Paisagem antártica vista do navio Arctic Sunrise, do Greenpeace, durante expedição científica realizada em janeiro de 2020. ABBIE TRAYLER-SMITH/GREENPEACE
https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-01-30/9-um-humano-novo-na-fronteira-da-guerra-climatica.html
A Bordo Do Navio Arctic Sunrise – 30 JAN 2020
Deixo o fim do mundo e já me movo para o centro convencida de que para criar futuro precisamos enfrentar o sistema que nos levou ao colapso e nos tornar melhores ainda nesta geração
eu tempo na expedição do Arctic Sunrise na Antártida chega ao fim. Não lembro de um fim ser tão difícil. Tenho uma vida de partidas e de chegadas. Em parte porque sou jornalista, em parte porque sou eu. Meu lugar é o movimento. Estar num navio, essa casa que navega, me coube tão bem. Entendo que essa viagem, para além do conhecimento que eu tenho o dever de transmitir a vocês, produziu dois impactos em mim. E desembarco deste navio e deste continente marcada por eles.
A Antártida, certamente a maior beleza que já experimentei, transbordou de mim. Eu não tinha referências para abarcar algo tão fora da linguagem. Fui assinalada especialmente pela experiência de alcançar um lugar onde o ecossistema ainda não foi destruído, onde é possível enxergar o ciclo completo da natureza e compreender como essa tessitura é delicada. A condição de intrusa, o questionamento constante da minha presença ali, me ajudou a enxergar um mundo fora de mim.
Viver na Amazônia, onde vivo, é muitas vezes viver em ruínas, entre ruínas, nas ruínas. É testemunhar uma constante destruição. A floresta está sempre sendo quebrada por motosserra ou por fogo. Dela sempre há gente mais forte tentando arrancar minério da terra, botar soja ou boi, essa criatura viva que virou mercadoria. A luta na Amazônia é para perder menos, mas perdemos sempre. A destruição é maior do que nós, os destruidores têm muito mais poder, hoje inclusive estão no poder. Poucas coisas são mais difíceis do que lutar não para ganhar, mas para perder menos. Só um pouco menos. É assim que as lideranças indígenas, ribeirinhas e quilombolas, assim como agricultores familiares e também os ativistas, têm vivido na Amazônia. Botando o corpo diante da floresta apenas para perder um pouco menos.
Na Antártida, não ainda. É possível perceber que a pressão está aumentando. As geleiras derretem a uma velocidade assombrosa, algumas espécies de pinguins sofrem redução drástica de sua população, o continente já aqueceu devido à mudança do clima. Na península, onde estávamos, a temperatura já aumentou 3 graus Celsius. Sabemos que em breve a Antártida também poderá ser uma utopia que viverá apenas nas histórias. Mas ela ainda está lá. E sua atordoante beleza acusa toda a destruição que provocamos.
Ter estado num lugar não habitado por humanos e ver como tudo e todos vivem melhor sem nós me marcou. Os humanos, e é fundamental sublinhar isso, não são um genérico. Quando me refiro a “nós”, me refiro ao que chamamos de civilização e especialmente ao Ocidente. Aos dominantes dentro da espécie dominante, que criaram um modo de produção incompatível com a preservação da vida, que se apartaram da natureza e cobriram o mundo com uma camisa de força de concreto. Na Amazônia convivo também com outros humanos, os que perdem há pelo menos 500 anos, mas ainda assim resistem. Os povos originários, cujos ancestrais plantaram uma parte da floresta amazônica e criaram uma vida compatível com a vida. Mas que estão sendo destruídos à bala, junto com a floresta, e parte deles está sendo corrompida pelo mundo das mercadorias.
Não foi uma espécie inteira que provocou a crise climática, mas uma parte dela que, infelizmente, ainda domina os postos de poder. Não somos uma espécie destinada a destruir, a violência não é nosso caráter. Não somos nem uma unidade, isso que chamamos de humanidade não existe. Parte de nós destruiu e destrói. E é contra estes que temos que lutar mais do que jamais lutamos antes porque agora lutamos pela sobrevivência.
Estabelecer essa diferenciação é imperativo porque justo. O discurso de que estamos todos no mesmo barco é conversa para adiar o máximo possível qualquer solução porque os combustíveis fósseis, principais responsáveis pelo superaquecimento global, continuam dando muito lucro e determinando os jogos de poder. Os países mais responsáveis pela crise climática são justamente os que estão erguendo muros e barreiras para os migrantes, porque sabem que, cada vez mais, a migração é e será determinada pela crise climática. Nas próximas décadas poderá haver milhões de refugiados climáticos, e então os muros já estarão bem estabelecidos.
A ONU tem uma boa palavra para isso: Apartheid Climático. Os que mais sofrerão os efeitos serão os que menos provocaram a mudança do clima; os que mais sofrerão os efeitos são os que menos têm condições de enfrentá-los porque são os mais desamparados. A crise climática é atravessada pelas questões de raça, gênero e classe. De novo são os indígenas e os negros, as mulheres e os mais pobres que sofrerão mais e primeiro. Já está acontecendo agora.
