“A História é muitas vezes feita por personalidades fortes empunhando novas ousadas doutrinas políticas, econômicas ou religiosas. No entanto, qualquer esforço sério para compreender como e por que as sociedades mudam requer o exame não apenas de líderes e ideias, mas também de circunstâncias ambientais. O contexto ecológico (clima, tempo, e a presença ou ausência de água, solo bom, e outros recursos) pode se apresentar ou encerrar oportunidades para aqueles que querem sacudir o mundo social. Isto sugere que se você quiser mudar a sociedade, ou que está interessado em ajudar ou avaliar os esforços de outros para fazê-lo, alguma compreensão de como exatamente as circunstâncias ambientais afetam esses esforços poderiam ser extremamente úteis.” Escreve o jornalista Richard Heinberg do Post-Carbon Institute em texto originalmente publicado por Resilience.org, em 16-06-2014. A tradução é de Caio Fernando Flores Coelho.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/535872-voce-quer-mudar-o-mundo-a-relacao-entre-mudancas-climaticas-recursos-energeticos-e-a-infraestrutura-da-sociedade
Eis o artigo.
Talvez a chave mais importante para compreender a relação entre o ambiente e os processos de mudança social tenha sido articulada pelo antropólogo americano Marvin Harris (1927-2001). Desde o início de seus esforços para estudar sistematicamente as sociedades humanas nos séculos XVIII e XIX, estava claro que havia uma forte correlação entre a forma como as sociedades obtêm seu alimento (seja por caça e coleta, horticultura, agricultura, pastoreio de animais, ou de pesca) e suas estruturas sociais e crenças sobre o mundo. Caçadores-coletores geralmente vivem em pequenos bandos itinerantes, têm uma estrutura social igualitária, e consideram o mundo natural cheio de poderes sobrenaturais e personalidades que podem ser contatados ou influenciados pelos xamãs. Os agricultores, por outro lado, ficam em um lugar e produzem excedentes sazonais que muitas vezes acabam por subsidiar a formação de cidades, bem como classes de especialistas de tempo integral em diversas atividades (metalurgia, estadismo, belicismo, salvaguarda de bens, manutenção de registros e assim por diante); sociedades agrícolas também tendem a desenvolver as religiões formais presididas por uma classe sacerdotal hierárquica de tempo integral. Estas distinções sistêmicas e semelhanças têm se mantido fiéis em diferentes continentes e ao longo dos séculos. Harris mostrou como mudanças de um tipo de sistema de alimentação para outro foram impulsionadas pela oportunidade ambiental e pela necessidade, e ele refinou suas ideias sobre uma estratégia de pesquisa antropológica. [1]
A magnum opus de Marvin Harris foi o difícil livro book Cultural Materialism: The Struggle for a Science of Culture(Materialismo Cultural: A luta por uma Ciência da Cultura, 1979). Embora ele fosse perfeitamente capaz de escrever para outros públicos gerais – entre seus títulos Cows, Pigs, Wars and Witches (1974) e Cannibals and Kings (1977) foram best-sellers – em Cultural Materialism, Harris estava escrevendo para companheiro antropólogos. O livro é cheio de jargão técnico, e seu autor argumenta meticulosamente cada ponto, apresentando um excesso de provas. No entanto, o cerne da contribuição teórica de Harris pode ser resumido brevemente.
Todas as sociedades humanas são compostas por três esferas inter-relacionadas: em primeiro lugar, a infraestrutura, que compreende as relações de uma sociedade ao seu ambiente, incluindo os seus modos de produção e reprodução – pense primariamente em suas formas de obtenção de alimentos, energia e materiais; segundo, a estrutura, que compreende as relações econômicas, políticas e sociais de uma sociedade; e terceiro, a superestrutura, que consiste em aspectos simbólicos e ideacionais de uma sociedade, incluindo as suas religiões, artes, rituais, esportes e jogos, e ciências. Inevitavelmente, essas três esferas se sobrepõem, mas elas também são distintas, e é literalmente impossível encontrar uma sociedade humana que não possua todas as três em constante permuta.
