Precisamos de outra racionalidade, mais sistêmica e menos cartesiana. Entrevista especial com Ilza Girardi.

Mentalidade fragmentária chegou até a ONU e aos governos, e precisa ser substituída por uma compreensão sistêmica da vida, que nos inclua como parte da Terra Pátria, pontua jornalista.

 

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A pesquisadora estará na Unisinos nesta quarta-feira, 18-04-2012, com a temática Da Eco-92 aos acordos que a sucederam e o que está em jogo na Rio+20, das 19h30min às 22h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. A atividade faz parte do Ciclo de Palestras: Rio+20 – desafios e perspectivas, organizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A programação completa do evento pode ser conferida em http://bit.ly/IEaCIq.

Ilza Girardi é graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, especialista em Sociologia Rural pelo Centro de Estudos e Pesquisas Econômicas e mestre em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo – Unimep. Cursou doutorado, também em Comunicação, pela Universidade de São Paulo – USP, com a tese O discurso do agricultor ecologista sobre a biotecnologia. É uma das organizadoras de Ecos do planeta: estudos sobre informação e jornalismo ambiental (Porto Alegre: UFRGS, 2011) e Jornalismo ambiental: desafios e reflexões (Porto Alegre: Dom Quixote, 2008). É diretora de comunicação do Núcleo de Ecojornlistas do Rio Grande do Sul e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRGS.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que mudou de 1992 para cá no tratamento que é dado pela mídia ao meio ambiente em nosso país?

Ilza Girardi – Saímos da Eco-92 com vários projetos, assinaturas e compromissos, como a Agenda 21, por exemplo. No decorrer desse período, muitos daqueles compromissos assumidos não foram implementados, a começar pelo conceito de desenvolvimento sustentável, o qual criticamos muito. Há um grupo numeroso que afirma a impossibilidade de existir um crescimento sustentável. Existe outra visão de mundo que propõe a construção de sociedades sustentáveis, ou de um mundo sustentável. Essa é outra perspectiva. De lá para cá, o que houve é que prevalece, em todos os debates, a preponderância do aspecto econômico junto do político. O próprio aspecto político defende, via de regra, o econômico. O lado ambiental, que propõe uma outra forma de olhar e uma nova racionalidade, não tem sido incluído nos debates. Esse é o grande problema e que irá chegar na .

IHU On-Line – O meio ambiente é um assunto prioritário no Brasil ou ainda é relegado a terceiro ou quarto planos?

Ilza Girardi –Penso que, ao mesmo tempo em que melhorou, como podemos ver pela maior atenção dada pela imprensa a essa temática, ainda temos que avançar muito. De toda forma, a percepção da sociedade civil é outra. Hoje se fala mais sobre essas temáticas, e a visibilidade de fatos como desastres ambientais, por exemplo, é muito maior. Isso trouxe certa consciência, mas aqueles que têm o poder de tomar decisões não têm feito muita coisa nesse sentido. Cito o exemplo do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. No caso da construção das hidrelétricas do PAC, não têm sido ouvidos os pedidos dos movimentos sociais e das pessoas que são atingidas pelas obras. No Parque Nacional do Xingu as nações indígenas se mobilizaram e fizeram diversos pedidos, mas eles não foram considerados. Então, o PAC, com todos os impactos que irá trazer via hidrelétricas, é uma mostra de que, nesse aspecto, não evoluímos. Continuamos focados somente no aspecto econômico. Contudo, o aspecto econômico não sobrevive se não considerarmos o ambiental em conjunto. Estamos comprometendo a qualidade de vida de todos os seres que compõem o planeta conosco.

IHU On-Line – Como avalia a acusação da ONU de que a agenda da conferência para o desenvolvimento sustentável está muito ampla? Em que aspectos isso pode prejudicar os debates e decisões?

Ilza Girardi – Trata-se de um evento longo que pode, sim, terminar sem decisões efetivas. A economia verde será a grande discussão da Rio+20. Segundo os analistas, e pelo que tenho lido, é uma outra maneira de se falar em desenvolvimento sustentável, que é um conceito cheio de problemas. É uma forma de fazer com que o capitalismo assuma outra forma, mas ele esse sistema existe e continuará a existir tendo como base a exploração do trabalho e de toda a natureza. Enquanto isso não for mudado, não haverá mudança real. A ONU não tem agido muito em relação a isso, pois tem batido na tecla do desenvolvimento sustentável. São muitos pensadores a dizerem que não é esse o caminho, assim como muitas ONGs ambientalistas. Tenho receio de que a Rio+20 seja constituída somente de reuniões e que as decisões sejam postergadas para outro encontro.

