Terras indígenas protegem o agronegócio brasileiro

Morte Rieli Seringueiras

Divisa da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau com área de plantio de soja próxima a entrada da Base Bananeira da Funai, no município de Seringueiras (RO). Foto de autoria de Bruno Kelly/Amazônia Real.

https://amazoniareal.com.br/terras-indigenas-protegem-o-agronegocio-brasileiro/

Por Por Lucas Ferrante e Philip M. Fearnside em Amazônia Real

31/05/2022

Em 19 de maio foi publicada na prestigiosa revista Science a versão em inglês do texto que segue sobre o falso argumento de que precisa desmatar e transformar em agricultura e pecuária as terras ocupadas por populações indígenas, usado para justificar projetos de lei que dificultam ou impedem o reconhecimento dos direitos desses povos. A publicação em inglês está disponível aqui.

Desde que assumiu a presidência do Brasil em 2019, Jair Bolsonaro enfraqueceu muito a proteção da Amazônia e de seus povos indígenas [1]. O discurso de ódio de Bolsonaro contra os povos indígenas e as suas políticas de desmantelamento da proteção das terras indígenas levaram a um aumento de invasões e ataques a terras indígenas, públicas e de conservação [2], ataques que seu governo recompensou em vez de dissuadir [2, 3]. O projeto de lei PL 490/2007 [4] daria continuidade a essa tendência ao bloquear ou reverter o reconhecimento dos direitos de muitos povos indígenas às suas terras tradicionais.

A lei brasileira garante que os moradores indígenas tenham direitos exclusivos sobre suas terras indígenas, protegendo-os de indivíduos e empresas não indígenas [5]. No entanto, o status protegido requer aprovação por meio de um processo burocrático que pode levar décadas. Atualmente, existem 303 terras indígenas em processo de obtenção de proteção.

O PL 490/2007 impediria a homologação das terras indígenas atualmente em processo de proteção e permitiria a revogação do status de proteção de muitas terras que foram aprovadas após 5 de outubro de 1988, data da atual Constituição Brasileira [6]. Aquelas que foram homologadas antes de 1988 não serão afetadas pelo PL 490/2007, embora continuem a enfrentar ameaças de invasões ilegais.

O projeto de lei, que está parado no Congresso Nacional desde 2007, agora corre para a aprovação final. Ele foi aprovado na Câmara dos Deputados, e está recebendo prioridade no Senado. Um caso no Supremo Tribunal Federal decidirá sobre sua constitucionalidade nas próximas semanas. Em 25 de abril, o Presidente Bolsonaro afirmou que se o Tribunal rejeitar as políticas descritas no projeto de lei, ele provavelmente se recusará a cumprir a decisão [7].

Representantes do justificam seu apoio ao projeto de lei com o argumento enganoso de que a preservação das terras indígenas afetaria negativamente a produção agrícola do Brasil [7]. No entanto, a quantidade de terras desmatadas ociosas no Brasil é mais do que suficiente para garantir o crescimento projetado do agronegócio brasileiro [8]. As terras indígenas protegem 25% do bioma amazônico brasileiro, onde o desmatamento está próximo do limite que a floresta pode tolerar [9]. O Brasil já enfrenta uma grave crise hídrica que afetou tanto o agronegócio quanto o abastecimento de água para uso doméstico [10]. Um maior desmatamento na Amazônia agravaria essa crise [11, 12], comprometendo o agronegócio do País.

É fundamental que o Supremo Tribunal Federal rejeite as políticas propostas pelo PL 490/2007. Se a proteção das terras indígenas for suspensa ou revogada, os países que importam soja e carne bovina do Brasil devem boicotar essas commodities para evitar o aumento do desmatamento na Amazônia e a violação dos direitos indígenas. [13]

Notas

[1] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2021. Brazilian government violates Indigenous rights: What could induce a change? Die Erde -Journal of the Geographical Society of Berlin 152(3): 200-211.

[2] Ferrante, L., M.B.T. Andrade & P.M. Fearnside. 2021. Grilagem na rodovia BR-319Amazônia Real-Série completa.

[3]Fuhrmann, L.B.S. Bassi, & T. Merlino. 2022. Titula Brasil beneficia madeireiros na nova fronteira do desmatamentoDe Olho nos Ruralistas, 07 de abril de 2022.

[4] Câmara dos Deputados. 2007. PL 490/2007 http://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/345311.

[5] Almeida, I. 2021. Estatuto do Índio: o que diz? qual sua importância? Politize, 12 de abril de 2021. https://www.politize.com.br/estatuto-do-indio/.

[6] Conectas Direitos Humanos 2021. “Marco temporal: Entenda por que julgamento no STF pode definir o futuro das terras indígenas,” Conectas Direitos Humanos, 24 de agosto de 2021.

[7] Jornal da Band. 2022. Militares contestam afirmação de Barroso sobre processo eleitoral. Band Jornalismo, 25 de abril de 2022.

[8] Strassburg, B.B.N. A.E. Latawiec, L.G.Barioni, C.A. Nobre, V.P. da Silva, J.F. Valentim, M. Vianna, E.D. Assad. 2014. When enough should be enough: Improving the use of current agricultural lands could meet production demands and spare natural habitats in Brazil. Global Environmental Change 28: 84-97.

[9] Lovejoy, T.E.  C. Nobre. 2018. Amazon tipping pointScience Advances 4: art. eaat2340.

[10] Getirana, A.J., R. Libonati & M. Cataldi. 2021. Brazil is in water crisis — it needs a drought planNature 600: 218-220. https://doi.org/10.1038/d41586-021-03625-w

[11] D. D.V. Spracklen & L. Garcia-Carreras. 2015. The impact of Amazonian deforestation on Amazon basin rainfall. Geophysical Research Letters 42: 9546–9552.

[12] Marengo, J.A., C.M. Souza Jr., K. Thonicke, C. Burton, K. Halladay, R.A. Betts, L.M. Alves & W.R. Soares. 2018. Changes in climate and land use over the Amazon region: Current and future variability and trendsFrontiers in Earth Science 6: art. 228

[13] Este texto é uma tradução de: Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2022. Indigenous lands protect Brazil’s agribusinessScience 376: 810.

Lucas Ferrante é doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Manaus, AM. Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia.

Philip Martin Fearnside É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 700 publicações científicas e mais de 600 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui.