Às vésperas da conferência Rio+20, o Brasil continua a dar sinais contraditórios quanto à sua disposição de pôr em prática princípios como o da economia verde e o da governança sustentável. Ao mesmo tempo, por exemplo, em que o governo federal manifesta seu empenho em valorar recursos naturais, conservar a biodiversidade (da qual temos pelo menos 15% do total mundial), despreza relatórios do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, do Banco Mundial e outros, segundo os quais a preservação de áreas indígenas se tem mostrado o caminho mais eficaz para a manutenção desses recursos naturais – mais eficiente até que áreas governamentais de preservação permanente, parques, etc.
http://www.ecodebate.com.br/2012/05/21/as-terras-indigenas-nao-sao-de-ninguem-artigo-de-washington-novaes/
Um dos exemplos desse descaso está em medida, assinada pela presidente da República, que veio exigir consulta ao Ministério de Minas e Energia (MME) antes de qualquer decisão da Fundação Nacional do Índio (Funai) sobre demarcação de áreas indígenas – não é difícil adivinhar o que dirá o MME sobre a possível existência de jazidas minerais nesses territórios e a inconveniência de fechar as áreas. E o Executivo ainda é reforçado pelo Congresso Nacional, que está votando a Proposta de Emenda Constitucional n.º 215, que também exige a aprovação do próprio Legislativo federal para a demarcação de áreas.
Ao mesmo tempo, é apresentada como um avanço, um benefício importante para comunidades indígenas, a decisão do Ministério da Saúde de lançar um cartão de identificação que “facilitará o acesso e o atendimento médico-hospitalar”, uma espécie de “SUS Indígena” – como se não fosse exatamente o contato com a cultura branca que leva para essas comunidades doenças que nelas não existiam antes e às quais são vulneráveis, exatamente pela falta de defesas imunológicas, dado o seu isolamento.
O autor destas linhas pôde comprovar esse fato há mais de 30 anos, em 1979, quando testemunhou, no Parque Indígena do Xingu, o trabalho de uma equipe da então Escola Paulista de Medicina – hoje Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) -, liderada pelo professor Roberto Baruzzi, que ali vinha acompanhando e registrando a cada visita, em fichas individuais, a situação de saúde de cada índio das etnias do Alto Xingu. E a comprovação era impressionante: não havia, no Alto Xingu, um só caso de pessoa portadora de doenças cardiovasculares – exatamente porque não estavam ali presentes os fatores de risco nessa área, adquiridos na relação com brancos: alimentação inadequada, uso de sal com base em cloreto de sódio, presença de gorduras, obesidade, fumo, álcool, sedentarismo, etc. Em seguida foi documentada para o programa Globo Repórter, para compará-la com a do Xingu, a situação dos índios caingangues, no interior de São Paulo, já aculturados e trabalhando como boias-frias (ou mendigos, alcoólatras): cerca de 80% deles já tinham em algum grau doenças cardiovasculares.
Cinco anos mais tarde, quando preparava a série de TV Xingu – A Terra Mágica, um testemunho ainda mais contundente: havia sido transferida para o Parque do Xingu toda a aldeia de índios então chamados de kreen-akarore (ou índios gigantes) que habitavam a região do Rio Peixoto de Azevedo e de lá eram removidos para abrir caminho à rodovia Cuiabá-Santarém. Desconhecedores das doenças de brancos e para elas sem defesas, os crenacarores foram dizimados na transferência: morreram todos os velhos, muitos adultos e crianças e ainda os pajés (estes só podiam cuidar de “doença de índio”, “de espírito”, não de branco). Lá estavam eles, em 1984, numa triste aldeia à beira do Médio Xingu, em situação lamentável, assoberbados por doenças, crianças cegas, etc. (hoje, os panarás, como são chamados, vivem numa reserva no Pará, que ganharam na Justiça; e se recuperam).
Nada disso é visto e considerado na visão dominante que se tem, no Brasil, de índios. E que, como dizia o antropólogo Pierre Clastres, só vê o índio pelo que ele não tem – não usa roupa, não dirige automóvel, não dispõe de outras tecnologias da nossa cultura -, e não pelo que tem de admirável enquanto vive na força de sua cultura: não delega poder a ninguém (chefe não dá ordem); cada indivíduo é autossuficiente, não depende de ninguém; e a informação é aberta, ninguém dela se apropria para transformá-la em poder político ou econômico.
Hoje estão todos às voltas com esbulhos ou ameaças. Como os pataxós hã-hã-hães, que acabam de recuperar no Supremo Tribunal Federal 54 mil hectares de suas terras demarcadas invadidas – e ainda ouvindo que são “vagabundos”. Ou sendo assassinados, como 250 guaranis-caiovás (Mato Grosso do Sul) e mais 300 habitantes do Vale do Jamari, no Amazonas (O Globo, 6/4), a ponto de o Conselho Indigenista Missionário denunciar à ONU – e o bispo Erwin Klauter dizer (Estado, 20/4) que “Lula e Dilma destruíram a Amazônia e seu povo”. Porque, a seu ver, “existe no Brasil uma cultura anti-indígena”.
“As terras indígenas são tratadas como terras de ninguém, primeira opção para mineração, hidrelétricas, reforma agrária e projetos de desenvolvimento em geral”, escreveu já em 1987 a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha no livro Os Direitos do Índio – Ensaios e Documentos, lembrando que “está na hora de se abandonar o jargão anacrônico que fala na ‘incorporação dos silvícolas’, para substituí-lo pela ‘defesa das sociedades indígenas e dos índios’”. E que “hoje, no direito internacional, não se pretende mais a ‘assimilação’ dos aborígines, e sim o respeito à diversidade cultural e aos direitos à terra das populações indígenas”.
Não bastasse, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar há poucos anos o direito do povo ianomâmi a suas terras, acolheu o brilhante parecer do jurista José Afonso da Silva, que mostrou a acolhida a esse direito consagrada desde as Ordenações Manuelinas até os dias de hoje, passando por várias constituições. Não é o caso, agora, de revogá-las por medidas presidenciais ou tentativas questionáveis no Legislativo.
Washington Novaes é jornalista.
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.