“PRA QUE SERVE O ÍNDIO?”

Indigena

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Joice Ferreira

15 out 2021

Numa sociedade escrava da utilidade, povos originários são exemplo de convívio harmônico com seu meio natural

Na manhã de 1º de novembro de 2019, véspera do meu aniversário, recebi pelo celular uma mensagem de áudio de uma jovem em franco desespero. A voz era de Arlete Guajajara, uma liderança indígena que informava a triste notícia da morte de seu “parente” Paulo Paulino Guajajara, na Terra Indígena (TI) Arariboia, no Maranhão. Logo veio a mobilização de um dos inúmeros grupos em defesa da Amazônia para escrever uma nota de repúdio. Perguntei-me logo qual seria o efeito de uma nota assim. Talvez a questão também fosse feita silenciosamente por outros colegas no grupo… Mas era um dos poucos atos de solidariedade que poderíamos fazer. Cheguei a essa conclusão com uma certa amargura e passei um aniversário à altura do dia de finados.

Daquele áudio em diante, notícias da morte de Paulo Paulino Guajajara começaram a circular pela grande mídia. Suas fotos em vida, que acompanhavam as matérias, causavam em mim um desconforto dilacerante. Era um rosto jovem, anguloso e marrom, com pinturas negras de tinta de jenipapo que escorriam pelo pescoço. Havia um olhar tão marcante e profundo que parecia estampar a própria sentença de morte. Talvez seria o olhar de quem soubesse que vinha escapando da morte havia algum tempo. Paulo Paulino era uma liderança indígena do grupo Guardiões da Floresta, formado em 2007 pelas comunidades indígenas do Mosaico Gurupi – conjunto de áreas protegidas do qual a TI Arariboia faz parte – para monitorar e proteger, eles próprios, os seus territórios que vinham sendo alvo de ameaças. A motivação para criar os Guardiões da Floresta foi a morte de um indígena em confronto com madeireiros que invadiram a Terra Indígena Arariboia, a mesma onde morreu Paulo Paulino doze anos depois. Cinco meses após a morte de Paulo Paulino, mais dois indígenas foram mortos. Ao todo, 43 guajajaras foram assassinados em confrontos com madeireiros, entre 2000 e 2019, segundo informou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). A verdade é que o saldo de mortes e conflitos sangrentos na região só aumenta, a partir do momento em que o assunto passou a receber alguma visibilidade em nossa sociedade.

Fato é que a violência nas Terras Indígenas do Mosaico Gurupi foi plantada há muito tempo, semeada há séculos, como com todos os , e, na Amazônia, tomou novos contornos com a construção de estradas que atravessaram os seus territórios a partir da década de 1950. No caso do Gurupi, a rodovia BR-010, que liga Belém a Brasília, e a BR-222, que conecta Fortaleza ao Sul do Pará. O Mosaico do Gurupi é um complexo – no melhor sentido da palavra – de quase 1,8 milhão de hectares e representa hoje uma das áreas mais conflituosas de toda a região amazônica. Creio não ser exagero dizer que consiste hoje em uma verdadeira “zona de guerra”, na qual os povos indígenas daquele território são os principais perdedores. O Mosaico é formado pela combinação de uma unidade de conservação de proteção integral, da modalidade Reserva Biológica, e mais seis Terras Indígenas que se encaixam entre si como peças de um quebra-cabeça. Acima, no primeiro bloco, a Reserva Biológica e quatro terras indígenas estão interligadas. Além dessas, há mais duas que ficaram desmembradas do restante. As Terras Indígenas são: Alto Rio Guamá, Rio Pindaré, Alto Turiaçu, Awa, Caru e Arariboia. Ainda existem na região indígenas que vivem isolados, da etnia Awa-Guajá.

A Estrada de Ferro Carajás, construída em meados dos anos 1980, passa  entre a TI Arariboia e o restante. Centenas de assentamentos rurais da reforma agrária também passam por esse interstício  e se irradiam por toda a área. Olhar esse território é como pôr uma lente de aumento no retrato do que a Amazônia vem se tornando. A BR-010 contorna o território, passando tanto à sua direita quanto à esquerda. A BR-222 se entremeia entre o bloco de TIs ao norte e a TI Arariboia. 

