Agronegócio: Como o rentismo e ele estão se unindo

Arte: O Joio e o Trigo

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Vinicius Konchinski

04/03/2024

[NOTA DO WEBSITE: Essa nova visão da realidade dos alimentos, da produção agrícola e do rentismo internacional, mostra que o provoca não só a devastação ambiental, mas vai extrapolando a atingir níveis sociais e até a ações no poder político nas nações. É uma nova e assustadora faceta do mundo agrícola que está cada vez mais sendo envolvida e se imiscuindo com as corporações, das imensas manipuladoras de alimentos até os fundos geradores e administradoras de capital internacional às corporações petroagroquímicas. E todas essas esferas são monopolistas e vão engolfando todas as áreas de sobrevivência da humanidade global].

Aplicações privadas de apoio à ruralistas já somam quase R$ 1 tri, por meio de mecanismos que, abastecidos por megafundos, se limitam a beneficiar grandes produtores. Efeitos: mais concentração de terras e remessas de lucros para fora do país.

Investir no agronegócio brasileiro já não significa necessariamente comprar terras, sementes ou cabeças de gado. Atualmente, pode ser aplicar parte de uma poupança em títulos financeiros e colher rendimentos algum tempo depois.

O agro também é financeiro. E essa financeirização vem crescendo, apoiada no aumento do interesse de investidores da cidade nos ganhos do setor e na vontade de agropecuaristas de ampliar cada vez mais seus negócios.

De acordo com o Ministério da Agricultura, o patrimônio total de instrumentos financeiros privados voltados ao apoio ao agro mais que dobrou em dois anos. No final de 2021, eles somavam R$ 383 bilhões. Ao final de 2023, já eram R$ 953 bilhões. O valor é quase três vezes o montante de financiamento prometido no Plano Safra 2023/2024, principal fonte de apoio do governo ao agronegócio.

O estoque de investimento financeiro privado no agro inclui cédulas de produto rural (CPRs), letras de crédito do agronegócio (LCAs), certificado de direitos creditórios do agronegócio (CDCAs), certificado de recebíveis do agronegócio (CRA) e o saldo dos Fundo de Investimento em Cadeias Agroindustriais (Fiagros).

Todos esses instrumentos nasceram, em tese, para reduzir a dependência do agronegócio do financiamento público. Segundo especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, não alcançaram completamente seu objetivo. Além disso, agravaram problemas já existentes na forma de produção do agronegócio e ainda criaram novos.

“Os instrumentos financeiros que não resolvem o problema da oferta de crédito e ainda têm um impacto brutal na estrutura agrária”, resumiu Gerson Teixeira, engenheiro agrônomo e diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).

Teixeira alertou, principalmente, sobre os efeitos dos Fiagros no campo. Esse tipo de fundo pode, entre outras coisas, usar dinheiro de investidores para comprar terras no Brasil. Esses territórios podem ser arrendados, e o valor recebido serve para remunerar os investidores do fundo.

Teixeira falou que, por meio de Fiagro, estrangeiros podem driblar restrições legais e adquirir terras no Brasil. “Um estrangeiro pode comprar terras em área de fronteira por meio de um Fiagro, algo que não é permitido fora do fundo”, exemplificou o estudioso. “Há uma flexibilização excessiva da legislação.”

Reforçando problemas

Diego Moreira, da coordenação nacional do setor de produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), reforça as críticas à financeirização do agro no Brasil. Ele lembra que todos os instrumentos surgiram para tornar o setor “independente” do Plano Safra, o que liberaria recursos públicos para apoio a agricultura familiar, na teoria.

Na prática, isso não aconteceu. O agro tem um programa de financiamento cerca de cinco vezes maior do que a agricultura familiar: R$ 364 bilhões do Plano Safra contra R$ 77 bilhões do Plano Safra da Agricultura Familiar.

