Dos Cerrados: de saberes vernaculares e de conhecimento científico

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Rios do – Piauí (Rosilene Miliotti/FASE)

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por Carlos Walter Porto-Gonçalves

16 de dezembro de 2019

A desconsideração da rica diversidade cultural e biológica dos Cerrados por parte das elites econômicas, políticas e acadêmicas, autorizou que, nesses últimos anos, as áreas de Cerrados fossem ocupadas pela expansão de um processo de (des)envolvimento agrário/agrícola com base na quincentenária monocultura empresarial de exportação, cujo impacto socioambiental pode ser observado de diversas formas: na violência contra seus ocupantes tradicionais; no acentuado êxodo rural com suas sequelas de perda de diversidade cultural.

Tudo se passa como se só restasse aos Cerrados um destino único: o que vem sendo dado pela expansão da monocultura empresarial de exportação com os seus latifúndios. Ao contrário dos muitos elogios, tanto na mídia como nos meios acadêmicos, ao sucesso do agronegócio que avança pelos Cerrados, há uma avaliação diferente, que não encontra espaço de divulgação. É para isso que lideranças comunitárias de camponeses, quilombolas e povos indígenas, técnicos e cientistas de universidades, além de organizações, redes e movimentos sociais, vêm chamando a atenção para as contradições acerca do destino que a sociedade brasileira vem dando aos Cerrados e suas áreas de transição, sobretudo após a fundação de Brasília, em 1960.

A desconsideração da rica diversidade cultural e biológica dos Cerrados por parte das elites econômicas, políticas e acadêmicas, autorizou que a degradação das condições ecológicas; no desequilíbrio hídrico (rios perenes que se tornam intermitentes ou, simplesmente, deixam de existir); na contaminação dos rios pelo uso de agrotóxicos e, ainda, em uma extrema concentração fundiária, de poder e de riqueza. Por trás da figura mais aparente do latifundiário há, cada vez mais, uma cadeia corporativa e financeira de mais difícil tangibilidade.

Atualmente, mais de 50% dos Cerrados foram derrubados, sobretudo para a expansão dos latifúndios empresariais voltados principalmente para a exportação, tal como já se fazia no século XVI. Sob denominações marcadas por anglicismos como commodities e agribusiness, que parecem abençoar a prática colonial secular, olvida-se que esse padrão de acumulação de capital produz riqueza para poucos, violência para a maioria dos camponeses, quilombolas e indígenas, e devastação ambiental para todos ainda que sofrida desigualmente segundo os grupos sociais.

Colonialidade

Não restam dúvidas de que a colonialidade do saber e do poder (Quijano, 2005) aqui se fez presente com toda a força, tanto com relação às populações dos Cerrados como da Amazônia, populações que detêm um importante conhecimento de regiões que já habitam há mais de 11 mil anos. Nenhum grupo social, povo, etnia ou comunidade habita uma área, seja ela qual for, sem produzir conhecimento. Não se come sem saber plantar, sem saber pescar, sem saber coletar ou sem saber criar animais. Reconhecer a ocupação milenar dos Cerrados e das Amazônias implica reconhecer que ali há um enorme patrimônio de conhecimentos que tende a se perder quando avança sobre a região um modo de ocupação societário que se caracteriza por ser “uma agricultura sem agricultores” (Teubal, 2008).

Este modo de ocupação desqualifica os grupos/classes sociais (e seus saberes) que habitam a região tradicionalmente e, assim, se sente autorizado a expulsar essas populações dos espaços ecológico-culturais nos quais desenvolveram os seus conhecimentos. Assim, tanto os Cerrados são considerados como o mal menor em relação à Amazônia quanto a própria Amazônia é julgada como se fosse mais frágil, seja lá o que isso signifique.

Invisibilização dos povos

A invisibilização desses povos, produzida pela colonialidade do saber e do poder, impede, assim, que se possa incorporar o conhecimento dessas populações para um projeto de envolvimento da região, diferente do (des)envolvimento dos últimos 50 anos. Com isso, ignora-se que os Cerrados brasileiros reúnem uma rica diversidade biológica – eis o absurdo a que se chegou numa época em que a diversidade biológica e todo o conhecimento a ela associado se tornaram valor estratégico.

Destaca-se que o Cerrado contínuo e as suas áreas de transição ocupam aproximadamente 36% do território brasileiro. A informação de que os Cerrados detêm uma enorme diversidade biológica e um enorme acervo de conhecimentos que fazem parte do habitat e do habitus (Bourdieu) dos seus habitantes surpreende, tão forte é o imaginário acerca dessas “árvores tortas de tão vastas extensões de terras vazias”.