Para os defensores da mudança social, é o que vem a seguir que deve agitar os neurônios. O “materialismo cultural” deHarris [2] defende o princípio do que ele chama de “determinismo infraestrutural probabilístico.” Ou seja, a estrutura e superestrutura das sociedades são sempre contestadas em um grau ou outro. Batalhas sobre distribuição da riqueza e sobre ideias são perenes, e podem ter consequências importantes: a vida na antiga Alemanha Oriental era muito diferente da vida na Alemanha Ocidental, mesmo que ambas fossem nações industriais que operavam sob (o que sempre foi desde o começo) condições ecológicas idênticas. No entanto, a mudança de sociedade realmente radical tende a ser associada com as mudanças da infraestrutura. Quando a relação básica entre a sociedade e seu ecossistema se altera, as pessoas tendem a reconfigurar seus sistemas políticos, econômicos e ideológicos de acordo, mesmo que sejam perfeitamente felizes com o estado anterior de coisas.
Sociedades mudam sua infraestrutura em casos de necessidade (por exemplo, devido ao esgotamento dos recursos) ou oportunidade (geralmente devida a maior disponibilidade de recursos, disponibilizados talvez pela migração para um novo território ou pela adoção de uma nova tecnologia). A Revolução Agrícola de 10.000 anos atrás representou uma grande mudança de infraestrutura, e a energia fóssil da Revolução Industrial, há 200 anos, tinha ainda maior e mais rápido impacto. Em ambos os casos, os níveis de população aumentaram, as relações políticas e econômicas evoluíram, e as ideias sobre o mundo transformaram-se profundamente.
Explicar o exemplo anterior em mais de detalhes pode ajudar a ilustrar o conceito. Harris foi um dos primeiros a adotar o ponto de vista agora comum da Revolução Agrícola como uma resposta adaptativa às mudanças ambientais no final do Pleistoceno, um período de mudança climática dramática. As geleiras foram recuando e espécies (especialmente grandes presas herbívoras, como mamutes e mastodontes) enfrentaram a extinção, especialmente com a predação humana auxiliando neste processo. “Em todos os primevos centros de atividade agrícola”, escreveu Harris, o fim do Pleistoceno viu um alargamento notável da base de subsistência para incluir mamíferos menores, répteis, aves, moluscos e insetos. Tais sistemas “de largo espectro” eram um sintoma de tempos difíceis. À medida que os custos de trabalho dos sistemas de subsistência de caçadores-coletores cresce, e como os benefícios caíram, modos sedentários alternativos de produção tornaram-se mais atraente.
Estilos de vida com base no cultivo criaram raízes e se espalharam, e com eles (eventualmente) vieram aldeias e tribos. Em certos lugares, o último, por sua vez transformou-se para produzir a invenção social mais radical de todas, o Estado:
As infraestruturas paleotécnicas mais passíveis de alterações intensificadas, de redistribuição e de expansão das funções gerenciais foram aquelas baseadas nos grãos e ruminantes complexos do Oriente Próximo e Médio, sul da Europa, norte da China, e do norte da Índia. Infelizmente essas foram justamente os primeiros sistemas a cruzar o limiar de um Estado, e que, portanto, nunca puderam ser diretamente observadas por historiadores ou etnólogos. No entanto, a partir da evidência arqueológica de armazéns, da arquitetura monumental, de templos, de altos túmulos, de fossos defensivos, paredes, torres e o crescimento dos sistemas de irrigação, é evidente que as atividades de gestão semelhantes às observadas entre os sobreviventes de tribos pré-estatais sofreram rápida expansão nessas regiões críticas imediatamente anteriores ao aparecimento do estado. Além disso, há provas abundantes de encontros romanos com “bárbaros” do norte da Europa, assim como temos registros a partir de escrituras hebraicas e indianas, nórdicas, germânicas e de sagas celtas sobre como guerreiros “intensificadores de processos”, redistribuidores e seus sacerdotes “retentores” constituíam os núcleos das primeiras classes dominantes no Velho Mundo.
Embora eu tenha omitido a maioria da explicação detalhada de Harris, no entanto, temos aqui, em essência, uma explicação ecológica para a origem da civilização. Além disso, Harris não está meramente propondo uma história divertida “apenas porque sim”, mas mostra uma hipótese científica que é testável dentro dos limites da evidência disponível.