Tivemos a COP-15 e COP-16, realizadas em Copenhagen e, depois, no México. Analisamos seus resultados como frustrantes, porque nenhum país conseguiu avançar nas discussões. Nenhum país aceita diminuir suas emissões de gases que acirram o efeito estufa e o aquecimento do planeta. Isso ainda vai causar muitos problemas, que já começam a ser sentidos, como demonstra o relatório do IPCC. As mudanças climáticas têm ação do homem, sim. E nós podemos agir em sociedade para mudar isso. É o caso do consumo, que precisa ser discutido e revisto.

IHU On-Line – Especialistas apontam que, desde 1992, o mundo se tornou mais insustentável. Não é um paradoxo frente ao desenvolvimento de mais tecnologias limpas?

Ilza Girardi –Trata-se de um paradoxo, sim. Um absurdo, na verdade. Antes, não se falava de meio ambiente, e agora o tema é largamente discutido na sociedade. E como é que continuam a haver descalabros? Existe uma disputa de visão de mundo que não quer mudar em nada o que existe, pois pressupõe que nada irá acontecer. O que vale, na mentalidade dessas pessoas, é o acúmulo de capital, poderio econômico e bens. Essa mentalidade reflete-se em todos os âmbitos da sociedade. Basta ver o que representam os impactos da mineração, as hidrelétricas, o uso dos agrotóxicos e as “tecnologias condenadas” pelos problemas que causam ao ambiente. Há alternativas, sim, bem como tecnologias que nos permitem fazer um caminho diferente. Mas esse caminho é de autonomia, e esta não interessa aos poderosos no campo político e econômico.

Financiamentos discutíveis

Se pudéssemos ter painéis para energia solar em casa, isso seria ideal. Contudo, trata-se de uma tecnologia cara para nós, cidadãos, adquirirmos. Mas por que não há linha de crédito para construirmos painéis fotovoltaicos em nossas casas, se existe financiamento para erigir hidrelétricas, atrair indústrias de celulose e incentivar a silvicultura? Esses segmentos recebem, inclusive, incentivo de bancos públicos. Se tivéssemos esses dispositivos em nossas residências, o problema da energia poderia ser resolvido. O governo diz que as hidrelétricas estão sendo construídas para evitar um apagão. Mas esse caminho vai comprometer ecossistemas inteiros, alterando a velocidade das águas dos rios em função da construção das barragens. O resultado é que haverá mudanças para os animais que vivem nas águas e, em última instância, os atingidos serão as comunidades que dependem da pesca, por exemplo. Precisamos mudar o padrão de pensamento que existe e que chegou até a ONU e aos governos. É uma mentalidade cartesiana, que separa tudo, fragmenta as coisas. Assim, não é possível compreender o mundo em sua extensão sistêmica. É fundamental adotar em nossa ação no mundo uma outra racionalidade. Para isso, podemos nos basear no paradigma complexo, sistêmico ou, em outras palavras, nos incluindo no meio ambiente como sujeitos que são parte do ecossistema.

IHU On-Line – É que as pessoas normalmente compreendem o meio ambiente como um agente exógeno, e não se incluem nele. Quando aparece alguém que o faz, como órgãos ambientais fiscalizadores, estes são taxados de obscurantistas e fundamentalistas…

Ilza Girardi –Exatamente. O meio ambiente vira um problema. Na construção de condomínios, a primeira atitude das empreiteiras é terminar com a vegetação considerada daninha e “feia”. Nessa visão de mundo, até o capim é um problema. Plantam-se, então, vegetações exóticas para embelezamento e que não têm nada a ver com o ecossistema originário daquele local. Quando aparece alguém que se preocupa com a natureza, é apontado como obscurantista, contrário ao progresso. É lamentável.

IHU On-Line – Como analisa a cobertura que a mídia tem realizado sobre a Rio+20?