O efeito estético no mapa é de um grande tecido vivo, todo rasgado e cicatrizado. O efeito socioambiental é a extinção biológica e sangue derramado. Os trilhos são como pontos cirúrgicos que supuram no seu interior, e as rodovias como braços estranguladores em volta dos territórios. Dito de outra forma, é como se uma bomba tivesse passado ali seguidas vezes, deixando destroços de floresta e povos estilhaçados. As bombas resultam da combinação entre construção de estradas, invasões por grileiros de terra, por garimpeiros e traficantes de drogas, entre outros. O resultado: o isolamento das aldeias nos blocos que mencionei acima, impactos profundos sobre a territorialidade e sobre as relações culturais dos indígenas.

Como bióloga atuando no Pará, tenho voltado meu olhar, há algum tempo, para os problemas ambientais do Mosaico Gurupi, onde colegas meus realizam pesquisas na área, incluindo pesquisadores do Museu Goeldi e da Universidade Estadual do Maranhão. Esses pesquisadores vêm chamando atenção para a situação crítica na região há algum tempo, a exemplo do artigo científico Floresta Amazônica à Beira do Colapso no Estado do Maranhão (tradução livre) produzido por Celso Silva-Junior, Danielle Celentano e vários outros. Esses trabalhos defendem a formalização do status legal do Mosaico Gurupi, a criação de corredores ecológicos e a restauração da integridade das florestas. Essas ações protetivas são essenciais para salvar inúmeras espécies à beira da extinção que lá são encontradas, como o macaco caiarara, considerado o primata amazônico mais ameaçado de extinção e uma das 25 espécies de primatas mais ameaçadas do mundo. Apenas para demonstrar um pouco mais do papel ecológico dessas reservas, uma espécie de mutum (“The rarest of the rares”, em português, “a mais rara entre as raras”, segundo o artigo), considerada potencialmente extinta, por quarenta anos, foi redescoberta em 2013 nas reservas do Mosaico Gurupi. Com menos de cem animais na natureza e ocorrência restrita àquela região, essa espécie de mutum é considerada uma das espécies mais ameaçadas da América do Sul. 

O Mosaico Gurupi já perdeu cerca de 20% da sua cobertura original, e a pressão às florestas remanescentes aumenta proporcionalmente à velocidade da sua destruição, com degradação por incêndios e pela exploração de madeira por invasores. Há inúmeras fazendas ilegais nas áreas protegidas. No ano passado, os indígenas da TI Arariboia foram surpreendidos, mais uma vez, ao descobrirem uma fazenda de pecuária com mais de 136 hectares durante um dos monitoramentos que realizavam na área. A descoberta de plantações de maconha também é um problema frequente. Algumas Terras Indígenas ultrapassaram 30% de sua superfície desmatada, e a TI Pindaré perdeu mais da metade da sua cobertura vegetal. A soma de desmatamentos e degradação das florestas termina por comprometer a segurança alimentar, a reprodução das práticas culturais e a capacidade de sobrevivência dos indígenas. Os planos para restaurar aqueles territórios constituem, portanto, uma tentativa de reparação dos estragos que vêm sendo feitos há décadas e, infelizmente, o tempo desse retorno não alcança essa geração.

Ao aprofundar um pouco mais o olhar para a esfera social, em discussões com colegas de diversas áreas, como antropologia e ecologia, tive cada vez mais clareza de que a perda da integridade do Mosaico Gurupi é um colapso não só do ponto de vista ambiental como também humanitário. Tal convicção se fortaleceu em um recente contato com uma corajosa aluna de mestrado da UFPA, Magda Miranda, que realizou seus estudos no conjunto de TIs do Mosaico Gurupi (sim, é um ato de coragem trabalhar em uma região tão conflituosa). Sob orientação da ecóloga Marlúcia Martins e do antropólogo Louis Forline, Magda realizou pesquisas socioambientais a partir de estudos etnográficos, usando técnicas consolidadas na antropologia para descrever a cultura e a visão dos indígenas. O resultado foi a compreensão das visões de mundo de diferentes etnias que lá vivem. Os pesquisadores buscaram com esses estudos criar meios para que esses povos sejam os protagonistas da restauração das suas ameaçadas florestas.