O materialismo cultural é capaz de iluminar não apenas grandes mudanças sociais, tais como a origem da agricultura ou do Estado, mas as funções mais profundas de instituições e práticas de muitos tipos culturais. O excelente livro de Harris Cultural Anthropology (2000, 2007), em co-autoria com Orna Johnson, inclui capítulos com títulos como “Reprodução”, “Organização Econômica”, “Vida Doméstica” e “classe e casta”; cada um possui barras laterais ilustrativas que mostram como uma prática cultural relevante (pacificação entre os Mehinacu do Brasil central, a poliandria entre os Nyimba do Nepal) é adaptável a necessidade ambiental. Ao longo deste e de todos os seus livros, na verdade, ao longo de toda sua carreira, Harris teve como objetivo mostrar que o determinismo infraestrutural probabilístico é a única base sólida para uma verdadeira “ciência da cultura” que é capaz de produzir hipóteses testáveis para explicar por que as sociedades evoluem suas “formas de fazer”.
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Por que isso é importante neste momento? Pela simples razão de que nossa sociedade está à beira de uma enorme transformação da infraestrutura.
O que é notável, porque ainda estamos sofrendo com a mudança anterior, que começou apenas há um par de séculos. Ocombustível fóssil na Revolução Industrial implicou uma mudança de dependência de fontes de energia renovável em sua maioria, mais barata – lenha, grandes culturas, algum poder de água, vento de velas, e os músculos de animais para tração – a uma energia mais controlável, mais densa e (no caso do petróleo) a fontes mais portáteis e não-renováveis.
O petróleo nos deu a capacidade de aumentar dramaticamente a velocidade com que extraímos e transformamos a generosidade da Terra (através de máquinas de mineração, tratores e barcos de pesca motorizados), bem como a capacidade de transporte de pessoas e materiais em alta velocidade e com pouco custo. Ele e os outros combustíveis fósseis também têm servido como matérias-primas para expandir indústrias químicas e farmacêuticas e permitiram uma intensificação dramática da produção agrícola, reduzindo a necessidade de trabalho no campo. Os resultados de nossa infraestrutura de abastecimento fóssil incluíram o rápido crescimento da população, o crescimento da classe média, níveis sem precedentes de urbanização e construção de uma economia de consumo. Enquanto os elementos daRevolução Científica estavam disponíveis dois séculos antes da nossa adoção de combustíveis fósseis, a energia fóssil barata forneceu um meio de expandir enormemente a pesquisa científica e aplicá-la para o desenvolvimento de uma ampla gama de tecnologias que são, elas próprias, derivadas direta ou indiretamente de combustíveis fósseis. Com a mobilidade crescente, a imigração aumentou muito, e o Estado-Nação multiétnico democrático tornou-se a instituição política emblemática da época. À medida que as economias se expandiam quase continuamente, devido à disponibilidade de energia abundante e de alta qualidade, a teoria econômica neoliberal surgiu como ideologia principal do mundo da gestão social. Ela logo evoluiu para incorporar várias noções, embora logicamente insuportáveis para o ambiente, mas não impugnadas, incluindo a crença de que as economias podem crescer para sempre e no pressuposto de que todo o mundo natural é apenas um subconjunto da economia humana.
Agora, no entanto, o nosso “ainda novo” regime infraestrutural baseado em combustíveis fósseis já está mostrando sinais de encerramento. Há duas razões principais. Uma delas é a mudança climática: o dióxido de carbono produzido na queima de combustíveis fósseis é o causador da criação de um efeito estufa que está aquecendo o planeta. As consequências disto serão algo entre graves e cataclísmicas. Se continuarmos a queima de combustíveis fósseis, estamos mais propensos a ver um resultado catastrófico, o que poderia tornar a continuação da agricultura industrial, e, talvez, da própria civilização, problemática. Nós temos a opção de encerrar drasticamente o consumo de combustíveis fósseis, a fim de evitar uma mudança climática catastrófica. De qualquer maneira, no entanto, a nossa infraestrutura atual será uma vítima.
A segunda grande razão para que nossa infraestrutura baseada nos combustíveis fósseis esteja em perigo tem a ver com o esgotamento. Nós não estamos esgotando no sentido absoluto nossas fontes de carvão, petróleo ou gás natural, mas temos extraído esses recursos não renováveis usando o princípio da fruta que está pendurada mais embaixo. Com o petróleo, dos combustíveis fósseis o mais importante estrategicamente (por causa de sua centralidade para os sistemas de transporte), que já atingiu o ponto de retornos decrescentes. Em comparação com uma década atrás, a indústria global de petróleo mais do que duplicou a sua taxa de investimento em exploração e produção, enquanto as taxas reais de produção de petróleo bruto mundial têm se estabilizado. Os custos de produção estão subindo, e perfuradoras estão focando suas ações em formações geológicas que antes eram consideradas muito problemáticas para valer o esforço. Com o petróleo, o destino da economia mundial parece cair sobre o resultado de uma corrida entre tecnologia e exaustão: enquanto porta-vozes especialistas da indústria e da mídia tendem a positivar novas tecnologias, como o fraturamento hidráulico, a persistência dos elevados preços do petróleo e o aumento dos custos de produção sugerem que o esgotamento é, de fato, o que temos pela frente. Similarmente, a diminuição de taxas de retornos com carvão e com a produção de gás natural provavelmente serão realidade na próxima década, tanto nos EUA como no mundo como um todo.