Ilza Girardi – Não vi na imprensa, até agora, uma discussão a fundo para tratar sobre o que é a economia verde. Essas questões não são colocadas. Ele é um nome muito bonito, e a economia poderia ser verde, já que economia significa casa, em grego. Seria a administração da casa, digamos assim. Contudo, economia verde é um nome fantasia, quase um marketing verde para algo que vai continuar sendo feito da mesma forma. E a imprensa não está atenta a isso. Como a imprensa também participa dos jogos de interesses, essas temáticas não são discutidas a fundo. Há casos isolados desses debates, que ocorrem em horários muito avançados, quando já estamos com sono e não conseguimos assistir televisão, ou na TV a cabo, à qual a maioria da população não tem acesso. Essa discussão deveria ser pautada em todo tipo de cobertura, inclusive no esporte. A abordagem ambiental não é separada das outras. As outras é que devem incorporá-la. Mas isso dá trabalho, pois é um tema complexo que exige aprofundamento, leituras, discussões. É preciso procurar boas fontes para se informar a partir delas.

IHU On-Line – O “rascunho zero” da Rio+20 cita diversas vezes o termo “economia verde”, mas não traz uma definição para essa expressão. Em sua opinião, o que esse termo pode significar? Seria esse conceito suficiente para frear a destruição do planeta e as mudanças climáticas?

Ilza Girardi –Da forma como tem sido usado, esse termo não é deslocado do capitalismo como balisador de tudo. É preciso mudar o conceito, pois há economistas que falam em crescimento zero ou, até mesmo, em decrescimento. Fritjof Capra fala em sociedade sustentável. Leonardo Boff fala em modo de vida sustentável. Pessoas que trabalham com o clima falam da necessidade da mudança do consumo. Em si o conceito não traz nada de novo. Poderia fazê-lo se o levássemos realmente a sério.

Contudo, parece-me maquiagem. Gostaria de estar errada. Quero ter esperanças que surja algo bom para o planeta e para nós, seus habitantes. As ONGs que estiverem presentes na Rio+20 terão que pressionar muito para serem ouvidas e pautadas pela imprensa. Na maioria das vezes, elas não são pautadas pela imprensa, e isso aconteceu na Eco-92. Espero que a imprensa tenha aprendido alguma coisa para a Rio+20, ouvindo o que os movimentos sociais e ambientalistas têm a dizer. Debates que ficam somente na esfera governamental descambam normalmente em picuinha.

Terra Pátria

Algo que pode aparecer é a reclamação por parte dos países em desenvolvimento de que não querem refrear sua emissão de gases de efeito estufa porque, ao contrário dos EUA, estão começando agora a crescer. Contudo, a questão não é essa. A questão é que todos os países ricos, medianos e pobres têm que mudar a mentalidade e suas ações. O planeta é esse e ele é finito. Os países ricos costumam jogar seus problemas para fora. Depois que aconteceu o tsunami na Indonésia, em 2005, apareceram na costa da África os dejetos e lixo tóxico dos países desenvolvidos. Esse lixo é depositado no fundo dos oceanos e, com tamanha movimentação ocorrida pelo tsunami, foram deslocados. Como nada pode ser escondido eternamente, o lixo aparece.

Outro exemplo é o que ocorre com os piratas somalis. Ocorre que a pirataria surgiu por várias razões, que não são dadas e contextualizadas. O que os países de ricos fazem na costa da Somália não é divulgado. Isso sem falar nos problemas políticos, construídos por interesses econômicos. Por isso, reafirmo que é fundamental haver uma mudança de visão de mundo. Como diz Edgar Morin, é preciso considerar nosso planeta como Terra Pátria. A partir disso, precisamos resgatar a solidariedade, a compaixão. Por que uns têm que ter tanto, e outros, nada? O que adianta eu ter tantas coisas, dinheiro, e outros não terem nada? Precisamos reabilitar os valores éticos já existentes para construirmos um mundo melhor. A ética do cuidado, por exemplo, pressupõe que eu tenha cuidado comigo e com os outros seres. Já há iniciativas nesse sentido, como a agricultura ecológica. Esse tipo de agricultura traz uma outra visão de mundo, que pode mudar tudo. Ao desenvolver uma agricultura ecológica, faz-se necessário que também nós mudemos. O produto que está sendo cultivado não é mais pura e simplesmente um produto: é um alimento. Isso muda tudo.

IHU On-Line – Particularmente, o que você espera da Rio+20, vendo-se tanto do ponto de vista das discussões como também da eficácia de possíveis decisões tomadas?

Ilza Girardi –Espero que realmente se tomem decisões e que todos os países assumam compromissos concretos. Precisamos mudar tecnologias que estão contribuindo para o aumento da temperatura do planeta. É preciso assumir, de verdade, esses compromissos, e que estes sejam efetivados. Espero que isso aconteça, porque o poder econômico é demasiado forte, e a luta vai ser grande. Contudo, apostemos nessa boa luta.

(Por Márcia Junges)