais espaço – afinal, segundo a ONU Habitat, as cidades ocupam 2% da superfície da Terra, mas consomem 78% da produção de energia e produzem mais de 60% das emissões de gases de efeito estufa.
No Brasil, elas representam menos de 1% do território nacional (0,63%) e concentram 160 milhões de pessoas, ou seja, 84,3% da população; quase um terço dela em metrópoles. O modelo de assentamento, quase sempre, é o de “fortaleza de concreto, aço e asfalto” que assassinou, no último século, biomas inteiros, rios, lagos e lençóis freáticos; devastou a biodiversidade que resistia no espaço urbano; e expulsou milhões para as periferias, muitas delas erigidas em áreas de risco.
Os furos no muro das cidades-fortalezas são visíveis e, cada vez mais, grotescos, sustenta o filósofo Aílton Krenak, primeiro indígena eleito para a Academia Brasileira de Letras. “O corpo da Terra não aguenta mais cidades”, diz em seu O Futuro Ancestral, “pelo menos não essas que se configuram como uma continuidade das pólis do mundo antigo, com gente protegida por muros, e o resto do lado de fora – que pode, inclusive, tanto ser bichos selvagens quanto indígenas, quilombolas, ribeirinhos, beiradeiros”. Não trata-se de um sentimento anti-urbano infantilóide nem de uma visão ecológica romantizada de “volta ao passado”: Krenak busca escancarar a potência destrutiva do capitalismo, o aceleracionismo da vida nas cidades grandes e o modelo colonial que forjou o Brasil urbano num contexto em que os velhos paradigmas ocidentais mostram-se insuficientes para a formulação de políticas públicas que possam mitigar a crise socioambiental em curso.
Apesar da propaganda negacionista da ultradireita, a população brasileira parece dar-se conta do abismo a que o indígena se refere, se nada mudar. A mais recente pesquisa do Datafolha mostra que 97% dela percebe no dia a dia que o planeta enfrenta uma crise climática. Um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em parceria com a Universidade de Oxford, aponta que 76% da população brasileira está preocupada com os efeitos desta crise sobre a próxima geração. Afinal, é difícil fechar os olhos ao fato de que mais de 2,2 milhões de moradias no Brasil foram danificadas ou destruídas por tempestades e inundações nos últimos 10 anos. E 708 mil pessoas tiveram de abandonar suas casas – boa parte em áreas inadequadas à moradia – em 2022, como mostra a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). São os “desterrados climáticos”.
No entanto, quatro em cada dez brasileiros afirmam que o governos federal, as gestões estaduais, as prefeituras, a sociedade e as grandes empresas do país nada fazem para mitigar os impactos – com razão, pois mais de 90% dos municípios brasileiros não têm estratégias suficientes contra enchentes e deslizamentos, mostra uma pesquisa realizada pelo Instituto Cidades Sustentáveis.
Não faltam planos nem leis “avançadíssimos” para lidar com esta crise urbana, é o que sempre insiste a urbanista Ermínia Maricato. Virão muitos outros agora – necessários, claro, para nossa incompleta democracia liberal. Porém, em quais bases eles serão erigidos? A resposta não demanda grande esforço: a economia capitalista, estúpido! Outra questão, no entanto, pode ser mais complexa: para o campo progressista, quais os pilares que deveriam reorientar o planejamento urbano? A resposta rápida seria direcioná-lo para a redução das desigualdades a partir da justiça socioclimática. Ponto! Mas e se outras cosmovisões de mundo pudessem – e muito – contribuir para isso?
