Jovens agricultores e o cultivo do cacau
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08/11/2021
Em meio a devastação gerada pelo projeto dos militares, a curiosa formação de comunidades de pequenos agricultores no Pará. Antropólogo relata como, mesmo em condições duríssimas, a produção camponesa supera o agronegócio
[NOTA DO WEBSITE: por que é importante essa entrevista? Dentro da visão de mundo do site, consideramos o agronegócio como uma das mais tristes opções que o Brasil poderia fazer face toda a devastação, humana, étnica e ambiental que se está incentivando entre nós. Fica claro que os interesses jamais são da população e sim de algumas pessoas jurídicas e físicas em detrimento do restante do país. Afirmamos isso porque esse material mostra toda a fundamentação ideológica dessa opção e, ao final, a demonstração de que há outras soluções muito mais abrangentes que envolvem a valorização e o empoderamento, humano, étnico e ambiental. Vale destacar como aquela ideologia está associada à visão dos militares brasileiros e ao supremacismo branco eurocêntrico representado pelos sulistas e pelos euro-brasileiros].
Roberto Araújo Oliveira Santos Junior, em entrevista a Revista Fapesp
Em um artigo publicado em 1966 no Jornal do Brasil, o engenheiro civil Eliseu Resende (1929-2011), então diretor do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), expôs as linhas gerais do plano da BR-230, a rodovia Transamazônica, que começou a ser construída em 1970. No ano seguinte, o recém-criado Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estabeleceu os primeiros lotes para pequenos agricultores entre as cidades paraenses de Altamira e Itaituba e em agosto de 1972 o presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) inaugurou o primeiro trecho, de 1.253 quilômetros (km), ligando Estreito, no Maranhão, a Itaituba, no Pará. A rodovia havia sido planejada com 5.662 km, mas ficou com 4.260 km, unindo Cabedelo, na Paraíba, a Lábrea, no Amazonas.
O historiador e antropólogo Roberto Araújo Oliveira Santos Junior, do Museu Paraense Emílio Goeldi, diz que a Transamazônica não uniu o Norte e o Nordeste a outras regiões do país, como desejava o governo. Mas permitiu a formação de culturas agrícolas ambientalmente sustentáveis, como a do cacau, com um desmatamento menor do que o observado no sudeste do Pará, onde predominam grandes fazendas de pecuária. Ele chegou à região em 1986, vindo de Paris, para estudar as formas de organização social das comunidades agrícolas, e voltou muitas vezes.
De 2009 a 2014, no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ele coordenou projetos do Programa Geoma (Geoprocessamento e Modelagem Ambiental da Amazônia), que associou a perda de vegetação nativa aos mecanismos de grilagem de terras – era uma conclusão nova, que ressaltava um processo econômico recorrente, a posse ilegal de terras, e não apenas atores isolados. Nascido em Belém, capital do Pará, 61 anos, divorciado, com três filhos (dois na França e um no Uruguai) e uma neta, Santos Junior falou de seus estudos sobre a região e como vê os 50 anos da Transamazônica nesta entrevista concedida por vídeo.
Santos, em frente a uma sumaúma do Museu Goeldi | Irene Almeida
Como avalia as transformações e os impactos da Transamazônica? O que deu certo e o que fracassou?
A Transamazônica não integrou o Nordeste e o Norte a outras regiões do país nem foi até o Acre, como era o plano inicial. A Amazônia também não virou o celeiro do mundo, como os militares pretendiam. Eles desconheciam completamente as características da produção agrícola na região. Mas se tornou um dos eixos principais de integração regional, completado pela BR-316 [de Belém a Maceió]. A Transamazônica também permitiu a criação de comunidades bem organizadas de pequenos agricultores, principalmente no trecho de quase 500 km entre Altamira e Itaituba.
Como isso ocorreu?