No mínimo, as alterações climáticas e o esgotamento dos combustíveis fósseis vão forçar a sociedade a mudar para diferentes fontes de energia, trocando-se a dependência de energia densa e controlável como carvão, petróleo e gás em favor das fontes renováveis mais difusas e intermitentes, como a eólica e a solar. Isso por si só já é suficiente para se ter enormes implicações sociais. Enquanto carros de passeio elétricos rodando em energia fornecida por turbinas eólicas epainéis solares são viáveis, aviões elétricos, navios porta-contêineres e caminhões de 18 rodas não são. Geração de eletricidade a partir de energias renováveis, bem como a diminuição do transporte marítimo mundial e do transporte aéreo, pode favorecer padrões menos globalizados e mais localizados de organização econômica e política.
No entanto, devemos também considerar a forte probabilidade de que nosso iminente e inevitável afastamento dos combustíveis fósseis vai implicar em uma redução substancial na quantidade de energia útil disponível para a sociedade. O vento e a luz solar são abundantes e livres, mas a tecnologia usada para capturar energia a partir destas fontes ambientes é feita a partir de minerais não-renováveis e metais. A mineração, fabricação e atividades de transporte necessárias para a produção e instalação de turbinas eólicas e painéis solares atualmente requerem petróleo. Pode, teoricamente, ser possível substituir petróleo por eletricidade a partir de fontes renováveis, ao menos alguns desses processos, mas para as futuras previsíveis tecnologias eólica e solar podem ser melhor encaradas como extensões do combustível fósseis.
A energia nuclear, com a sua dependência inquebrantável em mineração e transporte, é também uma extensão do combustível fóssil – mas muito mais perigosa, graças a seus problemas não resolvidos com acidentes, com a proliferação nuclear, e com o armazenamento de resíduos. Quando se leva em conta a construção e desmantelamento de centrais, a extração e o beneficiamento de urânio, a energia nuclear também oferece um retorno de energia relativamente baixo na energia investida em produzi-la.
Retorno relativamente baixo sobre o investimento de energia a partir de fontes de energia nucleares e renováveis pode resultar em mudança societária. O índice de retorno de energia investida de combustíveis fósseis foi extremamente elevado em comparação com a de fontes de energia disponíveis anteriormente. Este foi um fator importante na redução da necessidade de trabalho de campo agrícola, que por sua vez levou à urbanização e ao crescimento da classe média. Algumas fontes de energia renováveis oferecem um índice melhor do que lenha ou culturas agrícolas, mas nenhum pode se comparar com o carvão, petróleo e gás em seu auge. Isto sugere que as consequências sociais do final de energia fóssil barata pode incluir uma re-ruralização parcial da sociedade e um encolhimento da classe média (o último processo já está começando nos Estados Unidos).
Com menos energia útil disponível, a economia mundial vai deixar de crescer, e provavelmente vai entrar em um período prolongado de contração. Aumento da eficiência energética pode amortecer o impacto, mas não pode evitá-lo. Com as economias sem crescimento, a nossa atual ideologia político-econômica neoliberal mundialmente dominante vai ser cada vez mais posta em causa até ser, eventualmente, derrubada.
Enquanto a energia é fundamental para a infraestrutura da sociedade, outros fatores exigem consideração. Oscombustíveis fósseis estão a ser esgotados, mas assim como estão uma série de importantes recursos adicionais, incluindo metais, minerais, solo e água. Até agora, o que temos feito em relação a este esgotamento é investir mais energia na mineração de minérios de grau inferior, substituindo os nutrientes do solo com fertilizantes comerciais (muitos feitos de combustíveis fósseis), e no transporte de água, comida e outros bens dos locais de abundância local para regiões em que esses materiais são escassos. Esta estratégia tem aumentado a capacidade de suporte humano do nosso planeta, mas é uma estratégia que pode não funcionar muito mais enquanto a energia se torne mais escassa.