Afinal, a promessa da cidade moderna, forjada na Idade Média, era de transcender as trocas mercantis, tornando-se um lugar privilegiado de novas sociabilidades e sensibilidades – uma plataforma de igualdades! Ela não se cumpriu. Por isso, aqui proponho um exercício. Em vez de elucubrar ações concretas emergenciais ou mesmo de longo prazo, nos debruçarmos sobre estas outras cosmovisões de cidade, a partir de duas delas: a indígena e a quilombola, teorizadas respectivamente por Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, falecido ano passado; e o já citado Krenak. Mesmo de forma tímida e localizada, o pensamento destes autores começa a ganhar algum relevo na mídia, na Academia e na gestão pública, alavancado pela crise climática. E mostra a necessidade urgente do planejamento urbano brasileiro encarar as alteridades humanas e não-humanas – em “um inexorável esforço analítico para entender, com o intuito de superar, a lógica da colonialidade por trás da retórica da modernidade, a estrutura de administração e controle surgida a partir da transformação da economia do Atlântico”, como sugeriu o pensador argentino Walter Mignolo. E, assim, procurar dentro do território nacional insumos teóricos para romper com as “ideias fora do lugar”: a inadequação de certas referências intelectuais e culturais na compreensão do Brasil, geralmente made in Europa e Estados Unidos.
Vamos a elas.
Antolhos urbanóides?
Nêgo Bispo é incômodo. Viveu cinco anos na “cidade grande” e relatou vividamente os absurdos que viu na urbanidade ocidental, revelando-se nas miudezas da vida cotidiana. Para começar, certa cisão entre necessidade e capacidade. Até mesmo as tecnologias elementares para o viver são transformadas em mercadoria: “as pessoas não sabiam fazer suas próprias casas, como sabíamos fazer no lugar de onde viemos!”, escreveu em A terra dá, a terra quer. Depois, uma arquitetura irracional, segundo ele, sem a centralidade da cozinha e do quintal, tão elementares nos quilombos: “pensamos na comida e na festa, nas formas compartilhadas de vida”. E a grande quantidade de restaurantes e hotéis que, de acordo com o quilombola, revelava a falácia da hospitalidade: “eles têm medo de gente”. Também intrigou-se com a vida supostamente asséptica da cidade: vindo de uma casa onde “galinhas e os outros animais conviviam conosco dentro de casa”, não compreendeu a necessidade de um chão de cerâmica cuja serventia era “enxergar qualquer outra vida, qualquer outro vivente que estiver ali, para poder desinfetar e matar qualquer microrganismo. Matar até o que não se vê”. E com o conceito de resíduos sólidos. “Não conhecíamos a palavra lixo”, relembrou: o que apodrecia no quilombo onde ele cresceu alimentava o solo da mata “para gerar outras vidas”.
Cito esta espécie de antropologia do sujeito urbanóide de Nêgo Bispo como exemplo de que ideias aparentemente monolíticas para o estilo de vida metropolitano podem ser pitorescas se tomadas a partir de outras cosmovisões, ao revelar como as cidades tomaram o termo natureza como uma totalidade que é externa ao ser humano – uma oposição à cultura.
Krenak aponta que esta cisão entre natureza e cultura como um dos cernes da crise civilizatória, cujo exemplo mais gritante está na relação das cidades com os rios. Se desde cedo aprendemos nas salas de aula que as antigas civilizações cresceram no delta de rios – como o Nilo, no Egito –, analisa ele, esta mesma “civilização” espalhou-se de forma inconsequente sobre as sinuosidades das águas, retificando-as sob avenidas no planejamento urbano: “Os rios foram asfixiados nas cidades” e os solos, impermeabilizados. Catástrofes como a do Rio Grande do Sul escancarariam este descaso histórico, que agora cobra seu preço.
Será possível criar ambientes permeáveis, onde podemos nos sentir pertencendo aos espaços, em vez de sobre os espaços, em cima deles? Esta é uma das questões suscitadas por Krenak e Nêgo Bispo, o que exige repensar o que é uma cidade.
