O Ministério de Minas e Energia adiou, no último dia 17, o leilão da Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, no Pará, alegando a necessidade de adequar estudos indígenas. Era o mínimo a ser feito, tendo em vista que, desde a construção da Usina Hidrelétrica de Balbina, em Presidente Figueiredo (AM), um projeto tão violento e ilegal contra os índios e, portanto, contra a sociedade brasileira, não acontecia no Brasil. Para construir a Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, no Pará, além de alagar terras indígenas, o governo cogitava remover três aldeias do povo Munduruku, contrariando o artigo 231 da Constituição Federal.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/535641-relatorio-recomenda-remover-aldeias-e-alagar-area-indigena-para-construir-usinas-no-tapajos
A reportagem é de Felipe Milanez e publicada pelo portal do Cimi, 25-09-2014.
Como disse o goleiro Aranha, no caso de racismo de que foi vítima diante da torcida do Grêmio: “muita gente sofreu para que hoje isso estivesse na lei”. No caso da remoção para barragens, há uma analogia. Quem sofreu para que a lei a respeito deste tema fosse criada foram, por exemplo, os Waimiri Atroari. Na época, durante o regime de exceção, a ditadura cumpriu a lei – havia uma previsão legal que permitia a remoção compulsória de povos indígenas no Estatuto do Índio (Lei 6001/73). Depois do sofrimento de muita gente, vieram os direitos constitucionais. No parágrafo quinto do artigo 231, a Constituição veta a remoção, e as únicas exceções possíveis são o caso de epidemia e catástrofe, ainda assim com referendo do Congresso Nacional. E os removidos devem retornar ao seu território em seguida.
O Ibama acabou de receber os Estudos do Componente Indígena referente à UHE São Luiz do Tapajós. O documento contraria diversos direitos indígenas.
Além de tudo, parece ser cruel e mórbido, pois tenta fazer crer que os próprios indígenas estão de acordo com o que vai acontecer com eles. Aparentemente, o estudo foi realizado sem que a antropóloga responsável sequer pisasse em uma terra indígena para avaliar os impactos, e sem a consulta aos indígenas, como prevê a legislação internacional – temas que estão sendo, inclusive, debatidos na Assembleia da ONU em Nova York, onde Dilma Rousseff discursou ontem.
Seriam afetadas as Terras Indígenas Praia do Mangue e Praia do Índio e asÁreas km 43 (Sawré Apompu), São Luiz do Tapajós (Sawré Jiaybu), Boa Fé(Sawré Maybú, Sawré Dace Watpu e Sawré Bamaybú), além de indígenas e ribeirinhos que vivem nas vilas Pimental e São Luiz do Tapajós. Escreve a antropóloga que assina o laudo que “as manifestações diretas dos Mundurukuforam coletadas junto a indivíduos e lideranças da etnia que se propuseram a conversar e participar de entrevistas informais fora de suas terras e em locais sempre determinados por eles.” Ou seja: o estudo antropológico do componente indígena é realizado “à distância”.
Acontece que os Munduruku haviam solicitado participar “como interlocutores durante o trabalho da equipe, decisão de escolha feita pelo(s) cacique(s)”, e os caciques não foram consultados. Os indígenas haviam pedido também que houvesse mais tempo e esclarecimentos, o que foi ignorado pela equipe de pesquisa. A Funainão participou nem acompanhou os trabalhos, o que também era uma exigência dos indígenas. As entrevistas que a antropóloga diz ter feito foram realizadas na cidade de Itaituba (PA), sem os devidos esclarecimentos, antes da reunião de apresentação da equipe e, obviamente, sem a decisão de escolha pelo cacique. Alguns indígenas disseram ter entendido que as antropólogas estavam trabalhando para a Funai, pela forma como elas explicaram sobre o trabalho que estavam fazendo.
Para piorar, os Munduruku temiam que aldeias seriam alagadas e removidas, conforme dizia um boato que circulava na região, mas não puderam participar das discussões sobre o projeto.
Os fatos mais agressivos contra os povos indígenas contidos no estudo são os seguintes:
O reservatório se estabelecerá com o nível médio de água na cota 50 m, o que implica que as três aldeias relacionadas à Boa Fé (Dace Watpu, Sawré Maybú e Karu Bamaybú) serão afetadas diretamente, cabendo, portanto, ações de relocação das mesmas. Essa passagem está na página 229. As aldeias ficarão literalmente debaixo d’água
Se São Luiz for construída, os Munduruku ainda vão perder áreas de cultura (roças, açaizais, etc.), terão alterados os locais para pesca, vão perder recursos alimentares, terão alterados locais de caça, locais de coleta de produtos vegetais e das espécies de pescado. Não serão poucas mudanças nas suas vidas que eles terão que enfrentar.
Os estudos do componente indígena foram protocolados no Ibama no dia 11 de setembro, feitos pela empresa Cnec Worleyparsons Engenharia S/A, e coordenados pela antropóloga Marlinda Melo Patrício. Dois biólogos também integram a equipe, contra a vontade dos indígenas, que apresentaram restrições ao trabalho de biólogos dentro da área.
Recentemente, a Sociedade Brasileira de Arqueologia se posicionou de forma contrária ao licenciamento do projeto e cobrou uma postura ética de pesquisadores para o empreendimento.