Enquanto muitos ainda enxergam a restauração florestal somente do ponto de vista ecológico – ou seja, como um processo de recuperação da integridade ambiental dos ecossistemas – cresce o reconhecimento do seu papel biocultural, que nada mais é do que a interligação entre os sistemas biológicos e culturais. Obviamente, em nenhuma sociedade essa interligação é tão intrínseca e visceral quanto nas comunidades indígenas. De acordo com o estudo de Magda, quando lhes foi perguntado “O que consideravam como mais importante na sua terra”, sem surpresa, eles responderam “Zegav Haw Ikatuahy”que significa a “cultura” na língua indígena Guajajara. Certamente, a perda das suas florestas representa para esses povos muito mais que a perda de um “recurso”, significa algo como a perda do equilíbrio vital entre as dimensões física e espiritual. E é justamente essa visão de mundo tão harmônica com a natureza que explica a alta efetividade das terras indígenas em conservar as florestas e ecossistemas naturais, conforme demonstrado em inúmeras pesquisas científicas brasileiras nas últimas décadas. Um estudo recente estimou uma queda significativa nos desmatamentos especialmente após a homologação das Terras Indígenas na Amazônia brasileira. Em tempos de emergência climática, os povos indígenas nos oferecem, portanto, a chance de viver. Em troca, nós lhes oferecemos a morte.

Como disse o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro em uma entrevista, “o mundo deles [dos indígenas] acabou há quinhentos anos. Mas alguns sobreviveram. E mostram que é possível viver numa terra sem destruí-la”. No livro Memórias Sertanistas, organizado por Felipe Milanez, em celebração aos cem anos de criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), é possível mergulhar em histórias de vida de diversos sertanistas que dedicaram suas vidas às causas indígenas, dos contatos, à proteção de isolados, à demarcação de territórios. O lema de Rondon – “Morrer se preciso for, matar nunca” – representa uma espécie de sonho distante em nossa história. Os depoimentos no livro são dramáticos, na grande maioria, com memórias repletas de sofrimentos e catástrofes, mas também de lutas políticas e superação.

Navegar pelas águas passadas décadas atrás revela que os dramas vividos pelos povos do Mosaico do Gurupi nada mais são do que uma continuação da violência e opressão aos indígenas. As grandes obras das rodovias que retalharam a Amazônia foram edificadas sobre uma superfície banhada de sangue indígena. E a disputa no presente pelo espaço, outrora considerado “vazio”, só se intensifica com planos de infraestrutura cada vez mais agressivos. Conflitos sangrentos são narrados abundantemente pelos indigenistas no livro de Milanez. O sertanista paraense Afonso Alves da Cruz, que nasceu na região do Xingu, talvez tenha narrado a cena mais dilacerante de todas: uma criança pequena sugando os seios de sua mãe, uma indígena Xicrin, que morrera enquanto amamentava.

O que está subjacente ao tratamento dado aos indígenas ao longo da nossa trajetória? Sem sombra de dúvida, a visão de que esses povos são sub-humanos e inferiores aos brancos. A realidade é escancarada, e sempre soubemos disso, desde que deixamos nossas ilusões infantis na celebração do Dia do Índio na escola, mas sentir esse desprezo de perto é sempre desconfortante. Em uma tarde chuvosa no Tapajós, na cidade de Santarém, fui visitar um empresário em cuja fazenda realizávamos pesquisas científicas. Esse episódio ocorreu há mais de dez anos, mas está vivo aqui em minha memória. Sentamo-nos à sua frente, um outro colega pesquisador e eu, em uma sala monótona. A sua voz era marcadamente grave, sem qualquer traço de afabilidade ou polidez. No meio da conversa, o senhor nos fixou o seu olhar frio e disparou: “Tem política demais para ajudar quilombola e ajudar índio, mas agora eu pergunto a vocês – PRA QUE O ÍNDIO SERVE?!” Ao ouvir isso, eu paralisei. Era como se eu só visse sua boca gesticulando e não conseguisse mais escutá-lo. Meu colega, com estatura de 2 metros de altura, se curvou em si mesmo, visivelmente constrangido. Deixamos o local em silêncio e abalados.

Olhando em retrospecto, reflito que nos tornamos perfeitos escravos de uma sociedade da utilidade. Fomos obrigados até a criar uma contabilidade para os “serviços” da natureza, em mais uma tentativa desesperada de convencer os seres humanos a proteger as (outras) espécies e os ecossistemas onde vivemos. Infelizmente, nem mesmo essa tentativa tem se mostrado suficiente para deter a destruição. Com atraso de uma década, respondo brevemente aqui, àquele homem pobre de alma, a “utilidade” dos indígenas: eles nos servem como exemplos de convívio harmônico, íntegro e respeitoso com o seu meio natural. Os “índios” servem para nos ensinar a usar a terra por milênios sem desfigurar as florestas, sem manchar os rios e sem atrair doenças. No presente, mais que nunca, eles servem para nos socorrer da catástrofe climática e para nos mostrar que um outro mundo é possível. 

É doutora em ecologia, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental e uma das fundadoras da Rede Amazônia Sustentável (RAS)