Cidades cosmofóbicas
A Chapeuzinho Vermelho atravessa a floresta para levar doces para a vovozinha e, no intercurso, é ameaça pela vida selvagem (no caso, o lobo mau). Esta célebre parábola infantil, diz Krenak, resumiria a cidade ocidental: uma tentativa de ser o oposto do que ela mesma delimitou como floresta/mata, vista como a barbárie/primitivo e perigosa para uma criança embrenhar-se – e que, ao longo dos séculos, como uma plataforma necessária ao capitalismo, foi se instituindo como o destino inescapável da humanidade. Deve ser por isso que o Ocidente fica chocado com a “promiscuidade da urbanidade indiana” com animais e pessoas compartilhando as ruas, as casas e as águas do rio Ganges, ironiza o pensador indígena, “como se existisse apenas um jeito de viver – o modelo ocidental”.
O filósofo chinês Yuk Hui tem uma anedota que ilustra bem isso. Foi tirada do diário de viagem de um escritor francês. Conta ele que ao chegar numa cidade do Equador, uma mulher de Manaus que participava da incursão pela região amazônica entrou num parque urbano e exclamou: “ah, finalmente a natureza” – após ter atravessado de canoa o rio Amazonas por dias a fio! A natureza, portanto, era para ela o que a modernidade ocidental colocou numa moldura, delimitando fronteiras e apartando-a da civilização…
Afinal, a “cidade [eurocêntrica] é o contrário de mata. […] um território arquitetado exclusivamente para os humanos”, sublinha Nêgo Bispo. Ela, portanto, seria a expressão máxima do humanismo – conceito tomado sem a positividade filosófica renascentista do “homem no centro do mundo”. A urbe é humanista para Nêgo Bispo pois é uma construção artificial do humano desconectada do reino animal do qual faz parte, excluindo todas as outras formas de vida possíveis – e, portanto, cosmofóbica. Esse seria o “pecado original” da concepção urbanística do Ocidente: apartar-se de forma sistemática da natureza, reduzida a fonte de matérias-primas, em nome da expropriação, da acumulação de riquezas e da extração desnecessária à reprodução da vida. “A cidade é um território colonialista”, sublinha o pensador quilombola.
A Roma Antiga seria um grande símbolo disso. Quando césares expandiam fronteiras para construir um grandioso império, a capital era chamada de “cidade eterna”. Era a crença de que ela resistiria a qualquer ascensão ou colapso de civilizações – ou seja, as urbes representariam a busca ocidental pela imortalidade terrena. “É muito bonito esse título”, analisa Krenak. “Mas o que será que se esconde por trás dele? Não será justamente esse desejo insistente dos humanos de quererem se perpetuar no planeta?”.
Refloresta
Esta concepção de cidades eternas soa anômala a povos originários, claro, em que a efemeridade forja outras concepções de tempo e espaço. Com o colonialismo, impôs-se esta por esta banda do Atlântico uma racionalidade que propunha-se universal – uma violenta tentativa de unicidade de cosmovisão.
No entanto, esta cosmofobia não tem cura, diagnostica Nêgo Bispo sem hesitar. Ela entranhou-se de forma inescapável no mundo. Mas há formas de imunização, diz. Uma delas seria abraçar o politeísmo, que desafiaria aquilo que Mignolo apontou como uma “hierarquia espiritual/religiosa que privilegiava espiritualidades cristãs em detrimento de espiritualidades não cristãs/não ocidentais” com a “globalização da Igreja Cristã (católica e depois protestante)”.
Abraçar outros deuses seria uma rebelião do ponto de vista epistemológico. O sentido deste politeísmo, é bom destacar, não seria estritamente religioso, mas cosmológico, pois em muitas culturas ancestrais o mundo é habitado por sujeitos, humanos e não humanos, que o vivenciam de forma singular. “O que acontece na modernidade ocidental é que o homem se considera como um ser de exceção”, apontou o antropólogo Eduardo Viveiro de Castro, em entrevista à Pública. “Ele é um animal, mas ele tem alguma coisa que os animais não têm. Antigamente chamava de alma, agora é cultura, ciência, tecnologia… […] Já os povos tradicionais, porque a história os conduziu a outra direção, não se veem acima das demais criaturas. Eles podem achar que os homens são mais inteligentes do que os jacarés, mas eles não acham que essa diferença é uma diferença de grau, não é uma diferença de natureza”.
