Fascismo em Ascensão nos EUA, Guerra de Classes e Emergência Climática

https://www.democracynow.org/2021/12/30/noam_chomsky_on_rising_fascism_in

30 DE DEZEMBRO DE 2021

Noam Chomsky avisa que o Partido Republicano está “conduzindo” o mundo para a destruição ao ignorar a emergência climática enquanto abraça o proto-fascismo em casa. Chomsky fala sobre a insurreição de 6 de janeiro; como o neoliberalismo é uma forma de guerra de classes; e como os planos do presidente Biden para o clima ficam aquém do necessário.


Transcrição

Esta é uma transcrição rápida. A cópia pode não estar em sua forma final.

AMY GOODMAN : Aqui é democracy now!, democracynow.org, The War and Peace Report. Sou Amy Goodman, e retornarmos à nossa discussão com o dissidente político, lingüista e escritor de renome mundial Noam Chomsky, Nermeen Shaikh e eu continuamos nossa conversa com ele. Ele estava em sua casa em Tucson, Arizona.

AMY GOODMAN : Noam, você chamou o Partido Republicano de uma organização mais perigosa da história da humanidade. Você também chamou os líderes políticos de uma gangue de sádicos. Eu queria saber se você poderia elaborar mais sobre isso. Mas também, em todos os seus 93 anos, se você já viu antes uma tendência anti-ciência e tão negacionista neste país como agora? E então, se você puder falar sobre como isso tudo se relaciona com outros movimentos semelhantes ao redor do mundo e a forma que deve ser tratado?

NOAM CHOMSKY : Bem, é um fato que há muito tempo existe, essa tendência de sentimento anticientífico em partes significativas dos Estados Unidos. Este é o país que realizou o julgamento de Scopes (nt.: fato histórico importantíssimo que ocorreu no Tennessee quando um professor, John Scorpes, foi processado por estar ensinando a visão evolucionista em escola púbica. Existia nesse ano de 1925, uma lei que proibia se divergir da literalidade da visão da Biblia cristã do criacionismo. Foi por isso também chamado de ‘Processo do Macaco’. Mostra como o fundamentalismo religioso nos EUA é algo que vem desde longa data.). Há um poder incomum nos Estados Unidos do extremismo evangélico e anticientífico.

Mas, como movimento político, não tem nada a ver com o que está ocorre atualmente. O Partido Republicano, sob o comando de Trump e seus subordinados – ele basicamente é o dono do partido – está na liderança de tentar destruir as perspectivas de vida humana organizada na Terra. Não apenas quando retirou, unilateralmente, os EUA do Acordo de Paris, mas agindo com entusiasmo para maximizar o uso de combustível fóssil. Da mesma ao desmantelar os sistemas que de alguma forma mitigavam seus efeitos ambientais, negando o que está acontecendo, e por fim, atingindo um grande número de fiéis quase adoradores, em parte através de seu sistema de mídia, de por outros meios.

Quando os Estados Unidos, país mais poderoso e importante da história mundial, corre para o precipício, isso tem um impacto sobre os outros. Outras coisas que estão acontecendo são ruins o suficiente, mas com os Estados Unidos na liderança e marchando para a destruição, o futuro é muito sombrio. E é nossa responsabilidade aqui controlá-lo, encerrá-lo, fazer o país voltar à sanidade – nem mesmo gosto de dizer “voltar” – voltar à sanidade nessas questões, antes que seja tarde demais.

NERMEEN SHAIKH : E, Professor Chomsky, você alertou sobre uma grave ameaça de um proto-fascista ressurgente bem aqui nos Estados Unidos e você se manifestou contra a mudança geral da direita em todo o espectro político nos Estados Unidos. Se você pudesse explicar o que acha que está por trás disso, e se vê alguma perspectiva de reversão no futuro próximo?