Muito por conta da vivacidade das pessoas que se instalaram lá e se dedicaram a construir um espaço de vida. Naquele trecho nasceram os filhos de produtores familiares, que estudaram nas escolas rurais, criadas pelos movimentos sociais. Muitos se tornaram professores ou técnicos que ajudaram a implantar boas experiências com a agricultura perene, como o cacau, uma cultura que precisa de ao menos uma parte da mata primária para assegurar sombra aos cacaueiros. Os pequenos agricultores dessa região produzem cacau de alta qualidade usado para fabricar chocolates em Belém ou na Bélgica. As experiências agroflorestais poderiam avançar ainda mais se recebessem apoio de uma política de desenvolvimento sustentável.
Pelo que você conta, parece que está tudo bem na região…
Claro que não. Ainda há muita grilagem. No início dos anos 1990, com minha equipe fiz um mapa dos focos de conflitos de terra, e havia conflitos em todos os municípios da Transamazônica. Depois publiquei uma análise de alguns casos com o geógrafo francês Philippe Léna no livro Desenvolvimento sustentável e sociedades na Amazônia [Museu Goeldi, 2010]. Existem também áreas de retirada ilegal de madeira, extremamente perigosas e violentas. O desmatamento sempre acompanha a abertura de estradas, como o [engenheiro computacional] Diógenes Alves, do Inpe, mostrou em vários trabalhos. Mas na zona de pequenos agricultores familiares entre Altamira e Itaituba o desmatamento foi muito menor do que nas fazendas de gado do sudeste do Pará ou nas bordas da Amazônia. Mesmo em outro trecho da Transamazônica, entre Altamira e Marabá, há desmatamento, exploração ilegal de ouro, contrabando de carvão e muita violência.
Por que no trecho entre Altamira e Itaituba foi diferente?
Por ser uma área em que o governo federal instalou pequenos proprietários e não grandes fazendas. Nesse trecho existiam e ainda existem pequenos agricultores, em consequência do Programa de Integração Nacional, que o [sociólogo] Octavio Ianni [1926-2004] analisou no livro Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia [Petrópolis, 1979]. Com a Lei nº 1.106, de 1970, que criava o programa, e a abertura da Transamazônica, em 1971, o governo fazia uma contrarreforma agrária. Nessa época, a questão fundiária era, como é ainda hoje, um dos grandes problemas do Brasil. No Sul, o problema era o minifúndio: os colonos descendentes de alemães ou italianos tinham de dividir as terras com os filhos, cada um ficava com partes cada vez menores e não era mais viável trabalhar dessa maneira. No Nordeste, era o latifúndio. Desde os anos 1950 havia um movimento migratório das pessoas do Nordeste que queriam escapar do latifúndio e encontrar terras para trabalhar, pouco a pouco atravessando os grandes tributários do rio Amazonas. O [antropólogo] Otávio Velho fala disso no livro Capitalismo autoritário e campesinato. Muitos desses migrantes trabalharam na construção da Belém-Brasília e depois tentaram se estabelecer ao longo dessa estrada. Na época, o pequeno proprietário era chamado de posseiro. Era um camponês sem terra que ocupava uma área para trabalhar e logo era confrontado com a apropriação e a privatização das terras por pessoas que tinham o dinheiro dos incentivos fiscais para criar gado.
Era uma situação que potencializava os conflitos.
Foi a causa de muitos conflitos de territorialização a partir do final dos anos 1960. Os conflitos e a posição da Igreja Católica, que havia lançado a campanha “Terra para quem nela trabalha”, se radicalizaram. Para resolver esse problema sem tocar na estrutura agrária, o governo criou o programa de integração nacional, começando pelo Projeto Integrado de Colonização, o PIC, que adotou um modelo fundiário diferente daquele do sudeste do Pará, com as grandes fazendas. Na área do PIC-Altamira foram criados lotes da colonização de 1972 até 1987. O governo havia decretado que uma faixa de terra de 100 km de cada lado das rodovias federais planejadas ou construídas passaria ao domínio do poder federal para ser distribuída em programas de colonização. O Incra havia sido criado em 1970 exatamente para implantar o primeiro plano nacional da reforma agrária, definido pelo Decreto nº 59.456, de 1966, mas isso nunca ocorreu.