“Nós somos os diversais, os cosmológicos, os naturais, os orgânicos. Nós pensamos sempre na circularidade, quebrando o monoísmo, a dualidade e o binarismo”, aponta Nêgo Bispo – e assumir isso seria o começo do que ele chama de contracolonialidade: se o colonialismo é cada vez mais sofisticado, diz, seria hora de se inspirar nos povos que lutam para não se subordinarem a esta lógica. E, ao invés do desenvolvimento, apostar no envolvimento: com a terra,“os animais, nossos corpos, nossas roças, formas de comer, de construir casas e, sobretudo, de falar e pensar”.
Nesta mesma direção, Krenak sugere que a cidade pode ser espaço para imaginar outras formas de habitar a Terra fora da política vigente, a partir de “alianças afetivas”: em vez de reclamar a igualdade, seria preciso reconhecer “uma intrínseca alteridade em cada pessoa, em cada ser”. Isso “introduz uma desigualdade radical diante da qual a gente se obriga a uma pausa antes de entrar: tem que tirar as sandálias, não se pode entrar calcado” – ou seja: certa humildade (ou abertura, se preferirmos) para abrir-se ao outro e construir os “afetos entre mundos não iguais”. A grande tarefa seria reflorestar o imaginário coletivo e, assim, quem sabe, “a gente consiga se reaproximar de uma poética de urbanidade que devolva a potência da vida, em vez de ficarmos repetindo os gregos e os romanos”.
Isto é uma baita tarefa diante de tempo tão tenebrosos quanto sinistros. Realista?
Bem-estar ou bem-viver?
Moysés Pinto Neto pontuou em artigo publicado pelo Outras Palavras que o modelo clássico de bem-estar social – que nunca desembarcou totalmente por aqui e sempre está emparedado pela lógica neoliberal – tão almejado pelo governo Lula, pode ser inviável ante os desafios que o Brasil enfrenta. Um plano de “transição verde”, ou mesmo uma versão do Green New Deal estadunidense, é colocado sobre a mesa, com propostas ainda incipientes. Porém, continua ele, “o colapso climático coloca para a esquerda a possibilidade de reintroduzir questões radicais para as pessoas: como queremos viver?”. Uma tensão, mais que semântica, parece emergir: o bem-estar social ou o bem-viver?
160 milhões de brasileiros não podem viver, hoje, da mesma forma de aldeias amazônicas, claro. Isso até o Viveiros de Castro reconhece, por exemplo. Mas indígenas e quilombolas têm outra relação com isso que chamamos de realidade. “Essas populações se veem como parte de um universo no qual elas estão no mesmo nível que os demais seres. Não quer dizer que eles preferem ser outros seres. Eles só se percebem como no mesmo nível, como sujeitos às mesmas condições metafísicas de existência, digamos assim”, diz Viveiros de Castro.
O governo Lula retoma, agora, os ciclos de diálogos em municípios e estados que culminará na Conferência Nacional das Cidades, prevista para novembro, onde serão construídas as bases do Programa Nacional de Desenvolvimento Urbano. A pauta climática será, indubitavelmente, central. E as eleições municipais convida as esquerdas a pensar ações a partir da escala local e da democracia participativa. O momento é oportuno para as provocações de Krenak e Nêgo Bispo.
Bibliografia:
ARMANI, Carlos Henrique. A história intelectual e a virada ontológica na antropologia. In História Debates e Tendências, v.20; n.1. Passo Fundo, 2020.
BISPO, Antônio dos Santos. A terra dá, a terra quer/Antônio Bispo dos Santos; imagens de SantídioPereira. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023. 112 p.
KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. Conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Ed. UNESP, 1998.
MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Tradução . Petrópolis: Vozes, 2013. . . Acesso em: 09 jun. 2024.
MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 32, n. 94, jun. 2017.