Roberto Manríquez entrevista Noam Chomsky
15-08-2022
Segundo o relatório da ONG Global Witness, em 2020, 227 defensores da terra foram assassinados no mundo, mais de 70% dos crimes ocorreram na América Latina e quase 90% das vítimas eram indígenas.
Os registros são tão desoladores como ilustrativos, as lideranças indígenas e suas comunidades são perseguidas por sua condição de defensores da natureza. Ao menos essa é a conclusão a que chegou o intelectual estadunidense Noam Chomsky, em entrevista ao El Mostrador. “Ou vivemos em harmonia com a natureza ou persistiremos em nossa marcha rumo ao suicídio da espécie, levando grande parte da vida conosco.”
Eis a entrevista.
Muitas vezes, fala-se dos povos originários como se fosse algo do passado. De fato, em muitos museus pelo mundo, os povos originários continuam fazendo parte da “história natural”. Considera que essa perspectiva mudou?
Em círculos mais esclarecidos, de fato, a perspectiva não mudou o “sentido depreciativo”. Embora a relação com a natureza ressuscitou como um ideal que as culturas atrasadas do “mundo desenvolvido” fariam bem em se esforçar para alcançar, aprendendo de verdade dos povos originários, que nos mostram repetidamente que ou vivemos em harmonia com natureza ou persistiremos em nossa marcha rumo ao suicídio da espécie, levando grande parte da vida conosco.
Era comum nas escolas e universidades chamar a chegada de Cristóvão Colombo a este continente como o “descobrimento da América”. Depois, em 1992, alterou-se por “encontro entre dois mundos”. Qual é a forma correta de mencioná-la em sua opinião?
Há um feriado nacional nos Estados Unidos chamado “Dia de Colombo”. Anos atrás, eu informava aos alunos dos meus cursos que não nos reuniríamos devido ao Dia do Genocídio. Com o passar dos anos, o desconcerto se transformou em compreensão, conforme a consciência da verdade histórica começou a penetrar na cultura.
Hoje, penso que um bom termo é “a invasão da América”, tomando emprestado o título do livro inovador de Francis Jennings, que expôs a mitologia e a apologia vulgares que, lamentavelmente, prevaleciam na cultura geral e inclusive nos círculos mais eruditos. É muito impactante olhar para trás, para o que os principais historiadores e antropólogos difundiam há apenas 50 anos. E não é por acaso que Jennings fosse um erudito independente, fora do mundo acadêmico.
Os fatos básicos, suprimidos por muito tempo, não eram, é claro, obscuros para os perpetradores. Alguns os celebraram, outros os lamentaram, como o ex-presidente (dos Estados Unidos) John Quincy Adams, o arquiteto intelectual do Destino Manifesto. Em seus últimos anos, muito depois de suas próprias contribuições ao crime, refletiu com amargura sobre o destino “dessa desaventurada raça de nativos americanos, que estamos exterminando com tão impiedosa e pérfida crueldade… entre os atrozes pecados desta nação, pelo qual acredito que Deus um dia nos levará a julgamento”.
Jennings abriu a porta para a revelação do horrível registro histórico, agora compreendido ao menos em alguns círculos. É tão bem compreendido que o Partido Republicano protofascista – sem exagerar – agora está buscando proibir o ensino de história real nas escolas, com o argumento de que é “divisivo” porque “faz” com que alguns alunos se sintam “desconfortáveis”.
E o que mudou atualmente?
É preciso acrescentar que os Estados Unidos não estão abrindo novos caminhos nesses aspectos. Após séculos de espantosas atrocidades, a verdadeira história da Grã-Bretanha mal começa a ser revelada em profundidade, deixando em cacos os vergonhosos mitos do excepcionalismo britânico. A França ainda não pode levantar o véu, por exemplo, em relação ao seu horrendo histórico no Haiti, fonte de grande parte da riqueza do país europeu.
Na Argentina, o presidente Fernández disse recentemente que os argentinos chegaram em navios, enquanto Bolsonaro no Brasil disse que “eles (os indígenas) já são praticamente como nós, querem explorar sua terra. Isso é muito bom para nós e é muito bom para o mundo”. No Chile, há uma proposta de reconhecimento constitucional que despertou muitas reservas. Avalia que os acadêmicos e intelectuais também possuem uma responsabilidade?
Poderíamos pensar na Historikerstreit (disputa intelectual entre Ernst Nolte e Jürgen Habermas, na qual o primeiro defendia uma suposta origem externa e acidental do nazismo) sobre o revisionismo na Alemanha dos anos 1980, debates que começaram quando Habermas escreveu um ensaio crítico acerca das tendências na disciplina de história de minimizar o nazismo e o Holocausto.
Não existem dois crimes iguais, mas às vezes existem características comuns. A intervenção de Habermas ilustra a responsabilidade de acadêmicos e intelectuais que também pode ser estendida a esse debate.
Os povos originários costumam ter uma relação diferente com a natureza, também vivem em comunidade, o que parece entrar em choque com o paradigma neoliberal no qual, nas palavras de Margareth Thatcher: “Não existe sociedade, apenas indivíduos”. Esse é um fator que agrava o conflito?
As palavras de Thatcher exigem um esclarecimento crucial, uma interpretação mais precisa. Referia-se a que não deveria existir sociedade para a grande massa da população, a “ralé”, conforme a chamavam seus predecessores. Deveriam se lançar no mercado, para que de alguma forma sobrevivessem por conta própria, permanecendo atomizados e indefesos, como “um saco de batatas”, usando o termo de Marx para condenar as práticas dos autocratas de seu tempo.
Mas para os ricos e privilegiados, deve haver uma sociedade rica, com uma densa rede de interação e apoio: câmaras de comércio, associações comerciais e, sobretudo, um Estado poderoso e intervencionista que em grande medida seja controlado por eles. Não é necessário explicar os detalhes mais uma vez. Esse é o atual paradigma neoliberal, mais bem caracterizado como uma forma amarga de guerra de classes.
A violência contra os povos originários se dá porque estão no meio “do caminho”. São como os países do terceiro mundo que acreditam erroneamente que “os primeiros beneficiários do desenvolvimento dos recursos de um país devem ser as pessoas do próprio país”, um crime contra a “boa economia” e uma heresia que deve ser extirpada, conforme os Estados Unidos informaram aos países latino-americanos na conferência hemisférica de 1945, quando foram estabelecidas as regras da Ordem Mundial, para evitar obstáculos aos “Senhores da Humanidade” na busca de sua “vil máxima: tudo para nós e nada para os outros” , uma máxima que vale para todas as épocas. Estou repetindo as palavras de Adam Smith.
Para os servidores de senhores do tipo Bolsonaro, as comunidades indígenas bloqueiam a busca da máxima vil pelas indústrias madeireiras e agrícolas que tentam explorar as riquezas da Amazônia em benefício próprio, contribuindo no processo para a destruição da vida humana na Terra. Mas é justo acrescentar que eles não são os únicos que defendem esses “princípios”.