Como avalia o papel do Incra?
O instituto tinha ficado encarregado de instalar 100 mil famílias em uma primeira fase do projeto de colonização da região de Altamira. Havia cotas: 75% dos colonos deveriam ser nordestinos e 25% dos estados do Sul. Havia também um plano de criação e diversificação de núcleos urbanos: a cada 5 km haveria estradas vicinais, cortando a estrada principal, a cada 15 km haveria uma agrovila, com pequenos serviços e feiras para os produtores venderem seus produtos; a cada 50 km uma agrópolis, com um centro médico e escolas de segundo grau [ensino médio]; e a cada 100 km uma cidade com hospitais e estruturas urbanas mais desenvolvidas. Essa hierarquia de centros urbanos deveria possibilitar a vida social, mas não funcionou, porque os colonos evitavam circular, para não deixar suas propriedades.
O que aconteceu com as 100 mil famílias?
Foram para a região bem menos de 100 mil famílias, que receberam lotes de 100 hectares, a maioria, até 500 hectares, o que é pouco considerando o tamanho das grandes propriedades rurais na região. A implementação dos lotes consistia na entrega de uma casa, cestas básicas e sementes de arroz. Mas as dificuldades eram muitas, as sementes não eram adequadas ao clima da região, as estradas eram ruins… A Comissão Pastoral da Terra constatou que, nos trechos entre Altamira e Itaituba e entre Marabá e Altamira, 48% dos primeiros 1.187 lotes haviam sido abandonados por seus ocupantes no início dos anos 1980. No PIC-Altamira, o Incra registrou uma deserção de 12,69% em 1971 para 32,97% em 1977. Mais tarde, de 1988 a 1995 foram criados novos projetos de assentamentos, com base em lotes individuais de 100 hectares distribuídos para as famílias. Nos anos 1990 começaram a aparecer outros tipos de unidade fundiária, como as de conservação de uso direto, que são habitadas. A partir de 2006 foram criados os Projetos de Desenvolvimento Sustentável, ou PDS, inspirados nas Resex, as reservas extrativistas do Acre. Agora não se atribuem mais lotes de 100 hectares a famílias individuais e sim uma área total para uma associação de moradores, cada família com um terreno lá dentro. Os PDS são concedidos por meio da Concessão de Direito Real de Uso, a CDRU, para evitar a concentração fundiária que nascia com os lotes individuais.
Quando você esteve na Transamazônica pela primeira vez?
Em 1986. Vivia em Paris desde 1981, fazia o mestrado em antropologia na Universidade de Paris X e tinha feito um trabalho bibliográfico sobre as comunidades eclesiais de base para a revista Braise, como parte de um dossiê temático sobre religiões no Brasil. Um de meus orientadores, Patrick Menget [1942-2019], leu o trabalho, gostou e disse: “Precisamos de alguém que estude as comunidades de base na Transamazônica”. Essas comunidades, apoiadas pela Igreja Católica desde a criação da CNBB [Confederação Nacional dos Bispos do Brasil] nos anos 1950, eram muito fortes. Os grupos se reuniam depois da missa e nas escolas para discutir problemas como a falta de saúde, de pontes e de estradas boas. A Transamazônica já tinha 16 anos, mas na estrada principal as condições ainda eram ruins e, nos travessões, que a cortavam perpendicularmente, ainda piores. Carros, ônibus e caminhões atolavam na lama quando chovia muito. Os motoristas e passageiros tinham de cavar buracos para tirar os ônibus e atolavam também, a perna afundava, perdia a bota dentro do buraco…
Como foi chegar lá, depois de anos vivendo em Paris?