Outras alterações nas relações entre o meio ambiente e a sociedade irão surgir com a mudança climática. Mesmo admitindo que as nações em breve se comprometam com reduções drásticas nas emissões de carbono, as emissões passadas acumuladas praticamente garantem a continuidade e aumentam os impactos que incluem o aumento dos níveis do mar, enquanto secas e inundações pioram. Em meados do século, centenas de milhões de refugiados do clima podem estar em busca de habitat seguro.
Há maneiras otimistas de ver o futuro, com base em premissas que os combustíveis fósseis são, na verdade, abundantes e irão durar mais um século ou mais, que as novas tecnologias de energia nuclear serão mais viáveis do que as atuais, que as energias renováveis podem ser ampliadas de forma rápida, e que os prováveis impactos das alterações climáticas têm sido superestimados. Mesmo que um ou mais desses pressupostos tornem-se corretos, no entanto, a evidência da diminuição do rendimento dos investimentos energéticos e financeiros na extração de petróleo não pode ser desconsiderada. Uma mudança de infraestrutura está em andamento. Considerando-se o papel do petróleo na agricultura industrial, essa mudança irá sem dúvida impactar profundamente nosso sistema alimentar e nutricional (que é a nossa fonte de energia mais básica, a partir de uma perspectiva biológica), sendo este o cerne da infraestrutura de cada sociedade. Sendo os pressupostos otimistas válidos ou não, provavelmente nós enfrentaremos uma transformação da infraestrutura, pelo menos, tão importante como a Revolução Industrial.
Mas as estatísticas de erro sobre fornecimento de energia e sensibilidade climática incluem possibilidades mais pessimistas. Uma vez que as taxas de fornecimento de energia fóssil útil comecem a vacilar, isso poderia desencadear uma implosão do sistema financeiro global, bem como conflitos internacionais. Também é possível que a relação entre as emissões de carbono e temperaturas atmosféricas sejam não-lineares, com o sistema climático da Terra sujeito a respostas autorreforçadas que poderiam resultar em uma morte em massa de espécies, incluindo a nossa.
Escolha os seus pressupostos – otimistas, pessimistas, ou algo intermediário. Em qualquer caso, esta é uma grande questão.
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Nós estamos vivendo em um momento histórico em que a estrutura da sociedade (sistemas econômicos e políticos) e sua superestrutura (ideologias) estão prestes a ser desafiadas, talvez como nunca antes. Quando a infraestruturamuda, o que aparentemente era sólido funde-se com o ar, os paradigmas se quebram, e as instituições se desintegram, até que um novo regime social emerge. Pense em um lagarta saindo do casulo, seus sistemas de órgãos evidentemente sendo reduzidos a protoplasma antes de reorganizarem-se nas características de uma borboleta. Que oportunidade perfeita para uma intenção idealista em mudar o mundo!
De fato, falhas já estão aparecendo por toda a sociedade. De um ponto de vista cultural materialista, a mais importante delas diz respeito a como ocorrerá esta inevitável mudança de infraestrutura. Os defensores da distribuição de energias renováveis são os azarões, e os defensores de sistemas de energia fóssil centralizados são responsáveis por aprofundar as disputas sobre os subsídios e outros elementos da política energética do governo. Enquanto isso, a oposição popular a métodos extremos de extração de combustíveis fósseis está surgindo em toda parte onde empresas estão extraindo petróleo e gás, por perfuração em águas profundas, por extração de areias betuminosas, ou explodindo montanhas para minas de carvão. A oposição a um oleoduto está alimentando um dos incêndios políticos mais quentes em Washington, DC, e a preocupação com as mudanças climáticas adquiriu uma dimensão intergeracional, com os jovens em toda a América processando governos estaduais e órgãos federais por não desenvolver planos de ação sobre o clima. Os jovens, afinal, são os que se defrontarão com mais força com as consequências das mudanças climáticas, e sua atitude para com as gerações mais velhas pode não ser indulgente.
