Fármacos encontrados na água, mesmo em baixas doses, têm impacto significativo no ambiente

https://portugues.medscape.com/verartigo/6505453

Roxana Tabakman

8 de outubro de 2020

Um teste feito nas praias de Guarujá, no estado de São Paulo, revela a primeira quantificação de medicamentos em águas marinhas da América Latina. [1] A equipe identificou cinco tipos de anti-hipertensivos, três estimulantes, três analgésicos/anti-inflamatórios, um anticonvulsivante, um antidepressivo, um redutor do colesterol, um diurético e um antiagregante plaquetário, além de cafeína, cocaína e benzoilecgonina (metabolito da cocaína). Todos esses produtos potencialmente perigosos para o ambiente foram detectados em uma cidade que tem 107 dos seus 143 km2 definidos como Área de Proteção Ambiental.

Os pesquisadores investigaram amostras de água dos canais que fluem para quatro praias turísticas: Tombo, Enseada, Perequê e Iporanga. Medicamentos de uso corriqueiro, como valsartana, losartana, acetaminofeno/paracetamol, atenolol e diclofenaco/Cataflam/Voltarem, foram identificados em concentrações acima dos limites de segurança da água superficial (10 ng/L). Para os autores, as altas concentrações provam que a suposta diluição no ambiente marinho nem sempre representa um fator de segurança e, portanto, merece atenção.

Há poucos estudos sobre o impacto dessas substâncias na natureza. Há evidências de que a valsartana apresenta toxicidade moderada para algas, e que a losartana é moderadamente tóxica para peixes, mas altamente tóxica para os crustáceos. O diclofenaco e o acetaminofeno têm toxicidade moderada e alta, respectivamente, para os peixes. A toxicidade combinada dos fármacos ainda é pouco conhecida, mas não se descartam efeitos aditivos ou sinérgicos.

O problema não se limita às praias. Dez anos de análises do estado de São Paulo realizadas pelo laboratório de química ambiental da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) identificaram 9 hormônios e 14 fármacos ou derivados de produtos de cuidados pessoais na água – todos com potenciais riscos para a vida aquática. Levonorgestrel/pílula do dia seguinte/PDS e etinilestradiol/contraceptivo foram encontrados em concentrações relativamente altas, assim como foram importantes as concentrações de testosterona. O triclosan, um agente bacteriostático, também foi detectado em águas subterrâneas em concentrações na faixa de risco para a vida aquática. [2]

Para entender melhor a extensão e os fatores determinantes da contaminação por resíduos químicos da água doce, o Brasil participa do Global Monitoring of Pharmaceuticals Project , um consórcio de mais de 100 colaboradores da academia, do governo e da indústria em todos os continentes, que está realizando o maior estudo deste tipo no mundo.

Os fármacos capazes de causar efeitos significativos no metabolismo de organismos aquáticos (mesmo em concentrações baixíssimas) são muitos, e se teme que a exposição crônica também afete a saúde dos humanos. Os antibióticos (não apenas de uso humano) são um problema importante na América do Sul, assim como na África e na Ásia, e estão intimamente ligados ao desenvolvimento e à disseminação da resistência antimicrobiana. Os antidepressivos são particularmente preocupantes na Europa e na América do Norte. Medicamentos psiquiátricos, como a fluoxetina, alteram o comportamento dos peixes tornando-os menos avessos ao risco e mais vulneráveis a predadores, e substâncias ativas de contraceptivos orais têm causado feminização de peixes e anfíbios[3]

Como essas substâncias vão parar nas águas?

Embora a contribuição de cada fonte de emissão varie entre regiões e tipos, as principais fontes de despejo de fármacos no ambiente são as águas residuais domiciliares não tratadas, e efluentes de estações municipais de tratamento de águas residuais. As emissões de plantas fabris e da intensiva e da aquicultura podem ser importantes pontos de poluição em nível local. [3]

Os resíduos de medicamentos são classificados como resíduos químicos e exigem um manejo diferenciado e tratamento adequado. [4]

No Brasil, o problema foi atribuído também ao acúmulo de uma grande quantidade de medicamentos sem utilidade nos domicílios, que acabam sendo descartados em locais inadequados. A origem desse acúmulo pode estar no uso irracional de medicamentos, na falta de venda fracionada, na distribuição de amostras grátis por parte dos laboratórios e na mídia, que fomenta o consumo. A situação pode ser agravada pela inexistência de um programa de recolhimento de medicamentos vencidos provenientes dos domicílios e pela prática comum de descarte inadequado de medicamentos. [5]

Soluções

No Brasil são necessárias soluções urbanísticas, como saneamento básico e regularização das áreas ocupadas irregularmente. O tratamento das águas é necessário, mas não é uma bala de prata, porque não pode remover completamente os contaminantes. Há, porém, experiências internacionais de que algumas substâncias, como o diclofenaco, podem ser removidos com biofilmes. [6]

Para enfrentar o problema dos fármacos nas águas, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) lista também o controle do uso de medicamentos na criação de animais para abate e da poluição gerada pelas plantas industriais farmacêuticas. A OCDE propõe a inclusão de riscos ambientais na análise de autorização de novos fármacos, assim como abordagens de intervenção e mitigação de riscos para fármacos com alto risco ambiental. Outras propostas estão relacionadas com o desenvolvimento de medicamentos “verdes” (biodegradáveis). [3]

Dentre as alternativas propostas estão a melhora na prescrição; o controle de vendas, a fim de reduzir o uso prescindível; e a devida divulgação das informações para os consumidores, com o objetivo de conscientizar as pessoas.