Sou de Belém, mas nunca tinha visitado o oeste do Pará. Uma vez me perdi na floresta, passei o dia inteiro rodando até encontrar o caminho. Despenquei de uma ribanceira, um facão que estava na cintura entrou no meu pé. Depois o dono da casa em que eu estava hospedado me gozou: “Você é um ignorante, não sabe andar no mato”. Quando fui tomar banho no igarapé lá perto é que tirei a bota e vi que o pé estava cheio de sangue. Passei óleo de copaíba que eu tinha levado e cicatrizou. Fui para Altamira, uma cidade antiga, da época da borracha, diferentemente das cidades que surgiram com a abertura desse trecho da Transamazônica. Eu ia para a sede do Incra em Brasil Novo, a 40 km de Altamira. Chegando lá, expliquei que queria ir o mais longe possível para trabalhar com quem tivesse chegado havia pouco tempo, de modo a ver como organizavam a vida social, como se apropriavam do espaço e formavam as comunidades eclesiais de base. Um dos funcionários do Incra me respondeu assim: “Mas o que você vai fazer lá? Vai ver esses bichos do mato lá dentro?”. Ele estava falando dos ribeirinhos e dos colonos. “Esses caras são preguiçosos! Pescam só uns peixinhos de vez em quando, não têm capacidade de produzir”, ele dizia. Depois vi que essa não era só a opinião de funcionários preconceituosos. Em janeiro de 1977, a Sudam organizou em Belém o primeiro seminário de desenvolvimento rural integrado para avaliar a experiência da Transamazônica e se concluiu que era necessário, eu cito agora, lendo as atas do encontro, “transferir para a região homens do Sul do país”, onde houvera maior afluxo de migrantes europeus, “que insuflassem na colônia uma alma singular”. Essa “alma singular” era o espírito empreendedor, que fazia falta. É a chamada ideologia de fronteira, que analiso com a ecóloga Ima Vieira, também do Museu Goeldi, em um capítulo de um livro organizado pelo geógrafo Wagner Ribeiro e pelo economista Pedro Jacobi, a ser publicado em breve. Até hoje reflito sobre as consequências dessa visão. É como se, em um determinado momento, a gente dissesse que o importante é a capacidade de produzir mercadorias em grande escala e, portanto, quem não tem essa capacidade deve liberar espaço para quem a tem. Atualmente, o Projeto de Lei nº 490, em debate na Câmara dos Deputados, permite, em caso de interesse do Estado, diminuir unidades de conservação e terras indígenas, ribeirinhas e quilombolas, tendo em vista o aproveitamento econômico dessas áreas. A ideologia da fronteira continua forte, sobretudo nos últimos anos.
Santos Junior (à dir., de boné e camiseta branca) em reunião do programa Geoma na região de Santarém em 2007 | Acervo pessoal
Pelo que você viu em campo, a ideia sobre os chamados “bichos do mato” fazia sentido?
Não tinha o menor sentido. O antropólogo Emílio Moran [da Universidade Estadual de Michigan, nos Estados Unidos] foi um dos primeiros pesquisadores a trabalhar com a Transamazônica e examinou muito bem essa situação [ver Pesquisa FAPESP nos 125 e 249]. Ele e Millicent Fleming-Moran, médica especializada em saúde pública e prima dele, escreveram o artigo “O surgimento de classes sociais numa comunidade planejada para ser igualitária”, publicado em 1978 pelo Museu Goeldi, que foi uma das primeiras coisas que li sobre o povoamento da Transamazônica. Eles mostram que os nordestinos tinham a mesma capacidade que os colonos de outras regiões ou talvez mais ainda, porque usavam um círculo de parentes e às vezes tinham mais conhecimento do meio, o que lhes permitia encontrar boas terras para plantar.
Seus pressupostos teóricos funcionaram no trabalho de campo?