A Terra Indígena Sawré Muybu, que será impactada, onde estão aldeias que terão de ser removidas, ainda não foi demarcada pela Funai, que senta em cima do processo há anos, numa velocidade evidentemente oposta à da realização dos “estudos” para a construção das usinas. O Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública na Justiça Federal de Itaituba contra a Funai e a União Federal pela demora na demarcação desta terra, uma de ocupação tradicional do povo indígenaMunduruku, localizada nos municípios de Trairão e Itaituba/PA, no médio curso do rio Tapajós. O procedimento se arrasta há 13 anos e foi paralisado inexplicavelmente ano passado, quando quase todos os trâmites administrativos já estavam concluídos.
O Ibama enviou o Estudo do Componente Indígena para a Funai, e é difícil que os técnicos responsáveis pelo licenciamento deixem passar essas ilegalidades nas análises. Politicamente, no entanto, pode ser que a Funai repita o mesmo erro histórico que cometeu em Belo Monte: desconsiderar a opinião técnica de seus funcionários para autorizar obra de interesse do governo, mesmo que seja contrária aos direitos indígenas. Esses funcionários da Funai, e que portanto trabalham para o Estado (e não para um governo), e são comprometidos com a defesa dos direitos constitucionais das sociedades indígenas, devem ter em mente que esta luta pelo direito é uma luta em defesa de toda a sociedade.
Veja também:
Técnicos avaliam usina no rio Tapajós como inviável por impactos para índios
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/535644-tecnicos-avaliam-usina-no-rio-tapajos-como-inviavel-por-impactos-para-indios
A nova versão do Estudo do Componente Indígena (ECI) incluído no projeto dahidrelétrica de São Luiz do Tapajós, no Pará, aponta 14 impactos negativos à população indígena que vive na região que será afetada pela usina, sendo que seis deles são considerados irreversíveis por técnicos do governo que tiveram acesso ao material.
A reportagem é de Danilo Fariello e publicado pelo portal do jornal O Globo, 25-09-2014.
Além disso, o estudo de 309 páginas elaborado sob a coordenação da Eletrobras indica que terras indígenas serão diretamente afetadas com o alagamento por consequência da barragem, o que tornaria o empreendimento inviável do ponto de vista ambiental, segundo esses técnicos.
A primeira versão do ECI apresentada à Funai, com apenas 121 páginas, foi recusada pela entidade indigenista poque “não respondia a questões primárias”. Um novo estudo foi elaborado, portanto, e entregue ao Ibama no dia 9 de setembro e, três dias depois, remetido à Funai, que deve apresentar uma análise preliminar desse material em breve. Procurada, a Funai informou que só irá se manifestar após a conclusão dessa avaliação preliminar.
Entre os impactos diretos aos índios apontados pelo estudo como de “alta magnitude” estão a perda de recursos alimentares, como caça e pesca, e possibilidade de aumento da incidência de doenças nas terras indígenas. Os dados preveem, ainda, aumento do fluxo migratório com interferência direta nas etnias e maior pressão sobre a extração de recursos naturais. No total, são seis as áreas indígenas que sofrerão impactos da obra e da operação da usina. A principal etnia afetada é a dos munduruku.
O estudo do componente indígena aponta a necessidade de remoção de 85 a 200 pessoas de apenas uma área indígena chamada de Boa Fé, que sofrerá com os alagamentos. O levantamento justifica essa imprecisão alegando a “transitoriedade dos indígenas”.
Na avaliação de técnicos, esses pontos indicam que o reservatório da usina de São Luiz do Tapajós claramente está dentro das reservas indígenas, o que seria inconstitucional segundo o artigo 231, parágrafo 5º da Constituição Federal.
Esse parágrafo prevê que “é vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ‘ad referendum’ (com aval) do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”. A construção da hidrelétrica, portanto, não está incluída nessas previsões.
Especialistas que tiveram acesso ao ECI também apontam que os índios afetados teriam sido ouvidos apenas fora das terras indígenas. O ECI informa que “as manifestações diretas dos mundurukus foram coletadas junto a indivíduos e lideranças da etnia que se propuseram a conversar e participar de entrevistas informais fora de suas terras e em locais sempre determinados por eles”. O texto ainda reconhece “restrições de acesso as áreas indígenas”.
Procurada, a Eletrobras informou que, enquanto coordenadora do Grupo de Estudos Tapajós, concluiu e encaminhou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima) ao Ibamaseguindo as orientações do órgão ambiental. “No momento, o documento e seus anexos estão em análise pelas instituições participantes do licenciamento e, por isso, a Eletrobrasnão vai se manifestar sobre a documentação em análise.”
O leilão da usina de São Luiz do Tapajós foi previsto para 15 de dezembro em portaria do Ministério de Minas e Energia do dia 12 de setembro, mas foi revogado na semana seguinte, exatamente para aperfeiçoamento dos estudos de impacto sobre as etnias indígenas. A usina seria a maior a ser leiloada no governo Dilma Rousseff, com previsão de orçamento de R$ 30,6 bilhões.
Na quarta-feira, em evento em Brasília, o diretor de geração da Eletrobras, Valter Luiz Cardeal, que está à frente dos estudos perante o Ibama, previu para o início de 2015 o leilão da usina de São Luiz do Tapajós.
Porém, um executivo de uma das nove empresas que fazem parte do Grupo de Estudos do Tapajós reconhece que as discussões socioambientais em torno do empreendimento devem ser feitas com cuidado, para evitar uma oposição mais forte de ambientalistas e das populações afetadas, como ocorreu em Belo Monte.
– O leilão só deve acontecer quando todos os estudos necessários estiverem prontos e aprovados – disse esse executivo.