NOAM CHOMSKY : Bem, já viemos passando, a população em geral, por ataques há 40, 45 anos, enquadrados numa estrutura chamada neoliberalismo. Estão gerando um impacto muito sério. Existem até algumas medidas sobre isso. A RAND Corporation, organização superrespeitável, fez um estudo recentemente sobre o que eles chamam educadamente de transferência de riqueza dos 90% que estão mais abaixo na população – isto é, classe trabalhadora e classe média – para os muito rico durante os últimos 40 anos. Sua estimativa é da ordem de US $ 50 trilhões. Eles chamam isso de transferência de riqueza. Devíamos chamar de roubo. Há muitíssimo mais como esse fato que continua sendo trazido para a luz. Os Pandora Papers que foram publicados, revelaram um outro aspecto disso tudo. Essa não é uma mudança pequena. Os salários dos CEOs e outros gestores, dispararam. Uma grande parte, provavelmente a maioria, da população agora está basicamente sobrevivendo de salário em salário, podendo reter muito pouco como reserva. Se eles têm um problema de saúde ou qualquer outra coisa (nt.: importantíssimo relembrarmos de que nos EUA não há sistema de saúde pública como o SUS e toda a estrutura pública como no Brasil. Lá tudo é privado!), estarão em apuros, principalmente com a falta de apoio social no país.

Mesmo as medidas triviais que existem em todos os lugares são muito difíceis de implementar aqui em nosso país. Estamos vendo isso no Congresso agora, medidas como licença-maternidade, que existe em toda parte do mundo. Acho que há algumas ilhas do Pacífico que se juntam aos Estados Unidos por não terem licença-maternidade paga. Vá para o segundo maior país do hemisfério, dificilmente um local de enorme progresso, o Brasil. Lá, as mulheres têm garantia de quatro meses de licença-maternidade remunerada, que pode ser prorrogada por alguns meses. Tudo pago pela Previdência Social. Nos Estados Unidos, você não consegue um dia. E esse tema está agora no Congresso. O Partido Republicano é uma oposição 100% sólida a esta e outras medidas, incluindo algumas medidas fracas, mas pelo menos existentes para mitigar a crise climática. Oposição 100% republicana, acompanhada por alguns democratas, como o barão do carvão da Virgínia Ocidental, Joe Manchin. É o principal beneficiário no Congresso no financiamento de combustíveis fósseis, arrastando os pés em tudo. Junta-se à oposição 100% republicana, Kyrsten Sinema do meu estado, grande beneficiária da Big Pharma, outro financiamento corporativo, também arrastando os pés. Mesmo as coisas mais simples, como o que mencionei antes, são muito difíceis de passar em um país que foi envenenado pela propaganda de direita, pelo poder corporativo. É uma história antiga, mas se expandiu enormemente nos últimos 40 anos. 

Você procura “neoliberalismo”, a palavra “neoliberalismo” no dicionário, encontra crenças sobre crença no mercado, confiança no mercado, justo – todos têm um tratamento justo, e assim por diante. Você olha para a realidade, o neoliberalismo se traduz como uma amarga guerra de classes. Esse é o significado disso, para onde quer que você olhe, cada componente dele. A RAND , o roubo de US $ 50 trilhões, é apenas um sinal disso.

Quando Reagan e sua associada Margaret Thatcher do outro lado do Atlântico, chegaram ao poder, seus primeiros atos foram atacar e minar, minar gravemente, o movimento trabalhista. Se você vai ter um projeto sensato, se vai levar a cabo uma grande guerra de classes atacando os trabalhadores da classe média, é melhor destruir seus meios de autoproteção. E o grande – o principal meio são os sindicatos. É assim que os pobres, os trabalhadores podem se organizar para desenvolverem idéias, programas, e agirem com ajuda mútua e solidariedade para alcançarem seus objetivos. Então isso tem que ser destruído. E esse foi o principal alvo de ataque desde o início, muitos outros. O que nos resta é uma sociedade de pessoas atomizadas, raivosas, ressentidas, sem organização, confrontadas com o poder privado concentrado,

AMY GOODMAN : Eu quero perguntar a você sobre o 6 de janeiro, como você vê isso. Você vê isso realmente não tanto como o nascimento, mas como a continuação de um movimento proto-fascista? Você está no Arizona, a recontagem e recontagem dos votos, questionando os votos democratas em todo o país. Para onde você vê os EUA indo? E você vê o presidente Trump se tornando presidente novamente?