Este é o segundo impacto dessa expedição. Ainda que por um curto período, apenas 11 dias, conviver com pessoas que compreendem que estamos vivendo uma guerra climática, que sabem que não temos escolha sobre lutar ou não lutar, que entendem que a vida mudou e que só arrancaremos um futuro possível se nos tornarmos um novo tipo de humano, foi para mim como chegar em casa. A maioria das pessoas que amo compreendem o que estamos vivendo. Mas apenas em parte. A maioria segue acreditando que pode tocar a vida como antes, fazer os mesmos planos de antes, sonhar com as mesmas coisas, criar os filhos com os mesmos princípios e dentro do mesmo roteiro. Não compreende que não existe mais a vida como antes. Que nosso planeta está sofrendo a mudança mais drástica que já sofreu desde que existimos nele. E que precisaremos lutar por políticas públicas que contenham o superaquecimento, agir para impedir a destruição de ecossistemas cruciais como a Amazônia e os oceanos e também nos adaptar ao que virá ―porque virá, já está vindo, para muitos já veio. Mesmo muita gente inteligente que lutou a vida inteira contra o racismo, a discriminação de gênero e a desigualdade social ainda não conseguiu compreender que a crise climática atravessa tudo isso e redefine os parâmetros de existência, muda o modo mesmo de existir. É algo tão grande que parece não caber no cérebro. Mas essa alienação está nos impedindo de agir.
A experiência de encontrar no Arctic Sunrise algumas pessoas que alteraram suas vidas porque compreenderam a urgência histórica me fez dormir bem pela primeira vez em muito tempo. Eu mesma escrevo com frequência que temos menos de uma década para conter o superaquecimento global em 1,5 graus até o final do século, em vez de rumar para os mais de três graus que a falta de políticas públicas nos impõe como horizonte mais provável. É importante repetir isso. Mas, ao mesmo tempo, todos estamos vendo que as negociações não avançam e que os governos cada vez mais estão sendo ocupados por homens perigosos, que negam a crise climática porque estão a serviço de interesses de grupos econômicos específicos. Também já está claro que, em várias regiões do planeta, os impactos já começaram, a vida dos mais frágeis e dos mais expostos já está ameaçada e as migrações já estão em marcha. A ideia de que seria possível manter o superaquecimento em 1,5 ou no máximo 2 graus dá à maioria das pessoas a falsa sensação de que uma solução vai surgir a qualquer momento. Somente os adolescentes perceberam que, se não praticarem a desobediência civil, no caso deles deixar de ir à escola para pressionar as autoridades, viverão o futuro num planeta hostil.
É como a própria Amazônia. Não há uma floresta coesa, mas diferentes níveis de destruição em diferentes lugares. Alguns deles já alcançaram o ponto de não retorno. Lembro da quilombola Maria do Socorro Silva, liderança de Barcarena, no encontro Amazônia Centro do Mundo, realizado em novembro. Naquele momento, Socorro estava em outra Amazônia, numa reserva extrativista da Terra do Meio, região ainda preservada, apesar do aumento da pressão de grileiros e madeireiros nos últimos anos e principalmente desde que Jair Bolsonaro assumiu o Governo. Ela olhava para uma floresta que já tinha perdido. A dela, contaminada pela companhia norueguesa Hydro Alunorte, já estava corroída. Seu corpo, devorado por um câncer que ela acredita ter sido causado pela comprovada contaminação dos rios, está tão condenado quanto a floresta.
Socorro, esta mulher de nome tão simbólico, passou dias calada olhando a Amazônia ainda viva da Terra do Meio e lembrando da floresta morta para a qual teria que voltar quando o encontro acabasse. Ela seguiria comendo alimentos contaminados e bebendo água contaminada porque não havia mais escolha para ela. Lembrei muito de Socorro de Barcarena, porque me enchia de Antártida e lembrava que teria que voltar para as ruínas de Altamira. Assim como a Amazônia vive diferentes níveis de destruição, nosso planeta já vive diferentes estágios da crise climática.
Na minha geração, o filme cult foi Matrix, lançado no final dos 1990. Nessa distopia, alguns podiam escolher se tomavam a pílula azul ou a pílula vermelha. A azul garantiria que continuassem a ver o mundo sob o véu da ilusão e seguissem desempenhando o seu papel para manter as engrenagens funcionando. A vermelha permitia ver o mundo como ele realmente era, quem a escolhia despertava do sono da ilusão. Não era a crise climática que estava em questão na trilogia das Irmãs Wachowski que marcou a história do cinema. Mas hoje é possível rever o filme a partir da crise climática, quando apesar de todos os sinais e de todas as informações, a maioria prefere negar. Mesmo não negando, nega, porque não age. Mesmo não negando, espera por um milagre ou segue agarrada à rotina possível. Só isso explica por que todos não estão lutando nas ruas e praticando a desobediência civil contra as autoridades, os governos e as corporações que condenam nosso futuro já presente um pouco mais a cada dia.