Menget, que se tornou um grande amigo, sempre me dizia: “O trabalho de campo é decisivo. Você vai usar a teoria para explicar o que encontrar e não enfiar o que vê dentro da teoria”. Não obstante, cheguei com muito estruturalismo na cabeça. Acabei me servindo muito da teoria do carisma de Max Weber [1864-1920] e das representações sociais no imaginário das pessoas, como proposto por Jacques Lacan [1901-1981]. Em 1996, com colegas franceses, organizei um número especial da revista Lusotopie sobre o paternalismo no Brasil. Mostrei que na Transamazônica e no Acre, onde também fiz trabalhos de campo, as relações de patronagem eram fortemente marcadas pelo uso de um significante paternal, quer dizer, o patrão se apresenta como um pai para seus dependentes. O papel do bom patrão ainda hoje é forte e ambíguo, mesmo dentro das unidades de conservação e dos PDS, criados justamente para evitar a dominação do mercado. Mas, como os sistemas de produção agroflorestais são pouco valorizados, as madeireiras avançam. Quando uma empresa abre uma estrada para exploração ilegal de madeira, o colono se beneficia, porque ganha emprego ou pode pedir uma condução para levar um parente doente para o hospital da cidade. Essa dependência social perpetua o uso da imagem do pai-patrão, entre outras analogias domésticas, como forma de dominação política.
Voltando à sua viagem inicial, o que encontrou no fim dos travessões?
Peguei uma Kombi e desci no travessão norte de Uruará. Encontrei Miguel, um maranhense que estava chegando, me apresentei e ele me pôs para dormir em um barraco novo, que ele estava construindo, ainda sem paredes, só com teto contra chuva. Eu me senti em segurança e me receberam com muita gentileza. Aos poucos comecei a ver como os grupos familiares se estruturavam. Miguel era um pai de família que tinha de trabalhar muito porque os quatro ou cinco filhos pequenos ainda não produziam. Para complementar a quantidade de arroz necessária para a família, ele emprestava de um compadre que morava perto e tinha quatro filhos varões. Miguel pagava em dias de trabalho, mas a situação sempre piorava, porque, em vez de cuidar da plantação dele, tinha de trabalhar na plantação do compadre para pagar o arroz emprestado. Comecei a ver ali um problema clássico nos estudos de campesinato, a distribuição da mão de obra entre os grupos domésticos. As pessoas tentavam se reagrupar nos lugares que se instalavam com outras unidades domésticas com quem eles já tinham relação de parentesco. Descobri que as comunidades que se diziam fundadas no parentesco nem sempre eram de fato aparentadas. As pessoas podiam ser da mesma região do Maranhão sem ser parentes consanguíneos. Havia um grupo local em torno do qual as relações se estruturavam, e os filhos dos primeiros moradores começavam a se casar entre si. As pessoas diziam que eram todos parentes porque havia uma consanguinidade das alianças no seio dos grupos locais. Por outro lado, quem conseguia melhor inserção no mercado, abrindo um comércio ou comprando uma camionete, tornava-se capaz não apenas de manter sob controle o trabalho de seus filhos, como também de recrutar o trabalho disponível em outras unidades domésticas, transformando-se em pequeno patrão.
O que você fez no Inpe?