O imaginário dominante sobre os Cerrados é moderno-colonial, construído sobre os Cerrados e não a partir dos Cerrados. Poder-se-ia mesmo dizer que se trata de um imaginário dominante construído contra os Cerrados e seus povos, na medida em que, ao ignorar as populações dessas vastas regiões, se atualiza um dos principais mitos da ideologia colonial – o vazio demográfico.

Os Cerrados, o Pampa e a Caatinga ficaram de fora dos ecossistemas considerados como patrimônio nacional pela Constituição Federal de 1988, ao contrário do Pantanal, da Mata Atlântica e da Amazônia, como também é mais difícil obter financiamento e apoio para garantir que a rica biodiversidade e o acervo de conhecimentos, tecidos pelos povos que aí habitam, encontrem condições para se reproduzir.

Cerrados e seus povos: um outro lugar num outro mapa

Os Cerrados Brasileiros apresentam uma rica diversidade biológica, entre outras razões, por sua localização geográfica, posto que fazem contato com todos os outros grandes ecossistemas brasileiros, exceto o Pampa. Considere-se, ainda, que três das regiões mais complexas do ponto de vista ecológico do país têm relação com os Cerrados, a saber: as duas maiores áreas continentais alagadas do planeta – o Pantanal mato-grossense e as Várzeas do Araguaia –, bem como a Zona dos Cocais (com seus Babaçuais, Carnaubais e Buritizais), no Maranhão e Piauí.

Em pesquisa feita entre 2002 e 2006 junto à Articulação dos Povos dos Cerrados levantou-se questões de ordem epistêmica e política e, consequentemente, com importantes efeitos na compreensão do debate acerca dos Cerrados, inclusive quanto à sua extensão territorial. O debate quase sempre se apoia no conceito de bioma, que implica grandes extensões territoriais e, aqui, o que propomos junto com esses grupos/classes sociais, etnias e povos é uma leitura que se inspira nos nichos, ampliando o conhecimento dos cerrados para além da leitura que se faz a partir da escala dos biomas.

A área definida como Cerrado é de 23,8% do território brasileiro segundo o IBGE, enquanto a área aqui considerada é de aproximadamente 36% do território nacional, já que consideramos o Cerrado e suas áreas de transição (ecótonos). O critério fundamental que tomamos em conta foi o diálogo dos saberes vernaculares dos grupos/classes sociais, etnias e povos dos Cerrados com a literatura científica, em particular com a obra de um dos maiores geógrafos brasileiros, Aziz Ab’Saber, e a produção técnico-científica do IBGE.

Nas palavras do indígena Anísio, do povo Guató do Pantanal Mato-grossense, “a natureza quando se encontra não subtrai, não se divide. Ela se multiplica. Ali a vida é mais”. Ou como uma camponesa de Mato Grosso que, indagada sobre o tipo de solo que ela usava, nos disse que o solo “era tipo pele de onça”, explicando, em seguida, que era um solo em manchas que ela usava para plantios diversos, segundo o tipo de mancha. As populações que aí vivem e que teceram os seus mundos de vida em contato com essa rica biodiversidade deveriam merecer todo o apoio pelo conhecimento que detêm. Conhecimento esse que se caracteriza justamente pela sutileza, pelo detalhe e que é, portanto, mais adequado para essas áreas de alta complexidade, como são os ecótonos.

As ameaças do (des)envolvimento

Desde o tempo da ditadura empresarial-militar (1964-1985), os Cerrados se tornaram o novo centro dinâmico do processo de acumulação de capital. Na verdade, trata-se rigorosamente do aprofundamento da modernização conservadora que nos coloniza há cinco séculos, com graves consequências sociais e ambientais, tal como verificamos na intensidade de conflitos nos Cerrados e na Amazônia nos últimos 40 anos. De um total de 7.353 localidades onde, entre 2003 e 2018, ocorreram conflitos por terra no campo brasileiro, 40,5% delas estavam nos Cerrados e nos seus ecótonos.

A nova fronteira de expansão/invasão de acumulação capitalista contra os Cerrados e seus povos – o MATOPIBA – foi posta em prática por Dilma Rousseff, em 2010, e vem contando para isso com investimentos de grandes capitais de fundos de pensão de origem dos países centrais. Merece registro que tais fundos de pensão fazem vista grossa às denúncias recorrentes dos grupos/classes sociais que resistem a essa expansão/invasão, apontando que a maior parte das terras que adquirem têm títulos de propriedade viciados por meio de grilagem. Acrescente-se a perversa e injusta concentração fundiária, com seus imensos latifúndios, que desafortunadamente se mostra conveniente para os grandes capitais especulativos sedentos por novos ativos financeiros, haja vista que somente com uma transação de compra e venda obtêm uma grande extensão de terras. Assim, a violência colonial se atualiza.