“Educar os pacientes sobre a destinação adequada é um dos passos mais importantes. Os profissionais de saúde envolvidos no processo do cuidado devem orientar seus pacientes sobre o uso racional e o descarte adequado dos medicamentos e de todos os resíduos sólidos de saúde que conferem riscos sanitários e ambientais”, propõe um grupo de pesquisadores da Universidade de Brasília que analisou a forma de descarte de medicamentos pela população do Distrito Federal. [5]

“As informações sobre manejo e descarte adequado dos medicamentos deveriam vir descritas na bula para facilitar o acesso das pessoas a estas informações. Neste quesito, entra em cena o papel das médicas e dos médicos de orientar de forma correta seus pacientes”, disse ao Medscape a Dra. Camila Vescovi Lima, especialista em medicina de família e comunidade.

A Dra. Camila recomenda usar o momento da prescrição para lembrar as pessoas sobre o descarte adequado e promover campanhas de conscientização nas unidades de saúde, inclusive fornecendo local apropriado para o descarte destes resíduos.

“A ação individual é muito importante, mas criar momentos em grupo para abordar o tema também tem grande abrangência, e facilita a disseminação do conhecimento”, afirmou.

A Dra. Camila é coordenadora do GT de Saúde Planetária, assunto que será o tema do próximo Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade.

“A saúde ambiental diz respeito à interação que existe entre o ambiente e a saúde humana, estando mais relacionada com a saúde do ser humano, e não leva tanto em consideração a saúde do ambiente. Já a saúde planetária estuda os impactos que as mudanças ambientais globais têm na saúde humana. É um termo mais abrangente e mais apropriado.”

Médicas e médicos, principalmente aqueles que trabalham na atenção primária, têm um papel importante neste contexto. Poucas faculdades de medicina incluem este tema na grade curricular. A médica recomenda como ponto de partida para ampliar o conhecimento sobre o tema o conteúdo publicado pela SBMFC e o Curso EAD da Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS).

“É o nosso papel fazer recomendações individuais, como incentivar a troca dos meios de transporte com motores por bicicletas, estimulando assim a prática de atividade física”, exemplifica. “Mais do que isso, médicas e médicos são formadores de opinião e causam grande impacto na vida das pessoas.”

Roxana Tabakman, é bióloga e jornalista, autora de A saúde na Mídia -medicina para jornalistas, jornalismo para médicos (Ed, Summus) e co fundadora e Diretora de Conteúdo e Parcerias da RedeComCiência.

Referências bibliográficas

  1. Roveri V, Guimarães LL, Toma W, Correia AT. Occurrence and ecological risk assessment of pharmaceuticals and cocaine in a beach area of Guarujá, São Paulo State, Brazil, under the influence of urban surface runoff [published online ahead of print, 2020 Aug 10]. Environ Sci Pollut Res Int. 2020;10.1007/s11356-020-10316-y. doi:10.1007/s11356-020-10316-y https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32779066/
  2. Cassiana C. Montagner et al. Ten Years-Snapshot of the Occurrence of Emerging Contaminants in Drinking, Surface and Ground Waters and Wastewaters from São Paulo State, BrazilJ. Braz. Chem. Soc. Vol. 30, No. 3, 614-632, 2019
  3. OECD Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD) Pharmaceutical Residues in Freshwater : Hazards and Policy Responses https://www.oecd-ilibrary.org/sites/c936f42d-en/index.html?itemId=/content/publication/c936f42d-en
  4. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 222 de 2018.
  5. RAMOS, HAYSSA MORAES PINTEL, CRUVINEL, VANESSA RESENDE NOGUEIRA, MEINERS, MICHELINE MARIE MILWARD DE AZEVEDO, QUEIROZ, CAMILA ARAÚJO, & GALATO, DAYANI. (2017). DESCARTE DE MEDICAMENTOS: UMA REFLEXÃO SOBRE OS POSSÍVEIS RISCOS SANITÁRIOS E AMBIENTAIS. Ambiente & Sociedade, 20(4), 145-168. https://doi.org/10.1590/1809-4422asoc0295r1v2042017
  6. The Danish Environmental Protection Agency / MERMISS Environmentally friendly treatment of highly potent pharmaceuticals in hospital wastewater – March 2018https://www2.mst.dk/Udgiv/publications/2018/03/978-87-93614-81-9.pdf)