Fui para lá em 2009, a convite do então diretor, Gilberto Câmara. Minha tarefa principal era organizar os módulos de ensino em ciências sociais de uma nova pós-graduação interdisciplinar, em Ciências do Sistema Terrestre. Organizei a parte de ciências sociais com Diógenes Alves, cuja formação é em ciências exatas, mas que trabalha também com epistemologia [teoria do conhecimento]. No início do programa, tivemos uma contribuição de Maria Conceição D’Incao da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]. Depois, a antropóloga Myanna Lahsen se juntou ao grupo das ciências sociais. Também coordenei projetos do Programa Geoma [Geoprocessamento e Modelagem Ambiental da Amazônia], financiado pelo MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações], que associou a perda de vegetação nativa aos mecanismos de grilagem de terras. Era uma conclusão nova, que ressaltava um processo econômico recorrente, a posse ilegal de terras, e não apenas atores isolados. De 2010 a 2014, participei também como co-PI [pesquisador principal] de um projeto temático financiado pela FAPESP sobre mudanças no uso da terra na região Norte, coordenado por Gilberto Câmara, que associava a análise espacial e a modelagem do uso da terra às dinâmicas sociais. Várias teses e trabalhos interessantes, liderados por Ana Paula Aguiar, Isabel Escada e outros pesquisadores, resultaram desse projeto. Em 2016 voltei para o Goeldi, onde atuo como antropólogo na Coordenação de Ciências Humanas (CCH). Recentemente, montamos no CCH um Programa de Pós-graduação (mestrado) em Diversidade Social na Amazônia, atualmente coordenado pelo antropólogo Márcio Meira, que já foi presidente da Funai [Fundação Nacional do Índio]. É um programa original, que tem por vocação abrir um espaço acadêmico à formação de indígenas, quilombolas e ribeirinhos, permitindo-lhes refletir de maneira organizada, com os instrumentos da sociologia, história, linguística e arqueologia, sobre suas condições de vida e os processos sociais em curso na região.
Em que está trabalhando atualmente?
Desde o início da pandemia, não fiz campo, mas escrevi artigos e refleti muito sobre a ocupação da Amazônia. Com colegas da França e de outras universidades brasileiras, reescrevi um projeto de pesquisa sobre violência e controle territorial na Amazônia, que foi recusado pelo CNPq há alguns anos, mas agora em julho foi aprovado pela ANR [Agência Nacional de Pesquisas] da França. Sou um dos coordenadores, ao lado de Véronique Boyer [do Centro Nacional de Pesquisa Científica, CNRS, da França] e Philippe Léna [do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento, IRD, também da França], com colegas do Pará, da Bahia, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Argumentamos que o aumento da violência não é apenas o resultado de uma soma de conflitos individuais, mas sim o produto de configurações socioeconômicas e institucionais, que reforçam a dominação e dependência social. Já trabalhei com grilagem e comércio de cocaína, mas agora a violência é muito pior. Os próprios responsáveis pelas instituições criam mecanismos de legitimação da violência, contra a Constituição de 1988 e a garantia dos direitos dos povos tradicionais. A legitimação da violência para certos grupos sociais é total.
Você está pessimista em relação ao futuro da região?
De modo algum. Houve muitos avanços. A conjuntura de precariedade social e econômica e a ausência quase completa de políticas públicas para a agricultura persistem, mas os agricultores se organizaram e, apoiados pela Igreja Católica do Xingu, assumiram a identidade de trabalhadores rurais e criaram mecanismos de reconhecimento social, como o Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica, que se transformou na Fundação Viver Produzir e Preservar. Com base na Constituição de 1988 e no financiamento do PPG7 [Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, estabelecido em 1992], os municípios criaram secretarias de Meio Ambiente, o que forçou a formação de técnicos nessa área. Muita dessa estrutura vem sendo destruída nos últimos anos e experiências como o Cadastro Ambiental Rural e o licenciamento ambiental estão sendo usadas como estratégia para a grilagem de terras. Atualmente a sustentabilidade é um tema mobilizador dos movimentos sociais. O PPG7 apoiou uma série de experiências na Transamazônica, a exemplo do Roça sem Queimar. Agricultores de Medicilândia começaram a usar uma técnica de brocagem [corte] exaustiva da roça. No primeiro ano é mais difícil, mas a partir do segundo fica muito mais fácil trabalhar a terra. A broca se dissolve com a lixiviação e aquela matéria orgânica enriquece o solo, sem precisar de fogo. A adesão crescente de grupos indígenas, seringueiros e ribeirinhos e outros agricultores a esse modelo alternativo de viver representa uma verdadeira revolução cultural e valoriza a experiência dos produtores familiares na região da Transamazônica, em contraposição à colonização selvagem que começou nos anos 1970 na região e ainda não parou.