Nós também estamos vendo o aumento de conflito na estrutura da sociedade – os seus sistemas de distribuição econômica e tomada de decisão política. Como o crescimento econômico leva normalmente a uma estagnação, a rica classe de investidores do mundo está em busca de garantir a sua solvência e manter os seus lucros, transferindo custos para o público em geral através de resgates, medidas de austeridade e de flexibilização quantitativa (o que reduz as taxas de juros, a lavagem de dinheiro em poupança, contas e no mercado de ações). Trabalhos se reduzem e os salários caem, mas o número de bilionários aumenta. No entanto, a crescente desigualdade econômica tem seus próprios custos políticos, conforme documentado no livro mais vendido recentemente na Amazon, um tomo de 700 páginas chamado O Capital no Século XXI, que, infelizmente, não consegue alcançar a mudança de infraestrutura que está sobre nós ou as suas implicações para a economia e a sociedade. As pesquisas mostram crescente insatisfação com os líderes e partidos políticos em todo o Ocidente. Mas na maioria dos países, não há grupo de oposição organizado pronto para tirar proveito deste descontentamento generalizado. Em vez disso, as instituições políticas e econômicas estão perdendo legitimidade.
Tremores de infraestrutura também estão reverberando em toda geopolítica internacional. A superpotência dominante do mundo, que atingiu o seu estado durante o século XX, ao menos em parte porque era a casa da indústria petrolífera mundial, agora está perdendo rapidamente influência diplomática e “credibilidade” militar como resultado de uma série de erros de cálculo desastrosos, incluindo as suas invasões e ocupações do Afeganistão e do Iraque. A China está agora a tornar-se a maior economia do mundo, e outras nações de segunda linha (Reino Unido, Alemanha, Rússia) estão se cercando de contradições insolúveis e crescimento econômico, dilemas de poluição, ou limites de recursos movidos a carvão.
A superestrutura da sociedade também está sujeita a aprofundar a ruptura com o neoliberalismo, que vem sendo cada vez mais criticado, especialmente desde 2008. No entanto, há uma superestrutura mais sutil e penetrante (e, portanto, potencialmente mais poderosa) para a sociedade moderna, uma que é geralmente tomada como fato dado e raramente é nomeada ou discutida, e que está igualmente sob ataque. O ensaísta John Michael Greer chama isso de “religião civil do progresso.” Como Greer escreveu, a ideia de progresso tornou-se silenciosamente o artigo central da fé do mundo industrial moderno, mais universalmente aceita do que a doutrina de qualquer religião organizada. A noção de que “a história tem uma direção, e tem de fazer progressos acumulados nessa direção”, tem sido comum a ambas as sociedades capitalistas e comunistas durante o século passado. Mas o que vai acontecer com essa convicção “religiosa” conforme a economia encolhe, a tecnologia falha, a população declina, e os inventores falham em chegar a formas de manejar as multiplicadas crises da sociedade? Mais ao ponto, como é que milhares de milhões de frágeis mentes humanas ajustam-se ao ver o seu credo mais acarinhado sendo golpeado repetidamente pelos algozes da realidade? E que nova fé irá substituí-lo? Greer sugere que será aquele credo que reconectará a humanidade com a natureza, apesar de que sua forma exata ainda está para se revelar.
Todas essas tendências estão em suas fases mais precoces. Enquanto a infraestrutura realmente muda – enquanto combustíveis esgotam-se, enquanto as condições climáticas extremas agravam-se – pequenas rachaduras no edifício do status quo se tornarão abismos intransponíveis.
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Aqui está a minha última mensagem semipronta para os futuros “inovadores” sociais: Somente ideias, projetos e propostas políticas que caibam em nossa infraestrutura emergente terão utilidade genuína ou poder de permanência. Como você pode saber se a sua ideia se encaixa na infraestrutura emergente? Não há nenhuma regra dura e rápida, mas sua ideia tem uma boa chance se assumir que estamos nos movendo em direção a um regime social com menos energia e menos transporte (e que é, portanto, mais localizado); se ela pode trabalhar em um mundo onde o clima está mudando e as condições meteorológicas são extremas e imprevisíveis; se ela fornece uma forma de absorver carbono em vez de liberar mais para a atmosfera; e se ela ajuda as pessoas a satisfazerem suas necessidades básicas durante os tempos difíceis.