Algumas das pessoas da tripulação do Arctic Sunrise já foram presas quando participavam de ações para impedir a contaminação ambiental ou por terem resgatado migrantes em alto mar que fugiam de países em guerra. Lutar pelo coletivo, impedir a destruição do planeta, salvar pessoas da morte são ações cada vez mais criminalizadas por muitos governos, o que mostra o nível de perversão em que estamos mergulhados. E o nível de perversão aponta para a seriedade do colapso climático. Ambientalistas e ativistas estão sendo tachados de “terroristas” e tratados como tal. Esta sempre foi a estratégia de quem domina o sistema para calar a verdade inconveniente. Basta lembrar como alguns governantes e setores da extrema direita têm tratado a jovem ativista sueca Greta Thunberg, tentando fazer com que ela pareça maluca, desequilibrada ou mesmo bizarra para que sua mensagem de urgência não seja escutada.
É duro ver cientistas enfrentando condições meteorológicas perigosas a bordo de botes, engolindo água do mar pelo nariz, para colher DNA das espécies no mar antártico ou contando pinguins enquanto pisam em merda num frio polar. É duro testemunhar todo esse esforço e perceber que estão sendo tratados como inimigos por muitos governos. As evidências que a ciência está encontrando sobre os impactos da crise climática ameaçam os interesses das corporações que dominam o mundo e dos governantes que as servem. Não foi por outro motivo o ataque promovido por Bolsonaro contra o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) em 2019, que resultou na demissão de seu diretor, porque o presidente brasileiro queria apagar as evidências do aumento do desmatamento da Amazônia.
É duro ver ativistas que lutam pelo coletivo, pelo que podemos chamar de comum global, serem criminalizados, vários deles hoje esquecidos em prisões de diferentes países. Como aconteceu em novembro com os ecologistas presos em Alter do Chão, no Pará. E tantas pessoas comprando essa versão distorcida porque qualquer mentira parece um alternativa melhor do que a verdade dura. Enquanto estou na Antártida me chegam notícias cada vez piores da Amazônia, onde as lideranças não são apenas presas, mas algumas delas assassinadas. Se os brasileiros, em vez de tomar Rivotril tomassem a pílula vermelha, estariam todos lutando pela floresta ao lado dos que estão morrendo sozinhos, porque lutar pela floresta é lutar pelos filhos de todos.
Deixo a Antártida, mas a Antártida não me deixa. Começo a voltar para a Amazônia e para uma das linhas de frente da guerra climática onde cada vez há mais sangue, convencida de que temos que criar futuro. Não tenho ilusões de que vamos conseguir barrar o superaquecimento global com os governantes que estão aí e com a falta de ação da maioria da população. Mas, se é num planeta pior que teremos que viver, talvez sejamos capazes de criar um humano melhor a partir do conhecimento dos humanos que sabem viver na natureza sem destruí-la nem consumi-la até o extermínio.
Sini Saarela, uma finlandesa alta, magra e feita de uma pele translúcida, com olhos muito azuis e longos cabelos vermelhos, esteve entre os 30 ativistas do Greenpeace presos na Rússia em 2013 por tentar impedir a exploração de petróleo no Ártico. Estar numa prisão russa é não saber se vai ficar lá por dois dias ou a vida inteira. Sini ficou por dois meses. Durante os primeiros 45 dias foi confinada sozinha numa cela. Ela e as companheiras criaram um código de batidas para conseguirem se comunicar. Nenhuma conversa mais elaborada, apenas para saber que a outra estava viva. Durante os últimos 15 dias Sini ficou presa com mulheres doentes. Uma delas mentalmente comprometida e bastante agressiva, gritava à noite. Ameaças em russo que Sini não podia compreender. Ao ser libertada, Sini fez uma tatuagem no braço para marcar o que viveu. São matrioscas, aquelas bonecas russas que cabem uma dentro da outra. As de Sini, porém, vão se abrindo, como as tantas camadas de si mesma que ela teve que atravessar para manter a sanidade e a capacidade de seguir lutando.
Ao final do percurso, não há uma boneca minúscula como no brinquedo tradicional, mas sim um pássaro que voa para a liberdade. “Mesmo que me prendam fisicamente, dentro de mim eu sou livre”, ela me diz. Nesta viagem, a tatuagem no braço de Sini era iluminada pela luz do verão antártico. Tornou-se para mim uma espécie de farol naquele navio de tantas batalhas que agora navega também em mim. Termino esse diário com ela, porque 2020 será brutal. Quem sabe, porém, mais gente possa atravessar suas camadas de negação e libertar a mente para se juntar à tarefa coletiva ―e inadiável― de criar um humano novo no futuro que formos capazes de imaginar.