Fragmentos remanescentes de Mata Atlântica rodeados de áreas desmatadas podem estar à beira do colapso ecológico. Foto: Duda Menegassi
19 de maio de 2023
Pesquisa realizada no sul da Bahia mostra efeito dominó do desmatamento em fragmentos de Mata Atlântica que podem resultar no colapso ecológico.
Ao longo de mais de cinco séculos, a Mata Atlântica foi devassada pela exploração e ocupação humana. O pouco que resta do bioma encontra-se extremamente fragmentado ao longo dos 17 estados que contemplam sua distribuição. A dimensão das consequências da destruição de florestas vai além da “mera” perda de habitat. As florestas remanescentes estão vulneráveis a uma série de consequências que resultam num efeito dominó que pode levar ao colapso do ecossistema e da biodiversidade. Esse é o alerta de um grupo de pesquisadores brasileiros que analisou, a partir de uma série de variáveis, como o desmatamento afeta o equilíbrio ecológico em remanescentes da Mata Atlântica no sul da Bahia.
“Após a perda de espécies, as interações ecológicas podem ser interrompidas e desencadear efeitos em cascata. Em particular, o desaparecimento de certas espécies pode levar à perda dos seus predadores, dispersores ou polinizadores, resultando em profundos desequilíbrios ecossistêmicos – o chamado colapso ecológico”, resumem os pesquisadores em trecho do artigo, publicado nesta quarta-feira (17), na revista científica Biological Conservation.
O estudo é assinado por quinze pesquisadores, liderados pela equipe do Laboratório de Ecologia Aplicada à Conservação da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), na Bahia, dentro do escopo do Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade (SISBIOTA Brasil).
“Após 10 anos de pesquisas ecológicas substanciais, encontramos um cenário atual sombrio – e possivelmente futuro – de fragmentos florestais na altamente biodiversa e ameaçada Mata Atlântica”, alertam no artigo.
Para fazer esse levantamento, os cientistas selecionaram 40 pontos de amostragem em fragmentos florestais de diferentes tamanhos, de 4 a 3.000 hectares, todos no sul da Bahia. Além das coletas, eles compilaram dados de 28 estudos que avaliaram a qualidade do habitat, manutenção da biodiversidade e processos ecológicos na região.
Especialmente para dados de diversidade de espécies, o estudo comparou os efeitos estimados da quantidade de floresta na paisagem sobre a riqueza e abundância de diferentes grupos biológicos: árvores juvenis e adultas, besouros, pássaros, pequenos mamíferos, morcegos insetívoros, morcegos frugívoros e grandes mamíferos.
Um dos impactos notórios do desmatamento e fragmentação é o “efeito de borda”, que trata de como as bordas da floresta estão mais expostas ao clima e à incidência solar e por isso são menos abundantes e biodiversas. Os impactos, entretanto, seguem floresta adentro.
De acordo com a pesquisa, à medida que o desmatamento avança, há uma clara redução da estrutura da vegetação, com árvores mais baixas e finas, um dossel mais aberto, mais quente e com menor produção e qualidade de frutos. Isso impacta diretamente as espécies especialistas, que possuem uma relação intrínseca com a floresta, tanto árvores que precisam de sombra para se desenvolver, como aves e mamíferos, e permite o avanço das populações de espécies generalistas de habitat (aquelas com menores exigências e capazes de viver em ambientes perturbados). Outra consequência é a simplificação nas interações ave-planta.
Beija-flor rabo-branco-rubro (Phaetornis ruber). Uma das consequências do desmatamento é a simplificação das relações ave-planta. Foto: José Carlos Morante-Filho
“Essas alterações no microclima local e regime de luz podem atuar como filtros biológicos para a regeneração, reduzindo o recrutamento [crescimento de novas árvores] e, portanto, a diversidade local (riqueza e abundância) principalmente de espécies arbóreas tolerantes à sombra, de madeiras mais duras. Como resultado, os fragmentos tendem a ser dominados por espécies de árvores intolerantes à sombra e de madeira macia. Essa recomposição de espécies arbóreas explica o encolhimento da estrutura da floresta, a erosão observada nos estoques de carbono acima do solo e a reduzida disponibilidade de recursos”, aponta o artigo.
Os pesquisadores ressaltam que estes resultados mostram como a perda florestal mudou acentuadamente a estrutura, composição e funcionamento dos remanescentes florestais estudados que, atualmente, “são o que resta de floresta na parte norte da Mata Atlântica brasileira”.
O pesquisador da UESC, José Carlos Morante-Filho, um dos autores do estudo, chama atenção para a necessidade de pesquisas de longo prazo de monitoramento, “fundamentais para avaliar de fato como ocorre essa alteração ao longo do tempo”, reforça.
“Tem um mecanismo ecológico chamado débito de extinção que pode dificultar que tenhamos respostas assertivas sobre o que está acontecendo com as espécies em um fragmento florestal. Quando ocorre o desmatamento em parte de remanescente florestal, nem todas as espécies respondem rapidamente a essa perturbação, mas isso não significa que as espécies não vão responder. Algumas espécies podem demorar, por exemplo, anos para apresentar um declínio nas suas populações após um distúrbio. Então, o débito de extinção pode mascarar os efeitos do desmatamento porque algumas espécies vão responder a perturbação apenas no longo prazo”, explica o pesquisador da UESC.
O caminho para impedir o colapso é claro e cristalino: impedir novos desmatamentos e começar a recuperar o que se perdeu.
“A primeira coisa é zerar o desmatamento nessa região. A Bahia é um dos estados que mais desmata (ainda) a Mata Atlântica e os municípios que mais desmatam são esses do sul do estado. Precisamos ter leis federais e estaduais para barrar efetivamente o desmatamento”, destaca José Morante.
De acordo com os últimos dados do Atlas da Mata Atlântica, entre 2020 e 2021 a Bahia foi o segundo estado que mais desmatou o bioma, com uma perda de cerca de 5 mil hectares, um aumento de 54% em relação ao ano anterior.
“A segunda coisa é que nessas paisagens que são severamente desmatadas, é fundamental ter programas de restauração. Essas paisagens precisam ser restauradas para aumentar a cobertura florestal e permitir que as espécies que necessitam de floresta sobrevivam. E por fim, a gente precisa trazer de volta os animais que aqui viviam. Vários animais já foram extintos no sul da Bahia, principalmente os de grande porte e predadores de topo, como onça-pintada e anta. Temos que começar a discutir e executar programas de reintrodução de animais nessa área”, completa.
Duda Menegassi
Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica. Escreve para ((o))eco desde 2012. Autora do livro “Travessias – Uma aventura pelos parques nacionais do Brasil” e roteirista da websérie Pé no Parque.