É muito fácil identificar elementos da estrutura existente na nossa sociedade e da superestrutura que não funcionam com a infraestrutura para a qual parecemos estar nos dirigindo. Consumismo e corporativismo são dois dos grandes; estes eram adaptações do século XX à energia barata e abundante. Eles justificadamente têm sido objeto de uma grande quantidade de ativismos de oposição nas últimas décadas. Houve reformas ou alternativas para o consumismo e o corporativismo que poderiam ter sido trabalhadas dentro do nosso regime de infraestrutura industrial (ou que foram trabalhados em alguns lugares, e não outros): o estilo europeu de socialismo industrial é o principal exemplo, mas que pode ser pensado como um campo magnético para uma série de propostas idealistas defendidas por milhares, talvez até milhões de pretensos inovadores de mundo. Mas o socialismo industrial é sem dúvida tão completamente dependente da infraestrutura de combustíveis fósseis como o corporativismo e o consumismo. Na medida em que ativistas que são casados com uma visão industrial-socialista de um mundo ideal podem estar perdendo muitos de seus esforços desnecessariamente.
Exemplos históricos oferecem formas úteis de base para propostas sociais. No contexto atual, é importante lembrar que quase toda a história humana ocorreu em um contexto pré-industrial e “pré-progresso”, por isso deve ser bastante fácil de diferenciar adaptações sociais indesejáveis e/ou desejáveis para os desafios análogos em épocas passadas. Por exemplo, o filósofo anarquista e biólogo evolucionário Piotr Kropotkin, em seu livro Ajuda Mútua, elogiou cidades europeias medievais como sítios de autonomia e criatividade, embora o período durante o qual estas floresceram é muitas vezes visto como uma “idade das trevas”.
Há uma abundância de projetos ativistas em andamento que parecem completamente alinhados com a infraestrutura de combustíveis pós-fósseis para a qual nos dirigimos, incluindo cooperativas de permacultura, ecovilas, campanhas de alimentos locais e iniciativas de transição. Novas tendências econômicas relevantes incluem a economia solidária e colaborativa, a economia de partilha, o consumo colaborativo, a produção distribuída, finanças P2P e de código aberto e movimentos de conhecimento aberto (open knowledge). Enquanto alguns destes últimos constituem apenas novos modelos de negócios que parecem brotar de tecnologias baseadas na web e mídias sociais, sua atratividade pode derivar em parte de um sentido cultural amplamente compartilhado de que os sistemas centralizados de produção e consumo característico do século XX simplesmente não são mais viáveis, e devem dar lugar a horizontalidade e a redes mais distribuídas. A lista de ideias e projetos já existentes que poderiam ajudar a sociedade a se adaptar em uma era pós-combustível fóssil é longa. Muitas pessoas têm percebido a direção da mudança global e chegar às suas próprias conclusões sensatas sobre o que fazer, sem nenhuma consciência do materialismo cultural de Harris. Mas essa consciência poderia ajudar nas fronteiras, reduzindo o desperdício de esforços.
Você quer mudar o mundo? Desejo mais poder para você. Comece por identificar seus valores de justiça, de paz, de estabilidade, de beleza, de resiliência, o que quer que seja. Isso é com você. Descubra quais ideias, projetos, propostas ou políticas somam-se a esses valores, mas também que se encaixam com a infraestrutura que está quase certamente vindo em nossa direção. Em seguida, comece a trabalhar. Há muito o que fazer, e muito está em jogo.
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[1] A simples observação de que a cultura humana é adaptável às condições ambientais é reveladora: Jared Diamond(autor de Guns, Germs and Steel – Armas, Germes e Aço) dedicou sua carreira a isso, embora ele deixe de creditarHarris, que era anterior e mais completo. O próprio Harris teve o cuidado de citar antecessores, sobre cujos trabalhos ele estava construindo, incluindo Karl Marx.
[2] O termo materialismo é carregado com conotações que distraem os problemas que se tem à mão. No uso de Marvin Harris, a palavra se refere apenas a um modo de pensar que assume que efeitos materiais são devidos a causas materiais. Quando eu estava lecionando sobre um programa sobre sustentabilidade, sugeri aos meus alunos que eles pensem sobre determinismo infraestrutural probabilístico como “ecologia cultural.” Eu sabia que isso era um tanto impreciso, já que ecologia cultural é uma escola de pensamento antropológico intimamente relacionada, mas distinta, do materialismo cultural. No entanto, muitos alunos simplesmente não poderiam ter deixado passar a palavra materialismo: para eles, este era um termo irremediavelmente desagradável associado tanto com a negação da espiritualidade quanto com a mania americana para a compra e consumo de produtos corporativos.