INDÍGENAS YANOMAMI TESTEMUNHAM A ABERTURA DA ESTRADA PERIMETRAL NORTE, NA DÉCADA DE 1970. FOTO: CARLOS ZACQUINI
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20 novembro 2022
A morte da mãe Yanomami nas ruas de Boa Vista começou por uma estrada rasgada em 1973 pela ditadura militar no Brasil.
Na noite de 11 de novembro, uma mulher Yanomami, mãe de um bebê, foi assassinada na cidade de Boa Vista, em Roraima. Dois tiros na cabeça. Ela dormia na rua com os parentes, às vésperas de voltar para sua comunidade, na Terra Indígena (TI) Yanomami. Os assassinos, 2 homens ainda não identificados, passaram de bicicleta em frente ao acampamento e dispararam vários tiros. Acertaram. Ela caiu, um bebê ficou órfão. No Egito, os discursos da COP27 reivindicavam a proteção da floresta amazônica. Na Amazônia, o sangue. E a indiferença da maioria.
O assassinato da mãe Yanomami não começou naquela via suja de Boa Vista chamada Venezuela, mas sim muito antes. O assassinato começou quando outra estrada, a Perimetral Norte (BR-210), rasgou o território onde viviam seus antepassados. Começou quando mais de 20% da população de seu grupo, os Ỹaroamë, foi morta por doenças infecciosas levadas pelos trabalhadores da estrada. O assassinato da mãe Yanomami começou quando a construção da estrada provocou 2 epidemias de sarampo (1974 e 1976-77), contínuos surtos de gripe, de malária e de outras doenças que acabaram por dizimar comunidades inteiras. Este foi o primeiro fim de mundo para o povo Ỹaroamë. A mãe Yanomami assassinada com 2 tiros na cabeça, abatida apenas porque estava ali e era indígena, era uma das sobreviventes. Até ser derrubada.
A mulher fazia parte da comunidade Xexena, um grupo pequeno, falante da língua Ỹaroamë, uma das 6 que formam a família linguística Yanomami, que em 2018 contava com apenas 359 falantes. Essa comunidade vive na região do Ajarani, fronteira leste da TI Yanomami. A Perimetral Norte foi planejada para cortar a Amazônia de forma transversal, saindo do Amapá, nas margens do oceano Atlântico, até o estado do Amazonas, na fronteira com a Colômbia. Era mais um dos projetos desenvolvimentistas propostos pela ditadura empresarial-militar (1964-85), que enxergava a Amazônia como terra vazia que deveria ser ocupada pelo “progresso”. Para esse grupo Yanomami, o “progresso” significou uma ruptura brutal com seu modo de estar no mundo. Um ponto sem retorno para tudo o que já haviam sido até então.
Há que voltar ainda mais no tempo para entender o assassinato da mãe Yanomami. No início do século 20, os Ỹaroamë formavam um grupo bastante numeroso que vivia entre os rios Mucajaí e Catrimani. Desde as primeiras tentativas de contato pelos brancos, eles resistiram. Mesmo assim, as frentes pioneiras que adentraram seus territórios a partir de 1930 levaram até eles as primeiras epidemias. Eram membros da Comissão de Demarcação de Limites e grupos de exploradores que começavam a investigar a região, como balateiros, gateiros e pescadores.
Em um segundo momento, foi a vez de missionários tentarem estabelecer contato com os Ỹaroamë. Em 1957, missionários da Unevangelized Fields Mission (atual Meva) tentaram fazer contato com os Ỹaroamë lançando anzóis e outros objetos ao sobrevoar suas comunidades em um pequeno avião. Desistiram do plano ao ver os indígenas apontando flechas para eles. Outra tentativa de aproximação com os Ỹaroamë foi feita em 1962, dessa vez por missionários católicos da Ordem da Consolata, que anos depois construiriam uma missão na região do Médio Catrimani. O grupo católico chegou a abrir uma pequena pista de pouso perto das aldeias Ỹaroamë, mas o trabalho missionário na região não teve sucesso e o plano foi interrompido 3 anos depois. Os relatos feitos nesse período pelo padre da Consolata, Silvano Sabatini, descrevem um relativo isolamento dos grupos Ỹaroamë, que usavam ferramentas feitas de bambu, machados de pedra e panelas de barro.
A PERIMETRAL NORTE ABRIU DESERTOS NO MEIO DA PAISAGEM VERDE DA FLORESTA. A ESTRADA FEZ SURGIR ENTRE OS YANOMAMI UMA FORMA DE ‘NOMADISMO RODOVIÁRIO’. FOTO: BRUCE ALBERT (1975)
Mais uma década. E, agora, nenhuma resistência dos Ỹaroamë foi suficiente para barrar a violência da ditadura. A partir de 1973, a construção da Perimetral Norte literalmente cortou o território Ỹaroamë, que foi invadido por um grupo enorme de trabalhadores e máquinas sem que os indígenas fossem consultados ou minimamente respeitados no processo. Milhares de árvores foram derrubadas, abrindo desertos no meio da paisagem verde da floresta. Trabalhadores e máquinas arrasavam os territórios de caça dos indígenas, suas roças, assim como as moradas dos espíritos auxiliares de seus xamãs. Restou aos Ỹaroamë viver à beira da estrada que os partiu ao meio.