Cerrados: a caixa d’água do Brasil

Os extensos e antiquíssimos chapadões sedimentados desde o Paleozoico, com suas topografias planas, paisagem geomorfológica dominante nos Planaltos Centrais dos nossos Cerrados, se constituem na mais importante área de recarga hídrica de todo o país, assim como uma das maiores reservas de água doce do mundo, onde nascem importantes rios do Brasil e do continente sul-americano – o Paraguai e seus formadores (entre eles o Cuiabá); o Paraná e seus formadores (por exemplo, o Paranaíba); o São Francisco, o Doce, o Jequitinhonha, o Parnaíba, o Itapecuru, o Tocantins, o Araguaia, o Tapajós, o Xingu, além de vários afluentes do caudaloso rio Madeira. Esse fato valeu aos Cerrados o epíteto de “caixa d’água” do Brasil. Ademais, as duas maiores extensões de terras continentais alagadas do planeta – o Pantanal Mato-grossense e os “varjões” do Araguaia – têm a sua dinâmica hidrológica relacionada aos Cerrados e suas chapadas.

Assim, um outro mito, também repetido ad nauseam, que ressalta a relação entre disponibilidade de água e a existência de florestas, cai por terra. Não que não exista essa relação, sublinhe-se. Todavia, é preciso considerar que a disponibilidade de água é mais complexa do que sugere essa relação unívoca com as florestas. Afinal, a maior “caixa d’água” do país é a região dos Cerrados com suas chapadas, área de recarga hídrica que não tem proteção na legislação ambiental, a qual protege o topo dos morros florestados e as beiras dos rios, mas não protege o topo das extensas chapadas dos Cerrados.

A água que infiltra desde as chapadas alimenta o lençol d’água, as fontes e as nascentes dos rios, assim como os solos para a agricultura nas veredas, onde estão as matas galerias e as matas ciliares. Uma compreensão mais holística dos Cerrados nos aponta claramente para a dependência das matas ciliares e das matas galerias da recarga hídrica das chapadas e, assim, essas matas estariam mais protegidas por uma legislação que protegesse as chapadas, do que por uma legislação que proteja diretamente as matas galerias e matas ciliares. É preciso ver o geosistema como um todo e, para isso, ouvir os Povos dos Cerrados é fulcral. Os povos que tradicionalmente habitam os cerrados plasmaram seus espaços de vida com duas unidades da paisagem – as chapadas e as veredas – que usam de modo complementar. Nas chapadas, extraem mais de 200 produtos alimentícios, ornamentais e medicinais e, ainda praticam uma pecuária onde não raro fazem uso comum da terra (fundo e fecho de pasto) e, nas veredas, usam para a pequena agricultura. Guimarães Rosa compreendeu bem a inteligência desses povos dos cerrados e deu título à sua obra prima: Grandes Sertões, Veredas.

É preciso ouvir os Povos dos Cerrados, tal como o fez Guimarães Rosa. O fato de o livro Grande Sertão, Veredas circular em tantas línguas indica o caráter universal da singularidade dos Cerrados e dos seus povos, e que há várias formas/modos de produção de conhecimento universalizáveis e não só UM. Talvez, quem sabe, devêssemos falar mais de pluriversalidade, de transversalidade ou mesmo de universalidades, no plural, e não no singular, como quis o eurocentrismo. Não nos deixemos enganar: epistemicídio e ecocídio caminham juntos e, por isso, devemos prestar mais atenção à máxima deixada por Chico Mendes que “não há defesa da floresta sem os povos da floresta”, máxima essa recuperada pelos Povos dos Cerrados quando disseram que “não há defesa do Cerrado, sem os povos do Cerrado” (Carta do Maranhão, 2002).

Esse texto é uma síntese da publicação “Dos Cerrados e de suas riquezas: de saberes vernaculares e de conhecimento científico”, produzida pela FASE e Comissão Pastoral da Terra – CPT. Download gratuito da publicação clicando aqui.

Carlos Walter Porto-Gonçalves é professor titular do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior, entre eles: Geo-grafias – movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentabilidad, ed. Siglo XXI, México, 2001; Territorialidades y Lucha por el territorio en América Latina: geografía de los movimientos sociales en América Latina. Ed. IVIC, Caracas, Venezuela, 2009; e Amazonía: encrucijada civilizatoria: tensiones territoriales en curso, IPDRS, La Paz, Bolívia, 2008. Prêmio Chico Mendes em Ciência e Tecnologia (2004), prêmio Casa de las Américas em Literatura Brasileira (2008) e prêmio Milton Santos (2019) concedido pelo Encontro de Geógrafos da América Latina.