NOAM CHOMSKY : É muito possível. A estratégia republicana, que descrevi, tem sido bem-sucedida: causar o máximo de dano possível ao país, culpar os democratas, desenvolver todos os tipos de contos fantasiosos sobre as coisas horríveis que os comunistas, os democratas, estão fazendo às suas crianças, à sociedade. Em um país que está sujeito ao colapso social, à atomização, à falta de capacidade organizada para responder em ideias e ações, esse projeto pode ter sucesso. E estamos vendo isso agora. Então, sim, é muito possível que o partido negacionista volte ao poder, que Trump esteja de volta, ou alguém como ele. E então estaremos simplesmente correndo para o precipício.

No que diz respeito ao fascismo, existem alguns analistas, muito astutos e experientes, que dizem que estamos realmente caminhando para o fascismo real. Meu próprio sentimento é, eu preferiria chamá-lo de uma espécie de proto-fascismo, onde muitos dos sintomas do fascismo são bem aparentes – recorrer à violência, a crença de que a violência é necessária (nt.: reportagem apresentada em 16.01.22, pela Globo, mostra como estamos também no Brasil, entrando numa onda muito semelhante ao que ocorre nos EUA). Grande parte do Partido Republicano, acho que talvez 30 ou 40%, diz que a violência pode ser necessária para salvar nosso país das pessoas que estão tentando destruí-lo, os vilões democratas que estão fazendo todas essas coisas horríveis que alimentam suas orelhas. E vemos isso nas milícias armadas.

O dia 6 de janeiro foi um exemplo de – pessoas basicamente de pequenos burgueses, círculos moderadamente ricos da América Central – alguns tipos de milícias entre os manifestantes que realmente sentem que é necessário realizar um golpe para salvar o país. Eles estavam tentando realizar um golpe para minar um governo eleito – é chamado de golpe – e infelizmente chegaram perto. Felizmente, o Partido Republicano não está tomando – agora – medidas sofisticadas para tentar garantir que da próxima vez terá sucesso.

Observe que eles estão tratando os ativistas do golpe de 6 de janeiro como heróis: “Eles estavam tentando salvar a América”. Esses são sinais de colapso social massivo, que se manifestam concretamente no fato de que as pessoas literalmente não têm reservas financeiras suficientes para se colocarem em uma crise. E, claro, é muito pior quando você vai a comunidades realmente carentes. Tipo, a riqueza da família entre os negros é quase nada. Eles estão com problemas graves. Tudo isso no país mais rico e poderoso do mundo, na história mundial, com enormes vantagens, sem paralelo, poderia facilmente abrir o caminho para um futuro muito melhor.

E não é um sonho utópico. Voltemos à Depressão. Aconteceu na minha infância, lembro bem. Crise severa, pobreza, sofrimento muito pior do que hoje, mas um período de esperança. Minha própria família, desempregada, a princípio imigrante, operária, vivia com esperança. Eles tinham os sindicatos. Minhas tias, costureiras desempregadas, tinham o Sindicato Internacional de Garmentas Femininas, atividades culturais, ajuda mútua. Você poderia sair de férias por uma semana. Uma esperança para o futuro, ações militantes de trabalhadores, outras ações políticas, uma administração solidária abriu o caminho para a social-democracia, inspirou o que aconteceu na Europa após a guerra. Enquanto isso, a Europa moveu-se para o fascismo, literal e horrível fascismo. Os Estados Unidos, sob essas pressões, mudaram-se para a social-democracia. Agora, com suprema e amarga ironia, estamos vendo algo parecido com o contrário: os Estados Unidos estão caminhando para uma forma de fascismo. A Europa mal se apega a uma social-democracia funcional, tem muitos dos seus próprios problemas, mas pelo menos está a agarrá-la – quase o contrário do que aconteceu no passado. E certamente podemos voltar não apenas aos anos 30, mas a algo muito melhor do que isso.

NERMEEN SHAIKH : Professor Chomsky, você poderia fazer um balanço também do governo Biden até agora? Você falou anteriormente da crise climática. No início deste ano, o IPCC , o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, divulgou seu relatório, após uma década, que o secretário-geral da ONU chamou de “código vermelho para a humanidade”. E poucos dias depois, como você mencionou, Biden convocou a OPEP para começar a aumentar a produção de petróleo. Então, se você pudesse comentar isso, a política do Biden sobre o clima, mas também sobre outras questões?