Em poucos meses, milhares de anos de tradição foram convertidos em prostituição, alcoolismo e dependência das esmolas dadas pelos trabalhadores da estrada: 22% da população Ỹaroamë foi exterminada ali. Os antropólogos Alcida Ramos e Kenneth Taylor relatam que, poucos anos depois da abertura da estrada, os Ỹaroamë já viviam o que ficou conhecido como “nomadismo rodoviário”, andando de um acampamento de obra a outro, pedindo comida, roupas ou carona.
Em 1976, após o fim do financiamento do projeto megalômano da ditadura, a construção da Perimetral Norte foi interrompida. Desde então, nesses quase 50 anos, a floresta vem retomando o espaço que lhe foi arrancado. Os Ỹaroamë, porém, ficaram marcados pela estrada que destruiu todo o seu mundo. Seguem ocupando o mesmo território, relativamente perto de onde existia a estrada. Porém, em um movimento distinto daquele da floresta, os sobreviventes Ỹaroamë nunca pararam de se deslocar para trabalhos sazonais em fazendas ou temporadas em vilas e cidades de Roraima.
AVESSO DA FLORESTA: EM BOA VISTA, FAMÍLIAS YANOMAMI MONTAM MALOCAS IMPROVISADAS ÀS MARGENS DE GRANDES AVENIDAS. FOTO: EMILY COSTA/AMAZÔNIA REAL
Análises feitas pelo geógrafo Estêvão Senra a partir do Censo Missionário de 2020 estimam que cerca de 40% dos Ỹaroamë da região do Catrimani vivem hoje fora da terra indígena, em trânsito constante. É como se, depois de terem sido massacrados pela Perimetral Norte, eles ainda se mantivessem ligados à repetição daquele evento que os levou ao caos. Quase meio século depois, continuam sendo nômades de estradas. O deslocamento também é causado pela intensificação de conflitos intercomunitários entre os diversos grupos Ỹaroamë, em especial a partir de 2012, quando um homem Ỹaroamë foi morto após ser atropelado em Boa Vista. No momento em que enviaram o corpo para a comunidade, essa morte foi interpretada como agressão de outros grupos Ỹaroamë, abrindo assim um longo ciclo de morte e vingança entre diferentes aldeias. Para os Yanomami, nenhuma morte é natural, e toda morte deve ser vingada.
A inclusão dos indígenas em programas de benefícios sociais é outro fator que intensificou o movimento dos Ỹaroamë em direção às cidades. Como os principais destinatários de benefícios sociais – aposentadoria, salário-maternidade ou Auxílio Brasil – são mães com crianças e velhos, muitos grupos Ỹaroamë saem a pé de suas aldeias e caminham até alcançar as cidades de Caracaraí e Mucajaí. Algumas vezes se instalam ali, ou seguem para as vilas vizinhas. Em outras ocasiões, partem com destino à capital de Roraima. Fazem a pé os 141 quilômetros da BR-174 que os levam até Boa Vista. Andam na beira do asfalto por cerca de 6 dias sob o sol equatorial, carregando crianças, redes, roupas, panelas e produtos para tentar vender na cidade, como vassouras ou artesanato. Em Boa Vista, com frequência montam malocas improvisadas ou instalam suas redes debaixo de árvores nas beiras de vias largas e rápidas da capital.
A cidade de Boa Vista, por sua vez, é o avesso da floresta. Capital do estado mais indígena do Brasil, colocou a estátua de um garimpeiro como monumento central. Grande parte das atividades do garimpo ilegal em Roraima acontece dentro da TI Yanomami, no oeste do estado. Desde 2016, a mineração tem crescido exponencialmente. Com a eleição do extremista de direita Jair Bolsonaro, o movimento criminoso ganhou ainda mais força e velocidade, com um crescimento de mais de 250% nos últimos 3 anos, segundo dados da Hutukara Associação Yanomami. Com Bolsonaro no poder, a impunidade se tornou quase regra, o preconceito contra os indígenas, como os grupos Yanomami que circulam pelas cidades, se escancarou.
Em 2022, há uma chance de a história ser redesenhada a partir da eleição de Lula como presidente. Durante a campanha, ele declarou algumas vezes que não aceitará garimpo em terras indígenas. O resultado das urnas em Roraima, porém, revela a tensão entre a população indígena e a não indígena: Bolsonaro teve 76,08% dos votos no estado. O ódio cresce em Roraima, o racismo conectado a episódios de violência se intensifica, os Yanomami estão ainda mais na mira. Para os moradores da cidade, grupos como o dos Ỹaroamë são mendigos.
Os indígenas costumam ser vistos pelos brancos sob a óptica da pobreza, e também como entrave ao acesso à riqueza mineral de seus territórios. São mendigos sentados sobre algo que, para os não indígenas, tem muito mais valor – o ouro. E isso soa insuportável para o “povo da mercadoria”, como são definidos os brancos pelo xamã Davi Kopenawa. Para os Ỹaroamë e os demais grupos Yanomami, o valor está na floresta, na vida em relação com todos os outros seres. Até a invasão de seu território pelos brancos, o ouro não significava nada para eles. São pontos de vista inconciliáveis sobre o que é a riqueza, sobre onde e em que está o valor, mas não são oposições equivalentes. Porque um mata a floresta e leva o planeta ao colapso climático e o outro só quer viver.
Tudo isso estava contido nas 2 balas que perfuraram a cabeça da mãe Yanomami. O que vai acontecer – ou não acontecer – com os assassinos é o que vai determinar se a vida será possível, a da floresta e a das mães Yanomami, ou se o fim do mundo acabará chegando para todos.
Ana Maria Machado. Indigenista e antropóloga, é tradutora da língua Yanomam e trabalha com o povo Yanomami desde 2007