Moreira reclamou ainda que parte do que deveria chegar aos agricultores familiares não chega. “Dos assentados do MST, 10% acessaram os recursos.”

Vitor Hugo Miro Couto Silva, economista e professor do departamento de Economia Agrícola da Universidade Federal do Ceará (UFC),  comenta: “As alternativas apresentadas no mercado financeiro ainda são muito restritas aos produtores mais engajados no mercado. Estes produtores possuem uma gestão mais profissional e já conseguiam acessar diferentes alternativas para financiamento de suas atividade”, afirmou.

O economista e engenheiro agrônomo José Giacomo Baccarin ainda apontou outros problemas. Segundo ele, o dinheiro que vai ao agro via instrumentos financeiros privados não considera a forma de produção do setor. Quem investe num CRA ou LCA está interessando em quanto receberá de retorno, e não na sustentabilidade no campo ou na contenção do aquecimento global.

“Costumo brincar que a pessoa não tem interesse em saber quantas vezes ordenha-se uma vaca por dia ou que o milho tem pendão (masculino) e espiga (feminina), o que interessa é quanto vai ganhar financeiramente aplicando um empresa da bovinocultura leiteira ou que planta cereais”, disse.

O agro que recebe o dinheiro via mercado financeiro tende a buscar um retorno rápido e imediato, através sobretudo de latifúndios e monocultivo voltado à exportação. “Isso aumenta a concentração da terra; o desemprego no campo, pois não há trabalho para todos numa fazenda de soja; [cresce] a violência contra os camponeses, os indígenas e quilombolas; e a fome no país, pois não há produção de alimentos”, listou Moreira, do MST.

Ele ainda disse que os instrumentos financeiros do agro facilitam a “exportação” do lucro do setor para o exterior, via rendimentos. Com esse dinheiro enviado para fora do país, faltam recursos para investimentos que beneficiariam o próprio agro, como a construção de fábricas de fertilizantes.

“Qual a indústria privada de fertilizantes do país? Não há. O agro prefere importar. Qual a indústria de sementes?”, questionou Moreira.

Instrumentos financeiros do agro:

CPR – é uma cédula de produto rural. Por meio dela, um produtor rural ou cooperativa compromete-se a entregar uma certa quantidade da sua produção em troca de um adiantamento de recursos. É como um empréstimo pago em soja após a colheita;

LCA – a letra de crédito do agronegócio é um título emitido por um banco para levantar recursos para financiamentos agrícolas. Um investidor empresta dinheiro ao banco a uma certa taxa de juros comprando uma LCA. O banco, por sua vez, usa esse recurso para conceder empréstimos para o agronegócio.

CDCA – o certificado de direitos creditórios do agronegócio é um título vinculado a negócios realizados entre produtores rurais. Esse título é negociado no mercado. Assim, um produtor pode vender um título de algo que tenha a receber daqui um ano, por exemplo, para antecipar recursos e financiar sua produção.

CRA – o certificado de recebíveis do agronegócio é um título emitido por uma cooperativa ou empresa do agro. Por meio dele, o emissor promete pagar determinado valor, num determinado prazo, ao comprador do papel. As cooperativas usam CRAs para obter dinheiro no mercado e não precisar recorrer a empréstimos.

Fiagro – Um fundo de investimento em cadeias agroindustriais é uma poupança de vários investidores interessados em lucrar com o agro. Por meio da administração de um gestor do fundo, a poupança é aplicada na compra terras, associa-se a empresas do setor ou mesmo compra CRAs, CPRs ou LCAs.

No caso dos Fiagros voltados à compra de terras, Baccarin afirmou que eles tendem a elevar o preço de propriedades no país. “Se há uma captação crescente de recursos financeiros pelo Fiagro, tende a ocorrer uma inflação dos preços de arrendamentos e de venda da terra”, disse.

Tributação

Alguns investimentos em instrumentos financeiros para apoio do agro, como em LCAs e Fiagros, têm rendimentos isentos de Imposto de Renda.