NOAM CHOMSKY : É uma história mista. Seus programas domésticos são, francamente, consideravelmente melhores do que eu esperava. Mas eles estão sendo drasticamente cortados. O projeto Build Back Better, que agora está sendo debatido e, sem enormes pressões públicas, provavelmente não será aprovado, é uma versão bem reduzida do que primeiro Bernie Sanders produziu, Biden mais ou menos aceitou e reduziu um pouco, agora reduziu com muito mais nitidez, mesmo assim pode nem passar em sua forma reduzida.

Como eu disse, os republicanos se opõem 100% a permitir o que seus próprios constituintes aprovem e a administrar o sistema de propaganda de forma que seus eleitores nem mesmo saibam disso. Resultados notáveis ​​aparecendo em pesquisas sobre o projeto Build Back Better. Se você perguntar às pessoas sobre suas disposições específicas, forte apoio. Você pergunta sobre o projeto de lei, sentimentos contraditórios, muitas vezes oposição, sentimento de que o projeto de lei, que contém as disposições que eles desejam, provavelmente os prejudicará. Além disso, eles não sabem o que está na conta. Eles não sabem que contém as disposições que aprovam. Tudo isso é uma campanha de doutrinação massiva e bem-sucedida, do tipo que deixaria Goebbels impressionado. E a única maneira de superá-lo, novamente, é por um ativismo constante e dedicado.

Veja o programa do clima. O programa climático de Biden não era o que se necessita, mas era melhor do que qualquer coisa que o precedeu. E não veio de cima. Foi o resultado de um significativo trabalho ativista. Jovens ativistas chegaram a ponto de ocuparem gabinetes parlamentares senatoriais, o gabinete de Nancy Pelosi. Normalmente, eles seriam expulsos pela Polícia do Capitólio. Desta vez, obtiveram apoio de Ocasio-Cortez, juntaram-se a eles, impossibilitaram a polícia de os expulsar, obtiveram mais apoio, como já mencionei, de Ed Markey. Logo eles puderam pressionar Biden a desenvolver, a concordar com um programa climático que era uma grande melhoria em relação a qualquer coisa anterior – na verdade, até mesmo para os padrões mundiais, um dos melhores. Bem, a gestão do Partido Democrata não gostou disso, não quis. Na verdade, eles o cortaram de sua página da Web antes da eleição e tentaram bloqueá-lo. E foi reduzido por eles e pela sólida oposição republicana que exige que avancemos o mais rápido possível em direção ao desastre. Bem, agora foi cortado abruptamente.

Você vai para Glasgow. Muitas palavras bonitas, incluindo do presidente Biden. Dê uma olhada no que está acontecendo no mundo fora dos corredores em Glasgow. Imagem diferente. Biden voltou de Glasgow e abriu para arrendamento a maior oferta da história dos Estados Unidos em campos de petróleo para exploração por corporações de energia. Bem, sua defesa é que seu esforço para impedi-lo foi bloqueado por uma decisão judicial temporária, então ele não teve escolha. Na verdade, havia escolhas. Havia outras opções. Mas a mensagem que envia, nítida e clara, é que as instituições da sociedade, a instituição federal, o poder executivo, o poder legislativo, o judiciário, essas instituições são incapazes de reconhecer a gravidade das crises que enfrentamos, e estão comprometidos com um curso que leva a algo como o suicídio da espécie.

A única força que pode contra-atacar estava realmente presente em Glasgow. Houve dois eventos em Glasgow. Houve uma conversa agradável, mas palavreado sem sentido dentro dos corredores. Havia dezenas de milhares de manifestantes fora dos edifícios, principalmente jovens, pedindo medidas, medidas reais, para permitirem que uma sociedade decente e viável se desenvolva, não seja destruída. Esses são os dois eventos em Glasgow. A questão de qual deles prevalece determinará nosso futuro. Estará caminhando para um desastre ou em direção a um mundo melhor e mais habitável? Ambos são possíveis. A escolha está em nossas mãos.

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, janeiro de 2022.